terça-feira, 21 de abril de 2020

Consagrações atuais


Consagrações atuais

Péricles Capanema

Em 15 de abril último o padre José Alves de Amorim, reitor do Santuário de Nossa Senhora da Lapa consagrou  os países de língua portuguesa e mais de 60 santuários no mundo inteiro a Nossa Senhora da Lapa no santuário-mãe de Nossa Senhora da Lapa na diocese lusitana de Lamego, o mais antigo santuário dedicado a Nossa Senhora sob tal invocação.

Declarou a respeito o padre Amorim em 14 de abril: “Porque este santuário divulgou-se precisamente por esses povos e chegou a ter presença no Brasil, em África, na Índia e a devoção à Senhora da Lapa permanece ainda hoje em mais de 60 lugares, de uma maneira viva. Por isso amanhã todos esses povos e santuários derivados deste são convidados para se associarem a esta consagração. Convidamos toda a gente para se associar a esta oração, para que Nossa Senhora da Lapa nos proteja”.

Lê-se no alvissareiro comunicado do Santuário: “Atendendo ao momento de dor e sofrimento que a pandemia, provocada pela Covid-19, está a provocar em todo o mundo, o Santuário de Nossa Senhora da Lapa tomou a iniciativa de invocar a proteção maternal da Mãe de Deus, de forma muito especial para todos os povos de língua portuguesa e, mais concretamente, para as comunidades onde o culto secular à Senhora da Lapa continua presente. Na impossibilidade de nos reunirmos fisicamente no Santuário-mãe, na diocese de Lamego, vimos por este meio convidar os devotos da Senhora da Lapa, espalhados pelos quatro cantos do mundo, a associarem-se a nós e a acompanharem-nos espiritualmente, através das redes sociais e outros meios de comunicação”.

O convite. São solicitados à consagração os devotos de Nossa Senhora da Lapa e os povos de língua portuguesa. Eu, aqui no Brasil, fui convidado (o leitor também), fiquei sabendo por amigo e pela imprensa, aceitei agradecido o apelo. Convido a quem me leia que o aceite ▬ a fórmula da consagração está na rede, é fácil encontrá-la. São graças de Nossa Senhora da Lapa. E o padre reitor do santuário mais antigo de Nossa Senhora da Lapa tem títulos diante de Nossa Senhora para fazer tal súplica.

A prática piedosa das consagrações, em especial ao Sagrado Coração de Jesus, ganhou enorme presença na Igreja a partir do apostolado da santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690), freira reclusa no convento das visitandinas de Paray-le-Monial. Ali teve, entre seus confessores, a são Cláudio La Colombière (1641-1682), jesuíta, também considerado dos grandes difusores da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Consagração, reparação, esperança de triunfo. Três características marcaram especialmente tal prática na Igreja: consagração, reparação, esperança de triunfo. A consagração não pode ser ato meramente formal; supõe propósito sério de reforma de vida, é renovação das promessas do batismo.

Antes das aparições de Paray-le-Monial a devoção ao Sagrado Coração de Jesus não era muito difundida, não exista ainda o conjunto das práticas ascéticas que hoje a acompanham e não era inequívoco seu caráter reparador. Reparação pelos pecados próprios, reparação pelos pecados familiares, reparação pelos pecados sociais. Os últimos séculos foram de descristianização e o abandono dos preceitos de Cristo tornam congruente, até mesmo inelutável, a atitude de reparação. Aceitar o peso da responsabilidade prepara a leveza do perdão.

A última característica é a esperança de triunfo. Triunfo sobre os vícios pessoais, mas também sobre a indiferença e os pecados sociais, trazendo à terra o Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo, a ordem temporal cristã. Nosso Senhor é rei dos corações. rei da sociedade e do Estado.

Texto expressivo. Estão nele presentes as mencionadas três características na fórmula de consagração lida pelo reitor do Santuário de Nossa Senhora da Lapa, o que a coloca em longa esteira histórica. Reata com o passado piedoso, hoje tão atual; o texto não está contaminado pela atmosfera intoxicada de relativismo e laicismo, muito disseminada nos anos pós-conciliares que tendiam a ver tais movimentos de piedade como anacrônicos.

Respigo alguns trechos da consagração do último 15 de abril. Ela é pródiga em afirmações de contrição, humildade e reparação, faz bem repisá-las: “a prece ardente que hoje contritos vos dirigimos”; “embora réus da excelsa justiça de Deus e quão merecidos são os castigos que sobre o mundo ingrato e impenitente se possam abater”; “nos deis um coração e vida penitentes”. E que o Coração Imaculado de Maria se apiede de nossos corações e nos inspire a penitência que almejamos.

O texto também é copioso nas manifestações de consagração: “consagrar os nossos povos e Vos pedir que deles afasteis a atual pandemia”; “ó dulcíssimo Jesus, Vos pedimos por intercessão da Senhora da Lapa, a Quem hoje nos consagramos”.

Finalmente, rico de passagens denotando a esperança do triunfo e afirmação do Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo: “que sejais a Rainha daqueles que vivem obscurecidos pelos erros”; “obtenhais para todos as nações tranquilidade e ordem, em tudo submetidas à beleza da Fé”.

Trouxe excertos, a consagração é muito maior. E começa com frase conhecida de grande densidade teológica: “Se foi por Vós que Jesus Cristo, Senhor Nosso, veio ao mundo, é também por Vós que nele deve reinar”. A consagração se coloca especialmente oportuna, lembra o Santuário e repito “atendendo ao momento de dor e sofrimento que a pandemia, provocada pela covid-19, está a provocar em todo o mundo”.

Colômbia. Este mesmo momento foi invocado por iniciativa semelhante, rumo idêntico, encabeçada pela Sociedad Colombiana Tradición e Acción, que pede ao presidente da República e à Conferência Episcopal que consagrem a Colômbia ao Sagrado Coração de Jesus e à Nossa Senhora de Chiquinquirá, padroeira do País. O texto do importante documento, assinado por seu diretor, Eugenio Trujillo Villegas, suplica e lembra: “Queremos lhe pedir com veemência, que diante da incerteza pela qual passamos, junto com as autoridades da Igreja Católica, renove a consagração ao Sagrado Coração de Jesus, que se fez ininterruptamente de 1902 a 1992. E também que consagre o País a Nossa Senhora de Chiquinquirá, padroeira da Colômbia”.

