domingo, 22 de setembro de 2019

A ovelha perdida


A ovelha perdida

Péricles Capanema

"E chegavam-se a ele todos os publicanos e pecadores para o ouvir. E os fariseus e os escribas murmuravam: ‘Este homem recebe e come com pessoas de má vida!’. Então, lhes propôs a seguinte parábola: ‘Quem de vós que, tendo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? E, depois de encontrá-la, a põe nos ombros, cheio de júbilo, e, voltando para casa, reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Regozijai-vos comigo, achei a minha ovelha que se havia perdido. Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um só pecador que fizer penitência do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento’”. (Lc, 15, 2-7)

Enquanto escutava o Evangelho, comecei a imaginar a cena. Ela se passa no deserto. Já me chamou especialmente a atenção. Ovelhas pastando em região árida. Muitas, cem ovelhas, de repente uma tresmalha que afunda na imensidão (ou na escuridão). Saí o pastor atrás dela sem hora para voltar; enquanto não a localiza não retorna ao rebanho.

Aí tomei um susto. Deserto, noite provavelmente, o pastor na procura. E, de início, não consegui resolver o nó. Pensei em quem ouvia a parábola, alguns deles pastores, outros parentes, gente do ramo. E não experimentaram estranheza, como a minha?

Aqui vai meu assombro. De fato, se um pastor tiver a seu cargo e lado cem ovelhas, com os instrumentos pobres de agregação daquela época (um bordão, brados, comidas pobres), nunca delas se afastaria para ir atrás de uma desaparecida. Sem direção, expostas a predadores, lobos rondando, a ladrões, ao descaminho, dispersas na escuridão, perderia todas, sem ao menos ter a garantia de que encontraria a tresmalhada. Veio-me naturalmente ao espírito outro versículo: “E vendo aquelas multidões, [Jesus] compadeceu-se delas, porque estavam fatigadas e como ovelhas sem pastor” (Mt, 9, 36).

Ainda, a parábola da ovelha perdida nada diz sobre a possibilidade de as colocar sob os cuidados de outro pastor ou de as trancar no redil. Estão no descampado, o pastor as deixa e vai atrás da extraviada.

Contudo, pelo que sei, a parábola nunca provocou perplexidades; ao contrário, encantou os presentes e vem encantando os que a ouvem ao longo dos séculos. A razão é simples: os ouvintes fixam o espírito nas realidades morais, objeto da parábola, e abstraem a realidade tangível naquilo que não se coaduna com a beleza espiritual ali ensinada. Não era sobretudo uma cena bucólica, era principalmente ensinamento moral.

No mundo para o qual o conto nos convida o olhar, o bom pastor à vera nunca abandonou as noventa e nove, delas sempre cuidou. “Dos que me deste, não perdi nenhum” (Jo 18, 9). Apenas uma coisa a parábola queria destacar, amava a ovelha tresmalhada, perdida nas brenhas, exposta aos predadores, e atrás dela se lançou disposto a todas as formas de sacrifício.

Adiante. São Lucas diz que todos os publicanos e pecadores ouviam a Cristo. Os judeus odiavam os publicanos, coletores de impostos para os romanos. De outro modo, drenavam riquezas de um povo pobre, eram agentes da dominação estrangeira em nação profundamente nacionalista. E os pecadores viviam de costas para a Lei. Os dois grupos atraíam o desprezo dos bem-pensantes, fariseus e mestres da lei.

De um lado, aparentemente a justiça, fria e implacável. De outro, o espírito da Lei Nova, colocando a misericórdia em extremos que poderiam parecer demasias.

No mesmo capítulo 15 está a parábola do filho pródigo; ela também pode provocar perplexidades. O filho gastador e irresponsável exige e recebe a herança inteira em vida. Vira as costas para os seus, some no mundo, queima o dinheiro em farras. O pai, todos os dias, deixa a casa e caminha pela estrada para ver se lá longe surgiria a silhueta do filho. Nada. Um dia o filho sumido volta pobre, faminto e humilhado: “Não sou mais digno de ser chamado teu filho, trata-me como um dos seus empregados”.