Faróis. Duas iniciativas atuais e exemplares. Empreendimentos assim, acompanhados da contrição congruente, infelizmente muito raras, atrairiam a misericórdia divina nos presentes dias duros trilhados por todos nós. Sua ausência, é incoercível, a lógica nos arrasta até lá, pressagia maiores sofrimentos e tragédias. A elas nossa adesão e aplauso. São faróis, iluminam e indicam rumos.


segunda-feira, 20 de abril de 2020

Plenitude


Plenitude

Péricles Capanema

Não vai falar da covid-19? Tenha paciência, tratar de plenitude? Que atualidade tem isso? Calma, vou escrever sobre o covid-19. E por que escolhi logo plenitude? Sei, o assunto não dá manchete, parece do mundo da lua, desinteressante, frio. Incende para mim, precisa queimar; quanto mais, melhor.

Em linhas muito gerais, vou discorrer sobre uma plenitude, a humana. Com temperança, buscar a própria plenitude, em qualquer âmbito (moral, cultural, financeiro), é direito humano. Devagar. Plenitude tem (apenas) a atualidade do perene; no caso, perenidade de enorme relevância. Semanas atrás, em escrito sobre objeto parecido, observei: “Eles são perenes. Com efeito, em muitos sentidos o que é verdadeiramente atual deixa ver sempre a nota do perene ▬ eco do imorredouro no presente. O resto é só o momentâneo, o passageiro, o fugaz, o efêmero, o fugidio, sei lá o que mais. Realidades breves evanescentes, minguando rumo ao nada.”

Estou convencido, é imprescindível manter o assunto plenitude em lugar alto em nosso panorama mental. Jamais retirá-lo daí ▬ providência simples, irriga todo o espírito. Se permanecer no horizonte de grande número de pessoas, vai estimular avanço civilizatório, será vacina contra retrocessos e atrasos que, em última análise, fortalecem a opção preferencial pela atrofia, parte integrante da política, já de séculos, mesmo que inconfessada, das correntes revolucionárias. Exemplos paroxísticos e próximos são Cuba e Venezuela. No século passado, foram macabros e didáticos exemplos (melhorando, advertências), celebrados pelos progressistas mundo afora, a Revolução Cultural Chinesa e o Camboja do Khmer Rouge ▬ pelo menos, até a revelação, ainda hoje parcial, da realidade dantesca. Muita gente no Brasil, de alto a baixo da escala social, movida pela mitomania igualitária, fez a opção preferencial pela atrofia, não vai mudar nunca. Os partidos de esquerda e o “progressismo católico” estão abarrotados delas. E não só lá.

Adiante. Otto Lara Resende comentava, Nelson Rodrigues era uma “flor de obsessão”. Com isso queria significar, o amigo repetia sempre alguns pontos. Batia, rebatia, martelava, reiterava, insistia, reafirmava, recordava, repisava as mesmas trilhas. Atalhos perenes. O dramaturgo recifense concedia sereno, é isso mesmo. “Sou um obsessivo e houve alguém que me chamou de ‘flor de obsessão’. Exato, exato, e graças a Deus. O que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões.” Morreu quarenta anos atrás, até hoje seus textos são dos mais lidos no Brasil. Ninguém se lembra, ou quase tanto, quais eram seus críticos. Depois de frigir os ovos, tem coisa mais atual que a perenidade?

Entre companhia vasta, ou seja, pessoas que viam utilidade na repetição, Nelson Rodrigues teve uma de especial relevo, Napoleão. “A repetição é a mais forte figura da retórica”, garantia. Para que serve a retórica? Persuadir. E o melhor instrumento para convencer seria a repetição, opinião de alguém com forte propensão de convencer pelo fuzil e chicote.

Acho também, pelo menos na confusão da atual quadra histórica, é indispensável repetir alguns assuntos (plenitude, um deles), mesmo com o recurso disfarçado pelo emprego de meios variados. Martelar até que os argumentos entrem e se acomodem na cachola. Pode parecer obsessivo; paciência, precisa. Um dia, quem sabe o tema da plenitude humana exploda nas manchetes, é anelo meu, seja tratado com o valor que acho normal lhe seja atribuído; relevância dispensada por todos, claro, mas em especial pelos que decidem os rumos da nação.

Verdade, aspiro que seja preocupação central dos que decidem os rumos da nação. Não estou aqui me referindo, todavia, sobretudo a quem tenha destaque no Executivo, Legislativo, Judiciário, empresariado, meios de divulgação, academia. Longe disso. Foco realidade diferente. Refiro-me em particular a gente espalhada em todos os meios sociais que, entre outros atributos, tenha amplitude de vistas, bom caráter, dotes de observação, pensamento próprio, esteja interessada no bem comum, saiba valorizar doutrina e movimentos de alma no público. Coloca-se, pela força dos fatos, à frente do povo, tem influência decisiva nos seus destinos.

Talentos, se quisermos, qualidades naturais, desde que não permaneçam latifúndio improdutivo, são o mais importante ativo de um povo, mais que qualquer outro. Em contas finais decidem seu bem-estar e presença na História. Florescê-los é o decisivo. Grandes benfeitores, quem os estimulam, das sementes aos frutos; criminosos, quem os atrofia, impedindo que das sementes surjam árvores, plenitude daquelas.

Nas pessoas, nas famílias, nos grupos sociais, latejam talentos já plenamente desabrochados, outros pelo meio do caminho, outros ainda latentes, mananciais para aperfeiçoamentos futuros. Levá-los à perfeição, mesmo que relativa, cabe primeiramente às famílias, à escola, a instituições próprias, aos mais variados ambientes sociais. De maneira suplementar, ao Estado. Não é coisa de um dia. Acontece, qualidades em uma família levam duas, três gerações para se desenvolverem plenamente. Volto a Napoleão, “a educação de uma criança começa vinte anos antes de ela nascer, com o nascimento de sua mãe”. Infelizmente, em cada geração a imensa maioria das qualidades naturais não chega ao pleno florescimento, à plenitude, enfim. Mais ainda, não é raro, em cada geração, antigos reservatórios de conhecimentos, costumes, modos de fazer e de ver a vida de enorme valor acabam indo para o ralo, somem. E é preciso começar do chão outra vez.

Hoje, em frangalhos, a família perdeu muito de sua capacidade formativa. Mas, de si, é a estufa natural para o florescimento das sementes. A seguir, de forma suplementar, outros grupos sociais. Todos somos, uns para os outros, em ocasiões próprias, mestres, modelos, regentes.

Ponto escamoteado, mas central, convém ser realçado, pois é foco difusor de excelência, um dos reflexos da plenitude. Nas mais variadas elites de um povo, elites de artesãos, de escritores, de empresários, de políticos, de diplomatas, de professores, de cozinheiros e cozinheiras, sociais, de financistas, de seleiros, o tempo vai depositando valioso acervo de perfeições humanas, necessárias ao bem comum, que é crime desconhecer, subestimar, a elas ser indiferente; mais ainda, atacar. Pelo contrário, o dever é estimulá-las com proporção, pois favorecem o aperfeiçoamento social.