Resposta do pai:Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Coloquem um anel em seu dedo e calçados em seus pés. Tragam o novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa e alegrar-nos. Pois este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado”. E começaram a celebrar o regresso.

A música estrondeava os ares, corriam soltos os festejos, o bom filho primogênito longe, labutava no campo paterno. Quando se aproximou da casa, surpreso se informou do que estava acontecendo e se enfureceu pela suposta injustiça gritante. Recusou-se então a participar da comemoração e ainda repreendeu o pai: “Olha! todos esses anos tenho trabalhado como um escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens. Mas tu nunca me deste nem um cabrito para eu festejar com os meus amigos. Mas quando volta para casa esse teu filho, que esbanjou os teus bens com as prostitutas, matas o novilho gordo para ele!”.

Demasias? De novo, a Lei Nova leva a misericórdia a extremos que, de fato, não destroem. Edificam. Vivificaram a Igreja, vivificaram a ordem temporal cristã, vivificaram famílias, levaram almas a realizar maravilhas inconcebíveis no mundo pagão. É a vida divina fluindo no meio dos homens.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

A fossilização das sociedades comunistas


A fossilização das sociedades comunistas

Péricles Capanema

Faz falta clareza solar a respeito da relação entre sociedades fósseis e comunismo. Em ampla proporção o comunismo caiu na Europa Oriental pela paradeira prevalente em grandes faixas do público. O sistema gestava estagnação, difundia o torpor, causava sensação de imobilidade. Em especial, socava goela abaixo letargia e fechamento de horizontes pessoais para a juventude e para os setores mais talentosos do público, enquistados em todas as faixas, desde o operariado até as camadas letradas. Fossilizados os regimes, na decomposição, aquilo explodiu como um cadáver apodrecido. Uma vez mais, a utopia, cega à natureza humana, gerou o desastre. Outro título possível para o artigo: A fossilização das sociedades igualitárias. Ainda: A fossilização das sociedades coletivistas. No caso, é a mesma coisa, igualitarismo, coletivismo, comunismo. Horizontes fechados, poucas aspirações, pouco consumo, o atraso levando à involução.

É o que oferecem ainda hoje os petistas ao Brasil, petrificados na utopia perversa, desde os mais radicalizados até os proclamados moderados e setores que são seus companheiros de viagem ou inocentes úteis. De outro modo, suas iscas na realidade acarretarão a fossilização, por via rápida ou gradual. Lembra a velha disputa entre jacobinos, os radicais, e girondinos, os moderados, na Revolução Francesa.

O petista Rui Costa, reeleito governador da Bahia, tenta agora tornar viável a amarga receita tóxica, que vem envenenando povos há mais de século, girondinamente colocando nela água e açúcar. Em entrevista à Veja (Páginas Amarelas, 18.9.19) dá o tom da política que espera vencedora: “O certo era ter apoiado o Ciro Gomes lá atrás. Nenhuma outra liderança teria condições de superar o antipetismo”. Contudo, o político soteropolitano continua namorando o chavismo, disparado na via jacobina: “Assim como considero um exagero dizer que o Brasil é uma ditadura, não tenho elementos para classificar a Venezuela dessa forma”.

Rui Costa vem afivelando bem a máscara do moderado, com ela espera desfilar a partir de agora na Sapucaí da política. E não está só, vários outros dirigentes do PT apostam no mesmo recurso, como entre outros, Jaques Wagner e Camilo Santana. De começo, para não parecer um dinossauro, evita propor estatização, menina de olhos da esquerda: “O cenário mundial mudou. É preciso um novo olhar sobre gestão pública. Nos governos petistas, sistemas de água e esgoto foram financiados pela União. Não é possível replicar isso hoje. Devemos abrir os horizontes. Na Bahia, por exemplo, eu já tenho uma política para atrair negócios em parcerias público-privadas”.

Quem diria, um petista proclamando que estatização é para gente de horizontes acanhados. Tem razão, ainda que tardia, é para quem favorece atrofia nas personalidades, anemia na economia e fossilização social. Só que antes não se sentiam obrigados a exprimir o óbvio.