Preciso fechar. Reflitamos sobre plenitude; pessoal, familiar, social. O mundo pós-pandemia será muito melhor, se dermos ao tema o lugar merecido.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Cardeal birmanês ataca o Partido Comunista Chinês


Cardeal birmanês ataca o Partido Comunista Chinês

Péricles Capanema

O cardeal na linha de frente. O cardeal Charles Bo é arcebispo da arquidiocese de Yangon em Myanmar. É o primeiro cardeal birmanês, nasceu em 1948, foi bispo em 2003, cardeal em 2015, preside a Conferência da Federação dos Bispos Asiáticos.

Localização. A antiga Birmânia, hoje República da União de Myanmar, 678 mil km2, por volta de 55 milhões de habitantes, tem fronteiras com a China. Cerca de 700 mil de seus habitantes são católicos.

Declaração histórica contra o despótico PCC. O cardeal-arcebispo, cujo país tem fronteiras com a China (quase 10 milhões de km2, 1,5 bilhão de habitantes) divulgou em fins de março, a propósito da crise do coronavirus, corajosa e esclarecedora declaração contra o Partido Comunista Chinês. A declaração foi entregue à imprensa, repercutiu em particular na Europa, e encontra-se na íntegra no site da Arquidiocese. Logo no começo, afirma o Purpurado: “Vozes no mundo inteiro se levantam contra a atitude tomada pela China, em especial pelo despótico Partido Comunista Chinês, liderado pelo homem forte Xi Jinping”.

Estudos demolidores. Continua o arcebispo de Yangon: “O London Telegraph de 29 de março divulgou que o ministro da Saúde inglês acusou a China de esconder a escala verdadeira do coronavirus naquele país. James Kraska, reputado professor de Direito, escreveu na última edição do ‘War on Rocks’ A China é legalmente responsável pelo covid-19 e os pedidos de indenização estariam na casa dos trilhões (de dólares)”

Prossegue dom Charles Bo, citando estudos: “Um modelo epidemiológico feito na Universidade de Southampton concluiu que se a China tivesse agido responsavelmente, apenas uma, duas ou três semanas antes, o número de pessoas afetado pelo vírus teria sido menor em 66%, 86% e 95%, respectivamente. Sua atitude desencadeou um contágio universal, matando milhares.

O PCC é réu. Pondera o hierarca: “Quando estudamos os danos causado a vidas no mundo inteiro, precisamos buscar o responsável. Muitos governos estão sendo acusados de omissão, quando perceberam o problema do coronavirus em Wuhan. Mas existe um governo que tem a responsabilidade primeira, resultado do que fez e do que deixou de fazer, é o governo do Partido Comunista Chinês em Pequim. Vou ser claro ▬ o responsável é o Partido Comunista Chinês, não o povo da China. O povo chinês é a primeira vítima do vírus e há muito tempo tem sido a primeira vítima do seu regime repressivo”.

Mentiras disseminadas, verdades escondidas. O cardeal avança: “Quando o vírus apareceu, as autoridades chinesas censuraram as notícias. Em vez de proteger o público, e apoiar os médicos, o Partido Comunista Chinês silenciou os denunciantes. Pior ainda, os médicos que tentaram dar o alarme ▬ como o dr. Li Wenling no Hospital Central de Wuhan que advertiu colegas em 30 de dezembro ▬ foram silenciados. A polícia lhes ordenou que ‘parassem de espalhar rumores falsos’. A polícia mandou o dr. Li, oculista, ‘parar de divulgar comentários falsos’; foi obrigado a assinar uma confissão. Morreu, infeccionado pelo vírus. Desapareceram jornalistas jovens, que tentaram noticiar a pandemia. Li Zehua, Chen Qiushi, Fang Bin, parece, foram e continuam presos por informar a verdade”.

Perseguição religiosa crescente. Dom Charles Bo denuncia a perseguição crescente na China: “As mentiras e a propaganda colocaram em perigo milhões de vidas no mundo inteiro. A conduta do Partido Comunista Chinês evidencia sua natureza crescentemente repressiva. Nos últimos anos houve grave diminuição da liberdade de expressão na China. Advogados, blogueiros, dissidentes e ativistas foram perseguidos e desapareceram. Em particular, o regime desencadeou uma campanha contra a religião, da qual resultou a destruição de milhares de igrejas e cruzes e a prisão de pelo menos um milhão de muçulmanos em campos de concentração. Um tribunal independente de Londres, presidido por sir Geoffrey Nice, acusa o Partido Comunista Chinês de pela força coletar órgãos humanos de objetores de consciência”.

O PCC, ameaça para o mundo. O cardeal sobe o tom: “Durante sua conduta irresponsável e inumana da crise do coronavirus, o Partido Comunista Chinês provou que é uma ameaça para o mundo”.

Responsabilização lógica. E conclui: “Por causa de sua negligência criminosa e sua repressão, o regime chinês, dirigido pelo Partido Comunista Chinês e pelo poderoso Xi Jinping, é responsável pela disseminação da pandemia. Deve-nos compensação pela destruição que causou, pelo menos pagar os gastos dos países no combate ao covid-19. Com base em nossa humanidade comum, não devemos ter medo de responsabilizá-lo pelo que fez”.

Exemplo para ser imitado. O Purpurado desafiou perseguidores, evidenciou clareza, firmeza e coragem. É o que infelizmente falta a sem-número de dirigentes ocidentais, comodamente instalados a milhares de quilômetros de Pequim. Que sigam o exemplo do Purpurado birmanês, voz desassombrada ecoando de um país fraco e limítrofe com a China. Seu brado soa como o de guerreiro solitário resistindo investida de chusmas soldadescas. Que Deus o proteja.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Não ao derrotismo ▬ viva Sobieski!



Não ao derrotismo ▬ viva Sobieski!

Péricles Capanema

Alain Touraine, nascido em 1925, é dos mais influentes sociólogos do século 20 e 21. Homem de esquerda, adversário de ditaduras, desde muito é hierofante e pitonisa na intelectualidade ▬ e não apenas na esquerda. Continua hoje, em idade avançada. reputado em especial na academia.

Creio necessário explicar para alguns poucos o que aqui significa hierofante, palavra hoje pouco utilizada. Lembrei-me dela em meu último artigo (O mundo depois do coronavirus) quando comentei opiniões de Yuval Noah Harari sobre a crise do coronavirus.

Yuval Noah Harari e Alain Touraine são hierofantes e pitonisas da sociedade contemporânea. Dizia eu: “Hierofantes saíram totalmente de moda nos meios de divulgação. Até há pouco a palavra era empregada de forma analógica. Na origem, designa os sacerdotes de alta hierarquia que nas religiões de mistérios da Grécia antiga e do Egito instruíam iniciados. Pitonisa era sacerdotisa de Apolo, oráculo, possuía o dom de prever o futuro. [Yuval Noah Harari], intelectual público, digamos, junta em si as duas características, é hierofante e pitonisa de nossos dias, quem sabe o mais ouvido. Fala constantemente para políticos, empresários e jornalistas”.

Harari e Alain Touraine, ambos intelectuais públicos requisitados, em linhas gerais cumprem a mesma função para a intelligentsia e ainda para boa parte dos que dirigem o mundo em seus vários âmbitos ▬ econômico, político, artístico etc. Orientam passos. Suas palavras podem ter efeito benéfico, como serem demolidoras.

Alain Touraine falou em 30 de março a El País, o mais influente jornal espanhol, sobre a crise presente, desencadeada pela pandemia. À maneira de fria constatação, ponderou o sociólogo francês: “Vivemos dois bons séculos, a sociedade industrial, em um mundo dominado pelo Ocidente durante 500 anos. Acreditamos, foi o caso nos últimos cinquenta anos, que vivíamos em um mundo norte-americano. Agora talvez passemos a viver em um mundo chinês, mas não estou inteiramente certo. Os Estados Unidos estão afundando. A China está em situação contraditória que não pode durar eternamente: quer praticar o totalitarismo maoísta para gerir o sistema mundial capitalista. Estamos sem lugar em uma transição brutal que não foi preparada nem pensada”.

Assim, Alain Touraine acha, contas feitas, os dois últimos séculos sob o signo da Revolução Industrial foram bons para a humanidade. Não parece estar seguro sobre os dois séculos próximos que ele vê provavelmente como “um mundo chinês”, sucedâneo do “mundo norte-americano”, com os atores dominantes, está subentendido, não mais no Ocidente.

Fala um pouco mais sobre a tese geral que levantou “os Estados Unidos estão afundando”: “Nunca havia visto um presidente dos Estados Unidos tão estranho como Donald Trump, tão pouco presidencial, um personagem tão fora das normas e tão fora de seu papel. E não é por acaso. Os Estados Unidos abandonaram seu papel de líder mundial. Hoje já não existe nada. Na Europa, olhe os países mais poderosos, ninguém responde. Não existe ninguém na frente do proscênio”.

Parte da elite dirigente dos Estados Unidos admitia, graus diversos, uma expressão que pode soar pretensiosa, mas que, entendida com realismo e modéstia, tem raízes na realidade: “manifest destiny”, destino manifesto, missão evidente de exemplaridade e liderança.

As circunstâncias (os homens religiosos pensam na Providência) levaram os Estados Unidos à condição de líder e protetor natural do Ocidente. O presidente dos Estados Unidos, de alguma maneira, tinha papel semelhante à missão do imperador do Sacro Império Romano Alemão na Idade Média; pedra de cúpula, representava, mantinha e protegia uma ordem política e social, espaço de vida civilizada. E, em parte por isso, algo de enormemente grave, até mesmo sacral, envolvia sua figura, situação percebida pelos seus conacionais. Não mais; e, essencialmente, pelo abandono dos deveres inerentes à liderança mundial, julga Touraine.

De passagem, convém notar, tal papel histórico de líder mundial, que vem cabendo aos Estados Unidos, dirigentes internacionais tentaram conferir à Sociedade das Nações, após a 1ª Guerra Mundial, e à ONU, após a 2ª Guerra Mundial. Fracasso completo.

Volto ao centro. Estaríamos diante de uma abdicação, o abandono do papel de líder mundial, em parte foi provocada pela ênfase excessiva nos interesses nacionais. Abdicação que alcança a Europa, segundo Touraine: “Hoje não existem atores sociais, nem políticos, nem mundiais, nem nacionais, nem de classe. [Existem] pessoas e grupos sem ideias, sem direção, sem programa, sem estratégia, sem linguagem. É o silêncio.”

A abdicação é sobretudo moral; importa no caso em desviar o olhar de obrigações impostas pelo dever. Lembra Afonso XIII. O monarca renunciou ao trono da Espanha em 1931 com maioria eleitoral, enorme força política, apoio popular forte. Fugiu aos embates, foi embora do país, preferiu o exílio. O que Alain Touraine evoca de mais importante, os Estados Unidos e, em parte, a Europa estão repetindo a conduta de Afonso XIII.

De outro modo, estamos assistindo a apocalíptico desmoronamento. No silêncio, em ambiente de misteriosa abdicação, começaria a prevalecer “o mundo chinês”, a era em que, pelo menos de início, o maoísmo político ditaria o rumo dos acontecimentos mundiais.

Preocupam as palavras de Alain Touraine. Não são apenas as palavras, tem ainda o tom. “Le ton fait la chanson”. Preocupam muitíssimo, de fato; com variáveis, vem sendo o tom que, aqui e ali, adotam intelectuais públicos em destaque no mundo. Trazem no bojo fatalismo, inevitabilidade, suicídio, entreguismo.

De repente, já não mais se disfarça a tirania chinesa, antes prática comum nos meios de divulgação e nos ambientes sociais decisivos. Afirma-se candidamente, como alguém que constatasse a presença de um gato no quintal, que a China avança para o centro do palco. Ninguém mais nega o óbvio ululante do crescente domínio chinês, disfarçado até há bem pouco.

Chegou a hora de proclamar outro óbvio ululante. O “mundo chinês” (a era da China) não precisa vir, é francamente evitável, não deve chegar ▬ seria a vitória do ateísmo, do coletivismo, da tirania. Retrocesso e atraso dificilmente imagináveis. Os Estados Unidos possuem com pletora todas as condições para continuar, décadas afora, a ser a nação líder do Ocidente. Para isso, a batalha dos espíritos vai se dar e precisa ser vencida sobretudo na opinião pública norte-americana. Imprescindível a coligação de esforços da gente que presta.

Em suma, clareza e coragem. Evitar atitudes como a de Afonso XIII. Temos reis outros a a pisar os passos, nos quais se alteia um em particular. Diante de ameaça parecida, o domínio muçulmano na Europa, insurgiu-se João III Sobieski (1629-1696). Indomável, nada o abateu, não conheceu o derrotismo, fugiu das aparentes fatalidades, venceu. O mundo civilizado e cristão lhe tem indizível dívida de gratidão.

sábado, 28 de março de 2020

O mundo depois do coronavirus


O mundo depois do coronavirus

Péricles Capanema

Pensei em outro título: hierofantes e pitonisas. Hierofantes saíram totalmente de moda nos meios de divulgação. Até há pouco a palavra era empregada de forma analógica. Na origem, designa os sacerdotes de alta hierarquia que nas religiões de mistérios da Grécia antiga e do Egito instruíam iniciados. Pitonisa era sacerdotisa de Apolo, oráculo, possuía o dom de prever o futuro. Deixei o cabeçalho de lado; embora talvez mais chamativo, relaciona-se menos diretamente com a situação presente. Vou falar sobre o mundo depois do coronavirus, com base em intelectual público que, digamos, junta em si as duas características, é hierofante e pitonisa de nossos dias, quem sabe o mais ouvido. Fala constantemente a políticos, empresários e jornalistas.