Finalmente, o governador baiano avisa que, postas certas condições, não recusaria candidatura presidencial em 2022: “Hoje, quero construir com outras lideranças essa alternativa [um projeto de país, seja lá o que isso possa significar]. Mas é óbvio que, se digo que estou disposto a construir algo, então estou disposto a assumir qualquer tarefa”.

Espumou imediatamente a Comissão Nacional Executiva do PT, para Rui Costa atitude conveniente, pois consolida sua imagem de moderado. Respigo dois pontos da nota: “O eventual apoio do PT a Ciro Gomes, se à época já não se justificava porque nunca foi intenção dele constituir uma alternativa no campo da centro-esquerda, hoje menos ainda, dado que ele escancara opiniões grosseiras e desrespeitosas sobre Lula, o PT e nossas lideranças”. Continua o órgão dirigente petista defendendo Nicolás Maduro: “Nossa visão sobre a Venezuela considera primeiramente que o país vizinho se encontra sob criminoso embargo econômico e tentativa de intervenção militar estadunidense (com apoio do governo Bolsonaro), o que denunciamos em todos os fóruns”. O PT, petrificado, ORCRIM em tantos episódios recentes nossa história, porta-bandeira ufano do atraso, sonha dia e noite em impor o bolivarianismo.

Pela via girondina, com a hoje provável vitória kirchnerista, a Argentina será gradualmente empurrada rumo à situação venezuelana. Estamos imunes a tal quadro? Óbvio, não. A volta do PT ao Planalto, por meio de suas alas jacobinas ou girondinas, é a ameaça mais próxima de fossilização social para o Brasil, no que terá apoio entusiástico da CNBB, CPT, MST e forças afins. No exterior, virão apoios da China e da Rússia, que já vêm sustentando a tirania chavista. E aí, fuga de capitais, consumo em frangalhos e generalização da miséria.

Tal ameaça é potencializada pelo mantra generalizado de que é preciso diminuir as desigualdades sociais no Brasil. De acordo, é política saudável, necessária e urgente, desde que colocadas certas premissas. Como tais balizas quase nunca são colocadas, o mantra na prática bafeja a fossilização.

Para que a sociedade tenha igualdade proporcionada (lembro Aristóteles) ou, se quisermos, desigualdades harmônicas, é mais urgente hoje favorecer a plenitude, sinônimo de vida. Estimular as potencialidades da vida em todos os âmbitos, moral, institucional, econômico. E com isso, pela mais ampla aplicação do princípio da subsidiariedade, fortalecer a sociedade em relação ao Estado. Um choque de fundo perpassa o Brasil, plenitude versus atrofia. A aplicação das receitas comunistas, puras ou em solução diluidora, inibe o impulso rumo à perfeição, que é a atração pela plenitude.

Meses atrás publiquei livrinho de contos sob o título “Brigo pelos homens atrofiados”, utilizando o pseudônimo Zeca Patafufo, que tratava desse tema. Na historinha, o personagem Adamastor Ferrão Bravo advertia figuras do governo dos Estados Unidos, desenhando ampla visão de conjunto, da qual retiro o seguinte e já peço perdão pela extensão do texto: “O coletivismo cobra seu preço. Mesmo nos Estados Unidos seu perigo é maior que o do individualismo. Se estourarem guerras ou crises econômicas com recessão prolongada, aos olhos do público, o consumo, dado por excessivo, poderá ser restringido drasticamente por pilhas de medidas autoritárias; outro motivo para restrições, a degradação ambiental, que estaria atingindo níveis intoleráveis. E, então seria mais que normal para uma montoeira de gente, alegado o estado de necessidade, desrespeitar individualidades e, congruente, frear o desenvolvimento e, com isso, ficará forçoso rifar liberdades hoje existentes ▬ espaços de oportunidade e crescimento pessoal ▬, confrangimentos impostos até mesmo por autoridade mundial. Será meio de cultivo para correntes atreladas a ideias românticas da vida tribal, adeptas do pouco consumo, que de momento fazem a cabeça quase tão-só de pessoas do mundo universitário. Decrescimento e crescimento negativo viraram ali conceitos na moda. Essa batelada de disparates pavimenta a rota do apagão do homem”.

O que torna viável o apagão? As sociedades fósseis.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Retrocesso na Inglaterra


Retrocesso na Inglaterra

Péricles Capanema

Não vou tratar aqui do imbróglio Brexit. Deixo suas ameaças e incompreensões para eventual outro artigo. O caso pode causar enorme retrocesso em várias frentes. É de outra regressão, menos imediata, certamente mais funda, o que esmiúço nas linhas abaixo.

Antígua e Barbuda, Austrália, Belize, Barbados, Canadá, Granada, Jamaica, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, São Cristóvão e Nevis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Ilhas Salomão, Bahamas, Tuvalu. British Commonwealth. O Reino Unido é composto de quatro nações, Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do Norte. Inglaterra, Gales e Escócia formam a Grã-Bretanha. Também British Commonwealth. Constituem todos, repito, a British Commonwealth, cuja tradução, entre várias, poderia ser comunidade das nações britânicas. Têm um só chefe de Estado, a rainha Elisabeth II. Ligados por vários laços construídos pacientemente ao longo das centúrias, esses países constituem uma liga de mútuos bons ofícios, abertura e benevolência recíprocas. Um pouco distante, olhando para a mesma direção, encontram-se Estados Unidos, Índia, Paquistão. De tal comunidade de povos, ligados por tantos laços, e ressalto, os do afeto, consideração e respeito, advêm enormes vantagens comerciais mútuas, facilidades de viagens, de estudos, proteção militar, tanta coisa mais.

No centro, uma pequena ilha, poucas riquezas naturais, governada por séculos com espantosa continuidade operosa. A realidade empurra o observador a se inclinar diante do senso político extraordinário ali incrustado  senso de governo que faz lembrar, e quem sabe os supera, os romanos das idades clássicas.

Senatus Populusque Romanus ▬ o Senado e o Povo Romano. Chamo a atenção agora para a palavra Senatus. E para a realidade, conselho formado por pater famílias, os chefes das famílias patrícias. Depois a ela volto.

Corta. Um salto para a História contemporânea. Corria 1937. Winston Churchill, então no ostracismo, carreira encerrada, tudo o indicava, pois era rejeitado no seu partido devido à oposição feroz que fazia ao nazismo e a seu armamentismo, foi convidado para ir à embaixada alemã em 21 de maio, onde o esperava o embaixador Joachim von Ribbentrop, depois ministro do Exterior do Terceiro Reich. Foi-lhe apresentada a proposta de um pacto entre a Alemanha nazista e a Inglaterra. O político inglês a rejeitou prontamente. Então Ribbentrop virou as costas bruscamente e disse: “Sendo assim, não há saída. A guerra é inevitável. Hitler está resolvido. Nada o deterá, nada nos deterá”. Winston Churchill, calmo, disse ao chefe nazista mais ou menos o seguinte: “Não subestime a Inglaterra e de modo especial não a julgue pelas atitudes do presente governo. Ela é muito inteligente. Se vocês nos afundam em outra grande guerra, ela coligará o mundo inteiro contra vocês, como fez na última vez”. Ribbentrop redarguiu: “A Inglaterra pode ser muito inteligente, mas desta vez não coligará o mundo inteiro contra nós”. Churchill foi embora. Veio a guerra, a Inglaterra coligou o mundo contra Hitler, venceu-a, é o mesmo senso político em atividade.

As realidades políticas duradouras estão enraizadas em realidades sociais, delas recebem a seiva. A classe política inglesa em boa medida é reflexo da vida, no campo e na cidade, de famílias que em graus muito diferentes marcaram a história inglesa. Winston Churchill era desse meio. E mesmo os políticos que dali não vieram respiraram tais ares, moldam seu comportamento pelos valores e costumes que pautam as relações entre esposos, filhos, parentela e conhecidos das famílias antigas do Reino Unido. É valor social, para ficar por aqui, de enorme valia. Mais precisamente, tem enorme função social. A Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes, a própria realeza, sem essa realidade humana que as embasa, seriam corpos de vida anêmica. Têm elas na Inglaterra papel análogo ao Senado romano.