Yuval Noah Harari, judeu, mora em Israel, leciona na Universidade Hebraica de Jerusalém. Escreveu dois best-sellers, Sapiens e Homo Deus e vem sendo tido como o palestrante mais bem pago do mundo. Ele publicou com enorme repercussão no Financial Times de Londres, 20 de março último, artigo (de fato ensaio), sob o rótulo “O mundo depois do coronavirus”. Vou deixar que ele explique, apenas destacarei certas partes.

Começa assim: “Esta tempestade passará. A humanidade está enfrentando o que talvez seja a maior crise de nossa geração. As decisões que as pessoas e governos tomarem nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos ▬ economia, política e cultura”.

A tempestade passará, mas deixará sequelas permanentes. Continua Harari : “Precisamos agir rápida e decisivamente, mas sem esquecermos as consequências de longo prazo de nossas ações”. Que mundo habitaremos depois que a tempestade passar? Finca os marcos para a resposta: “A grande maioria de nós ainda estará viva, mas habitará um mundo diferente. Muitas medidas emergenciais se tornarão perenes. Decisões que normalmente tomam anos de deliberação, são aprovadas em horas. Tecnologias imaturas e até perigosas são postas em prática em horas, porque os riscos da inação são maiores. Países inteiros servem de cobaias de experimentos sociais em escala gigantesca”.

Empurra os dilemas para o centro do palco: “Temos dois dilemas. O primeiro, vigilância totalitária contra fortalecimento da cidadania. O segundo, isolacionismo nacionalista contra solidariedade global”. Vigilência totalitária tem também outro nome, ditadura digital. Vai tratar abaixo dos dois dilemas.

Adverte: “Quando escolhermos entre alternativas, deveríamos nos perguntar não apenas como vencer a ameaça imediata, mas também qual espécie de mundo habitaremos depois de a tempestade passar”.

Trata do que é central em seu ensaio: “Pela primeira vez na história a tecnologia tornou possível monitorar todo mundo o tempo inteiro. Os governos podem ter câmeras de reconhecimento facial em todas as partes e extraordinários algoritmos (big data). Em sua batalha contra o coronavirus, muitos governos já utilizaram os novos instrumentos de vigilância. O caso mais importante é a China. Monitorou os celulares, usou centenas de milhões de câmeras, obrigou as pessoas a verificar e informar a temperatura corporal. As autoridades chinesas podem não apenas identificar com rapidez portadores suspeitos de coronavirus, mas ainda rastrear seus movimentos e identificar quem esteve em contato com eles. Aplicativos avisam as pessoas sobre a proximidade de gente infectada. Esta tecnologia não está sendo utilizada apenas no Extremo Oriente”.

Harari explica então que Netanyahu também está utilizando tecnologia semelhante. Houve reações, mas ele legalizou sua atitude com um decreto de emergência, semelhante aos usados contra o terrorismo. Passada a emergência, o decreto cairia. Quem garante? Em Israel há medidas de emergência, adotadas em 1948 por causa da guerra de independência que estão em vigor até hoje, pontua. Dentro da lei, também utilizaram muitos desses recursos a Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura. Ou seja, combateram com eficácia o coronavirus sem destruir direitos. Todos farão assim? E a China?

O escritor judeu chama a atenção sobre a vigilância digital que começa a ser utilizada e que se generalizará rapidamente: a vigilância “debaixo da pele”. “Se não tomarmos cuidado, a epidemia representará importante divisor de águas na história da vigilância. Não apenas porque poderá tornar normal a utilização de instrumentos de vigilância maciça em países que até agora os rejeitaram, mas também, e mais importante, poderá significar a transição dramática da vigilância “em cima da pele” para a vigilância “debaixo da pele”.

Com efeito, com uma pulseira (ajudada pelo celular) o governo vai conhecer a temperatura, o batimento cardíaco, a pressão, os contatos, os programas vistos. Com isso, saberá pelas reações do vigiado os impulsos de alegria, risadas, ódio, tédio, indiferença, movimento de olhos rumo a objetos desejados. Antes de a pessoa ter consciência, já conhecerá suas doenças, propensões, prováveis atitudes. Preverá e até manipulará sentimentos. É um sistema aterrador de vigilância. “As táticas de utilizar dados empregadas pela Cambridge Analytica vão parecer da Idade da Pedra”.

Em tela está a privacidade contra a saúde. Na angústia, quem deixará de escolher a saúde? “Se não fizermos a escolha correta, podemos ser levados a renunciar à nossas mais preciosas liberdades, pensando que é a única maneira de obter a saúde”. É a volta, sob outra capa, da frase infame “better red than dead”. E pode surgir na ponta final do processo a imposição do comunismo, já não mais pela convicção e voto, mas por imaginada exigência das circunstâncias.

Harari é ateu. Descreve com fria objetividade o mundo que na neblina lobriga pela frente. Sua proposta de solução, contudo, soa utópica. Para o primeiro dilema, fortalecer a cidadania. Para o segundo dilema, caminhar para a solidariedade e cooperação global, com base na confiança. É quase o anúncio do desastre inevitável ▬ a crônica da tragédia anunciada. A possibilidade de uma neoescravidão digital assoma no horizonte turvo do presente.

Vou repetir o que ponderou Adamastor Ferrão Bravo no conto “Brigo pelos homens atrofiados”: “Em nossa quadra histórica só resta de pé uma defesa eficaz contra a neoescravidão, é no povo subsistirem vivos o senso moral e os hábitos de liberdade. O que nos livra da pior tirania são tais hábitos sociais enraizados”. O Adamastor tem razão, eles embasariam uma reação salvadora; trata-se de fortalecê-los. Lembrei acima, Yuval Noah Harari é ateu. O Adamastor não; sabe que sem ação sobrenatural não se mantêm vivos e nem se fortalecem o senso moral e os hábitos de liberdade. Oração, vigilância e ação são decisivos e é o que nos resta.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Desassombro


Desassombro

Péricles Capanema

De há muito noto entristecido (e inconformado), a palavra Cristandade de tantas fulgurações vem sendo empurrada de lado. No amplo palacete das ideias, está jogada para desvão pouco iluminado, quase nunca visto e visitado. Palavra, sim, isto é, o conceito; de outro modo, a realidade que expressa.