Embora já não se possa falar em sociedade de ordens, referir-se ao fato em comento apenas como sociedade de classes seria apressado, superficial e deformante. À vera, ainda permanece no ar o perfume da sociedade de ordens, continua tendo vitalidade o senso do bem comum, não morreram comportamentos que tiveram seu auge nas épocas de esplendor da cavalaria cristã. Com tais balizas, a benéfica mobilidade social, para cima e para baixo, assimilações e decadências, respeitam a estabilidade, fazem-se enfim sem lesar o bem comum. Estou escondendo os possíveis abusos, deformações, favoritismos injustificáveis? Não, apenas não os estou colocando no quadro para que o essencial seja visto em primeiro lugar. Do mesmo modo que faria ao analisar a situação do bombeiro, de evidente relevância social, sem de início aludir a profissionais corruptos, relapsos e omissos.

Por que coloquei no título retrocesso na Inglaterra? Para não deixar passar batida uma involução, um sintoma dela aponto no próximo parágrafo, que pode, com o tempo, perenizar fossilização regressiva, tantas vezes característica de sociedades igualitárias.

A Editora Debrett publica desde 1769 um anuário, hoje intitulado Peerage and Baronetage, espécie de almanaque da nobreza e aristocracia inglesas. Todos os títulos ali constantes têm sua história, muito deles de grande ressonância, significam a justo título muito no mundo saxão, mas não representam a essência do fenômeno (são dele reflexo) que aqui coloco na lupa: o miolo é o cultivo amoroso da excelência, no caso, a social, por boa parte do público. Isso é motor do avanço em qualquer sociedade.

Informa Vivian Oswald no jornal Globo, a edição impressa de 2019 do Peerage and Baronetage, a 150º, será a última. Razão decisiva, o álbum de dois volumes dá prejuízo. São muito altos os custos de produção, distribuição e estocagem do artístico e informativo trabalho, capa de couro, cerca de três mil páginas. A publicação continua na internet, com consulta paga. A propósito, esta última edição, preço promocional, sai por 405 libras.

Em resumo, parece, o público já não se interessa o suficiente para ser lucrativo manter em circulação um dos símbolos da grandeza da Inglaterra. Acostumou-se com horizontes mais acanhados, em que aparece menos a atração pela excelência, no caso, um marco do apreço pela perfeição social. É rota para o atraso, fenômeno que pode ter efeitos mais fundos que o imbróglio Brexit.

domingo, 1 de setembro de 2019

Esperar é saber


Esperar é saber

Péricles Capanema

“Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe, faz a hora, não espera acontecer”

É conhecido, os dois versos, símbolos das agitações de 1968 no Brasil, fazem parte de “Caminhando”, letra de Geraldo Vandré (ou “Para não dizer que não falei de flores”), ainda hoje repetidos a propósito de tudo e de nada. Não vou aqui discorrer sobre as disputas no interior da esquerda (inclusive a terrorista) refletidas nos mencionados versos. Quem conhecia as táticas revolucionárias, era a ilusão, poderia precipitar acontecimentos, passar por cima de atitudes prudenciais, enfatizadas por outros setores da esquerda, que postulavam a necessidade de esperar, em vista da apatia da opinião pública brasileira. “Pelas ruas marchando indecisos cordões”. O conhecimento traria a tática revolucionária eficaz, geradora da hora revolucionária, desencadearia engajamento nos vacilantes e apáticos; finalmente, causaria o acontecimento revolucionário decisivo.

Balelas. O amazônico acontecimento era outro. Ainda que escamoteado naqueles tempos em tantas análises, a apatia da opinião pública, que não aderia à pauta revolucionária, emperrava as possibilidades das correntes revolucionarias e inviabilizava seus planos. O povão estava noutra. Ainda hoje está noutra.

Com efeito, para ódio das lideranças comunistas e comunistoides, naquele ambiente de guerra fria, de choques entre comunismo e democracia liberal, entre religião e ateísmo, de tensões entre Rússia e Estados Unidos, o desinteresse popular pela esquerda no Brasil não publicado (ou divulgado) impedia o triunfo do programa revolucionário, favorecedor do bolchevismo.

Havia um matiz a pôr em relevo, existe forte ainda hoje: aderia de fato ao programa revolucionário apenas fatia minoritária da burguesia, do dinheiro ou da inteligência, enquistada sobretudo no alto empresariado, no clero, na academia e nos meios de divulgação. É a opinião publicada (diferente de opinião pública), gente muito divulgada. E, outrora como hoje, pois o quadro nas linhas gerais se mantém inalterado, tal fatia do público de forma arbitrária se julgava e ainda se julga porta-voz popular.

Convém lembrar, o ápice das mencionadas agitações foi a batizada pela mídia “Passeata dos 100 mil”, realizada em 26 de junho no Rio de Janeiro, várias vezes glosada entre outros por Nelson Rodrigues. Abaixo pincei um de seus comentários mais pertinentes:

“Vocês se lembram da Passeata dos Cem Mil, a famosíssima Passeata dos Cem Mil? Os meus leitores, se é que os tenho, já repararam que eu a cito muito. E por quê? Quem quiser entender as nossas elites e o seu fracasso encontrará nos Cem Mil um dado essencial. Não havia, ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem cabeça de bagre. Eram os filhos da grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites. E sabem por que e para que se reunia tanta gente? Para não falar no Brasil, em hipótese nenhuma. O Brasil foi o nome e foi o assunto riscado. Picharam o nosso Municipal com um nome único: — Cuba. Do Brasil, nada? Nada. As elites passavam gritando: — “Vietnã, Vietnã, Vietnã!”.

Já disse, a situação continua hoje no miolo parecida à exposta pelo jornalista recifense décadas atrás: o povo distante das metas revolucionárias e um naco das elites, em parte por mimetismo e subserviência a modas estrangeiras, a elas atrelado. Formam um Brasil desnaturado, repito, mimetista e subserviente. Falador, expansivo ▬ e divulgado. O mutismo toma conta da maioria. Será preciso que para felicidade nossa um dia os mudos falem. Para expandir uma boa influência.

É útil entronizar tal situação no alto de nossas reflexões ao analisar a presente crise a propósito da Amazônia e das queimadas que ali acontecem. Tal crise é muito mais presente no Brasil divulgado (o Brasil da opinião publicada) que no Brasil mudo. Aliás, a crise no presente está tomando rumo favorável.ao Brasil. No curto prazo.

E no longo prazo? Só Deus sabe. É o que mais interessa, contudo. Desta crise, sob olhar de longo prazo, só vou pôr aqui em evidência um aspecto saneador, indispensável para sua boa solução, mas desconhecido quando não silenciado, como se poderá ver abaixo. Nunca devíamos nos esquecer dele.

Em síntese, ´agora um pouco utópico, mas que volte a ter relevância decisiva gente que represente de fato o Brasil no que tem de melhor em todos os âmbitos. É representação natural, nascida do fato, transcende a representação parlamentar e tende a moldá-la. Conta na vida real, ex facto oritur ius. Se não caminharmos nessa direção, o Brasil terá dias tristes pela frente. No caso, que seja excelente na correção, na inteligência, na habilidade, na firmeza. O clima seria outro, outros seriam os rumos e os resultados.

Existem ainda entre nós pelo menos raízes que, desenvolvidas, poderão dar origem a densa vegetação e finalmente dominar a paisagem, resgatando assim a imagem pátria, hoje maculada por quem não lhe quer bem. Será maneira de apagar incêndios, abafar queimadas, eliminar sequelas prejudiciais decorrentes da presente crise, se conduzida desastradamente. E de futuras.