Trágico, Cristandade não pode ser escorraçada do debate público. Nada apresenta ou fez de infamante; a mais, tem frescor, fulgura de luz dourada. Subo, tem justificação doutrinária sólida e enormes realizações históricas. Contudo, essa é a verdade, hoje causa constrangimentos e assim, parece, seria melhor que não frequentasse a sala, permanecesse discreta na cozinha, meio escondida, junto com vassouras e rodos. Sua presença brilhante em locais de destaque atrapalharia a fluidez normal das conversas, dificultaria aproximações entre os convivas habituais.

Ali na sala e nas partes principais da residência conversam entre si palavras [conceitos] como conservadorismo, valores cristãos, raízes cristãs, valores nacionais, integridade, bons costumes, herança judaico-cristã, filosofia perene, preservação da família. Gente do bem, como se vê. Cristandade, não. O máximo que vi a de regra naquele olimpo se admitiria seria a sociedade laica, vitalmente cristã, para lembrar a famosa formulação maritainista.

Platonicamente, Cristandade ainda pode se considerar amiga de todos os convivas mencionados, tem com eles relações antigas, parentesco. Por isso, por enquanto, fica na área de serviço, esperando a hora de sair sem ruído pela porta da cozinha. Se resistir, é congruente, seria expulsa, a coligação dos incomodados já não mais a toleraria.

Cristandade antes era recusada em particular pelos bad boys. Mas agora vem sendo empurrada de lado por pessoas respeitáveis, com serviços prestados, que têm um ponto em comum: não querem ouvir falar de Cristandade, nem estar em sua companhia, o silêncio a circunda. Quem já padeceu o ostracismo, sabe que é impiedoso, minucioso e feroz.

Corta. Folheava o mensário “Catolicismo” (nº 831), quando dei de cara com: “Cristandade – solução para o vazio da nossa sociedade niilista”. Li de novo. Era aquilo mesmo, a Cristandade apresentada como solução social para nossos dias. Li de novo. Não havia dúvida. Fui para o autor, John Horvat II. Lembrei-me, já havia lido livro dele “Return to Order” e publicado comentário a respeito sob o cabeçalho: “A coragem das definições” (está desde 26.8.2017 em meu blog periclescapanema.blogspot.com).

“Return to Order” provocou-me de imediato uma exclamação: “Meu Deus, que coragem!”. Daí o título do comentário: “A coragem das definições”, de onde recolho: “Existe também a fortaleza do intelectual, dela se trata aqui — o amor à objetividade o obriga por vezes a gravar no papel, conscientemente, palavras que destruirão o êxito profissional e até a nomeada social. Acontece então, a escravidão à verdade o atira sem volta no ostracismo. O pior dos erros é acertar sozinho contra muita gente, constatava amargo e risonho Agripino Grieco. Desbravador arrojado, chegou ao topo do morro, de lá descreveu panoramas novos. Horvat correu riscos — o primeiro, a incompreensão; o segundo, o isolamento. Quis assim. Assoma nítido o desassombro, em especial quando demole barreiras fincadas pelas batidas tiranias das modas do pensamento”.

John Horvat veio ao encontro de minhas angústias. Repetindo em “Cristandade – solução para o vazio da nossa sociedade niilista” a coragem intelectual já evidenciada em “Return to Order”, tratou com desassombro a situação que descrevi acima de forma sobretudo metafórica. Criou até um ferrete, um slogan para indicar a exclusão de Cristandade do debate público: o Anything But Christendom Syndrome, a síndrome do ABC – a síndrome do “Qualquer coisa vale, menos a Cristandade”, doença composta de várias manifestações associadas a uma condição mórbida critica. Tal enfermidade afunda suas raízes em velhos preconceitos liberais, que distorcem a natureza da sociedade cristã, observa ele.

Horvat desafia, desbrava e encurrala. Cordial, seguro, traz de volta para o centro do debate o que a patrulha havia expulsado. Ele, um norte-americano, começa sua justa assim (vou utilizar o original inglês, está na rede): “Graves problemas morais estão destruindo nosso país”. Continua, muitos descrevem bem os problemas, erram nas soluções. Outros, sem analisar causas, propõem soluções inócuas. Outros ainda sugerem saídas de mínimo esforço. A única solução real é o retorno à Cristandade, diz [vai explicar depois].

Observa, todos no debate, na esquerda, no centro e na direita, só não admitem debater uma solução: a Cristandade. É o debate inquinado pela síndrome “Qualquer coisa vale, menos a Cristandade”. Contaminou tanto o campo temporal como o religioso.

Explica como conservadores e direitistas estão com medo de tocar no assunto: “Existem cristãos que de fato desejam a moral com base no Decálogo. Mas não a ousam propor porque parecem esmagadoramente numerosos as pessoas e meios de divulgação contrários. A Cristandade está muito distante da sociedade presente; não é prático propô-la. Para eles, não há chance de vencer. E assim se tornam pacientes da síndrome do ‘Qualquer Coisa vale, menos a Cristandade’. Os cristãos volteiam em torno de todos os assuntos ligados a Cristandade, mas ninguém ousa pronunciar a palavra”.

Por falta de espaço, não vou tratar aqui da refutação que faz aos que chama de “liberais radicais” e “moderados radicais”. A recusa de todos eles em admitir sequer a ideia de Cristandade denota, escreve Horvat, “uma rigidez tirânica, enraizada no materialismo”.

Chega à parte final do artigo: “Como nossos problemas são morais, nossas soluções devem ser morais”. Mostra que a Cristandade é solução natural, postos o Direito Natural e a moral da Igreja, que estão conformes à natureza humana. E daí a maior felicidade e harmonia social, para cristãos e não-cristãos, encontram-se numa atmosfera de civilização cristã. Refuta falsidades, entre as quais a da imposição da Fé ▬ a Fé é um dom sobrenatural, não pode ser imposto. E pontua, tais falsidades estão sendo vociferadas em ambiente convulsionado em que uma coligação anti-Cristandade vem impondo a pauta de que tudo vale, menos a Cristandade. E nas forças da investida estão satanismo, promotores agenda LGBT+, defensores da pauta transgênero, incentivadores das blasfêmias, tudo

Em resumo, os tempos estão maduros para debater a Cristandade. Sua defesa precisa ser feita abertamente, sem desculpas e com entusiasmo.  Trabalho de esclarecimento, em primeiro lugar, a maioria nem sabe o que é a Cristandade. Sem tal debate, a sociedade continuará a afundar na anarquia e no libertarianismo. “Como nossos problemas são morais, as soluções devem ser morais”. E finaliza: “Precisamos urgentemente de uma civilização cristã. Essa é uma proposta [a Cristandade] que deve, pelo menos, ser tomada em consideração”. De novo, felicitações.


segunda-feira, 23 de março de 2020

O apocalipse digital


O apocalipse digital

Péricles Capanema

Neste primeiro parágrafo repito informações constantes de meu último artigo, precisa. Byung-Chul Han é sul-coreano, mora em Berlim, lá é professor universitário. A mais, filósofo libertário, tem livros vendidos no mundo inteiro; no Brasil, a Editora Vozes edita trabalhos dele. Michel Foucault poderia ser tido como um de seus inspiradores. Em 21 de março El País, centro-esquerda, o maior jornal espanhol, publicou enorme ensaio do sul-coreano sobre efeitos do coronavirus.

Nesse artigo, pretendo apenas transcrever afirmações de Byung-Chul Han, falam por si, os comentários meus serão mínimos. Título do ensaio enorme, do qual citarei extratos: “A emergência viral e o mundo do amanhã”. Se quisermos, a emergência do vírus e o futuro. Ele aponta os perigos que lobriga no futuro.

Sabem como o coronavirus é combatido em Pequim? Byung-Chul Han escreve: “A estrutura da vigilância digital tem sido extremamente eficaz para combater a epidemia. Quando alguém sai da estação de Pequim, uma câmera o capta imediatamente. Ela mede sua temperatura corporal. Se a temperatura é preocupante, as pessoas que iam sentadas no mesmo vagão recebem uma notificação no celular. O sistema sabe quem ia e em que lugar no vagão. As redes sociais informam que até mesmo drones estão sendo usados para controlar a quarentena. Se alguém rompe clandestinamente a quarentena um drone é enviado e lhe ordena voltar para casa”. Mais: “O Estado sabe onde estou, com quem me encontro, o que faço, o que busco, em que penso, o que como, o que compro, para onde me dirijo”.

Agora, situação na Coreia do Sul: “Quem se aproxima na Coreia de um prédio onde esteve um infectado recebe no celular, por meio de aplicativo, um sinal de alarma. Estão registrados no aplicativo todos os lugares em que esteve um infectado. Em todos os edifícios da Coreia do Sul existem câmera de vigilância em cada andar, em cada escritório, em cada loja. Com os dados do celular e do material filmado se cria um perfil do movimento completo de um infectado. Publicam-se os movimentos de todos os infectados. Nos escritórios do ministério da saúde coreano existem ‘rastreadores’ que analisam o material filmado e fazem o perfil dos movimentos dos infectados e localizam as pessoas que com eles tiveram contato”.

Em Taiwan “o Estado envia simultaneamente a todos os cidadãos mensagens para localizar as pessoas que tiveram contato com infectados ou informam os locais e edifícios onde existem pessoas contagiadas”. Taiwan “empregou uma conexão de diversos dados para localizar os possíveis infectados em função das viagens que fizeram”.

Foram apenas exemplos relatados no ensaio mencionado. Afirma ainda Byung-Chul Han: “Em Hong Kong, Taiwan e Cingapura existem poucos infectados. Em Taiwan, 108 casos; em Hong Kong, 193. Na Alemanha, em período mais curto, 15.320 casos; na Espanha, 19.980. Entrementes, começou um êxodo de asiáticos que saem da Europa. Chineses e coreanos querem voltar para seus países, porque lá se sentem mais seguros. Os preços das passagens subiram muito, é difícil encontrar lugares nos voos para a Coreia do Sul e China. A Europa está fracassando. A Ásia controla melhor a pandemia que a Europa”.

Continua: “Os Estados Asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan e Cingapura têm mentalidade autoritária. Confiam mais no Estado. Nem na China, nem em outros Estados asiáticos como Coreia, Hong Kong, Cingapura, Taiwan ou Japão existe consciência crítica diante da vigilância digital ou o big data. A digitalização os embriaga. Isso obedece também a um motivo cultural. Na Ásia impera o coletivismo. Na Ásia as epidemias não são combatidas só por virólogos, mas sobretudo por informáticos e especialistas em big data. Os apologistas do big data dirão que ela salva vidas humanas”

Com pequenas modificações, repito abaixo transcrições que já fiz em outro artigo: “Na China em nenhum momento da vida quotidiana você está fora da observação. Controla-se cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes sociais, a travessia em um semáforo vermelho. Na China existem 200 milhões de câmeras de vigilância, muitas com instrumentos de inteligência artificial. Os provedores chineses de celulares compartilham os dados sensíveis da seus clientes com os serviços de segurança e de saúde”. Em Wuhan houve emprego maciço da vigilância digital, em especial compartilhamento de big data. Infectados, suspeitos, encontros deles, tudo era monitorado em tempo real.

Como é possível tal controle, em especial na China? Byung-Chul Han afirma que a noção de “esfera privada” e direitos individuais é pequena na Ásia, em particular na China, ao contrário do que acontece na Europa. Então, as reações são menores que no Ocidente. É claro, há o problema da cultura, mas de momento há um problema muito maior: a China é dirigida pelo Partido Comunista Chinês, ateu, coletivista, imperialista.

E Byung-Chul desagua na conclusão: “A China poderá vender agora seu Estado policial digital como um modelo de êxito contra a pandemia, exibirá a superioridade de seu sistema ainda com mais orgulho. A comoção é momento propício para estabelecer um novo sistema de governo. Oxalá que depois da comoção provocada pelo vírus não se estabeleça na Europa um regime policial digital como o chinês”.

Resumindo, o controle digital minucioso mais que o sistema sanitário, está liquidando a pandemia, salvando vidas. A contrapartida: o controle estatal. É a versão atual do “Better red than dead”, expressão tão ligada a Bertrand Russell; de outro modo, a tentação de dar a liberdade em troca da vida. É 1984 com o domínio do Big Brother. Modernamente, o apocalipse digital.

Chegaremos lá? Não sei. Era inconcebível? Não. Poder-se-ia prever algo assim e nem era tão difícil. Há uns dois anos, o Zeca Patafufo (pseudônimo adotado por este pobre escrevinhador) publicou livro pequeno “Brigo pelos homens atrofiados”, conto jocoso, de fato conto-denúncia. Um dos personagens da história, Adamastor Ferrão Bravo, uma espécie de conselheiro, diz a certa altura: “Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imantada, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista; via nos intentos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza apavorante, a construção da utopia socialista dos ‘amanhãs que cantam’; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores”.

Sobre o perigo do avanço totalitário chinês [ou de outro poder] em países do Ocidente, o mesmo Adamastor Ferrão Bravo observou: “Em nossa quadra histórica só resta de pé uma defesa eficaz contra a neoescravidão, é no povo subsistirem vivos o senso moral e os hábitos de liberdade. O que nos livra da pior tirania são tais hábitos sociais enraizados”. Acho que o Adamastor tem razão.

É problema distante do Brasil a ingerência chinesa? E nem falo agora na economia. Devagar. O governador do Distrito Federal pediu oficialmente o auxílio chinês para combater o coronavirus. Nove governadores do Nordeste, o Consórcio Nordeste (Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia) fizeram o mesmo. Os mandatários do Nordeste afirmam que passaram a admirar ainda mais o povo chinês pela forma como enfrentou o coronavírus. São até agora dez governadores pedindo que a China comece logo a trabalhar aqui com qualquer forma de ajuda, pessoal, equipamentos, orientações, remédios. Pode aumentar o número dos suplicantes. Adamastor tinha razão.

domingo, 22 de março de 2020

A canhotada pira


A canhotada pira

Péricles Capanema

Marcos, ídolo do futebol, antigo goleiro do Palmeiras e da seleção, em 21 de março pelo instagram deu os parabéns de aniversário ao presidente Jair Bolsonaro, torcedor do time: “Feliz aniversário Presida! Força aí nesse momento, seja mais Jair e menos Messias, mantenha a fé, a paciência, humildade e a responsabilidade que o cargo exige, do mais, tamo junto! OBS: agora a canhotada pira, aguenta ou surta! Desativei os comentários, pronto, agora só eu falo, pra quem gosta de Cuba e Venezuela e querem que aqui seja igual, vai se acostumando e treinando a ter um ditador aqui no meu insta!”

A canhotada não aguentou, pirou. Marcos segurou as bolas e chutou de volta: “Fui roubado pelo maior esquema de corrupção da história da humanidade, vcs perdoaram? Eu não! Vcs são melhores que eu!”. A canhotada não surtou, mas pirou de novo.

Mais tarde, parece, gol vazado, Marcos mudou o tom e postou: “Amigos, agora é sério, sem tretas e provocações, o problema é grave. Torço do fundo do meu coração para que eu, toda minha família, vocês e os seus, consigamos passar por essa guerra sem perdas, vou dar um tempo com as brincadeiras e provocações políticas, porque não é mais o momento pra isso. O assunto é muito sério, vou dar um tempo por aqui, cuidem-se e que Deus proteja a nós e aos enfermos desse mal”. Não sei o que terá acontecido. Fica a impressão, houve contraofensiva cerrada. Imaginei, o título desse artigo poderia ter sido: Intolerância e exclusão.

Pouco depois, Marcos prometeu ajudar com um salário mínimo mensal durante seis meses a dez desempregados. Atitude bonita, ajudar os que agora sofrem, merece elogio.

Pensava, o Marcos foi jair, tenta ajudar (seja mais Jair e menos Messias). Mas quem resolver o caso do coronavirus vira messias. Foi aí recebi um verdadeiro ensaio enviado por amigo colombiano de décadas.

A análise é de 21 de março, publicada no El País, diário de Barcelona, o principal da Espanha, centro-esquerda; digamos, seria a Folha de São Paulo de lá. O autor do trabalho é Byung-Chul Han, intelectual sul-coreano que mora em Berlim, filósofo celebrado e professor universitário. Tem livros de ampla circulação em especial na esquerda libertária, vários dos quais traduzidos para o português e vendidos aqui. A Editora Vozes (que publica os livros de Leonardo Boff) edita livros de Byung-Chul Han. Por aí já se pode ter uma primeira ideia de qual orientação tem o sul-coreano. Ele pisaria, para simplificar, as pegadas de Michel Foucault. O título do ensaio que está no site do El País (seção Ideas – Opinión): “La emergência viral y el mundo del mañana. Byung-Chul Han, el filósfo surcoreano que piensa desde Berlim”.

O mais importante já está no cabeçalho: o mundo de amanhã. O ensaio começa com uma constatação: “Em Hong Kong, Taiwan, Cingapura existem poucos infectados. A Coreia do Sul também já superou a pior fase. Igual, Japão. Mesmo a China, o país de origem da pandemia, já a tem bastante controlada. Mas nem em Taiwan, nem na Coreia do Sul foi decretada a proibição de sair de casa, não foram fechados restaurantes e lojas. Entrementes, começou um êxodo de asiáticos que querem sair da Europa. Chineses e coreanos querem voltar para seus países, porque lá se sentem mais seguros. Os preços das passagens aumentaram. Está difícil conseguir passagens para a China ou a Coreia”.

Continua Byung-Chul Han: “Os Estados asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan, Cingapura têm mentalidade autoritária. Não apenas na China, mas também na Coreia ou no Japão a vida quotidiana está organizada muito mais estritamente que na Europa. Para enfrentar o vírus, os asiáticos apostam na vigilância digital. Na Ásia as epidemias não são combatidas só por virólogos, mas sobretudo por informáticos e especialistas em big data. Os apologistas da big data dirão que ela salva vidas humanas”

O filósofo diz que quase não há reação contra a invasão da vigilância digital na vida diária dos cidadãos. Continua: “Na China em nenhum momento da vida quotidiana você está fora da observação. Controla-se cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes sociais, a travessia em um semáforo vermelho. Na China existem 200 milhões de câmeras de vigilância, muitas com instrumentos de inteligência artificial. Os provedores chineses de celulares compartilham os dados sensíveis da seus clientes com os serviços de segurança e de saúde”.

Explica como foi detida a pandemia em vários locais da Ásia, em Wuhan inclusive, com o emprego da vigilância digital e compartilhamento de big data. Infectados, suspeitos, encontros deles, tudo era monitorado em tempo real. E aqui chego ao que pretendo particularmente destacar hoje: “A China poderá vender agora seu Estado policial digital como um modelo de êxito contra a pandemia, exibirá a superioridade de seu sistema ainda com mais orgulho. A comoção é um momento propício para estabelecer um novo sistema de governo. Oxalá que depois da comoção provocada pelo vírus não se estabeleça na Europa um regime policial digital como o chinês”.

Resumi muito, o ensaio é enorme. Em duas palavras, o controle digital minucioso mais que o sistema sanitário, está liquidando a pandemia, salvando vidas. A contrapartida: o controle estatal. É a versão atual do “Better red than dead”, expressão tão ligada a Bertrand Russell; de outro modo, a tentação de dar a liberdade em troca da vida.

Daqui a pouco poderão chegar ao Brasil equipes chinesas para ajudar no combate ao coronavirus. Alucinações? Elas já estão na Itália. Lá também estão médicos cubanos que foram aplaudidos ao desembarcar. Está também chegando a ajuda russa, equipamentos e cerca de 100 médicos epidemiologistas.

As patrulhas calarão os brasileiros temerosos de perder a liberdade? Se os emudecerem, a canhotada vai então deixar de pirar e passar a ganhar de goleada. Concluo. Não estou inventando hipóteses distantes. Existe o problema, arrombou nossas portas. Apenas o exponho ao ecoar de forma muito resumida, praticamente sem comentários, o que um intelectual libertário, inimigo do capitalismo, afirmou em diário esquerdista espanhol de grande circulação.