Sem tal pano de fundo, o senso da necessidade de que o Brasil tenha uma representação à sua altura, será a bem dizer impossível escapar do ambiente tóxico em que a boçalidade, primarismo, oportunismo, arrogância, prepotência envenenam, por exemplo, as relações entre Brasil e França, de momento o entrevero mais doloroso, mas não único. É urgente que o vento leve embora tal fumaça e se restaure o clima puro, fresco, oxigenado, que em tempos passados começava a existir. Só nele os dois países poderão buscar seus melhores objetivos, sem sequelas de choques desnecessários, para dizer o mínimo. Pode demorar, é certo, mas que haja um trabalho nessa direção e se esperem os bons resultados. Esperar é saber.

Analiso então em rápidos traços a situação mais candente na crise atual, França e Brasil. A maior fronteira da França é com o Brasil. Mais importante que a linde extensa, a perder de vista, é a preservação e melhoria já de mais de século das relações especiais de apreço e consideração existentes entre os dois países; diria mais, tantas vezes de encanto mútuo. O francês já foi a segunda língua de todo brasileiro educado. E por sintomático repiso (já evoquei as palavras outras vezes) o que disse Fernand Braudel (1902-1985), dos maiores intelectuais franceses do século XX: “Foi no Brasil que me tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida, eu passei no Brasil”.

Também emblemático, fato narrado por Gilberto Amado (1887 – 1969) em suas memórias deixa ver a relevância de se manter tal clima. Corria 1933, o homem público sergipano havia sido convidado para falar sobre Direito Penal na Sorbonne para professores de Direito e pessoas ligadas à área jurídica. Auditório benévolo, mas muito exigente, parte da alta cultura francesa ali presente. Um professor da Sorbonne, Georges Dumas (1866 – 1946), amigo do conferencista, o havia apresentado sob luz favorável. A expectativa era grande. Gilberto Amado assim começou sua conferência: “En venant du Brésil, ce pays du soleil, vers la France, je viens de la lumière vers la clarté” [Vindo do Brasil, este país do sol, para a França ▬ venho da luz para a clareza]. Conquistados e encantados com o gancho, os presentes aplaudiram vivamente. A conferência foi um êxito. Antes de começar a lição, vê-se bem, o conferencista, na época das maiores expressões da inteligência brasileira, inclinava-se contente diante de uma das principais características da cultura francesa e a homenageava. Ali as elites da inteligência, de um e outro país, se oscularam para bem dos povos francês e brasileiro. É insano desprezar acervos assim, nutridos pela História, existentes nos mais variados âmbitos da vida social, determinantes, quando bem utilizados, para as relações benéficas entre os  povos. Sem tal perfume, as reações entre a França e o Brasil (e também relações com outros países) terão sempre um travo azedo.

Falei da inteligência. Tratarei agora da inteligência, tato e firmeza. Um último fato. Há maneiras superiormente eficazes de lidar com os atentados à soberania e nós já as presenciamos. Em 1905 e 1906 (o caso Panther) foi violada a soberania brasileira em Itajaí, caso de marinheiro que trabalhava na canhoneira Panther. De um lado, estava uma das grandes potências do mundo, grande poder militar, a poderosa Alemanha do imperador Guilherme II. De outro, um país fraco e agrícola, com as relações exteriores a cargo do barão do Rio Branco (1845-1912). Hábil, seguro, educado e firme, o barão conduziu o caso de modo a que, a Alemanha julgasse melhor pedir desculpas formais ao Brasil. Qualquer biografia objetiva do barão do Rio Branco descreve bem o incidente. Por nota datada de 2 de janeiro de 1906, o representante alemão no Brasil, barão de Teutler, asseverou, não houvera intenção alguma de se desrespeitar a soberania do Brasil, bem como reiterou os votos de amizade. Mais ainda, informou que os responsáveis pelo incidente seriam submetidos a julgamento militar. Aqui está nota da pena do chefe da diplomacia brasileira: “O Governo Brasileiro aprecia devidamente a retidão e presteza com que o Governo Imperial procedeu no exame e decisão deste caso, dando mais uma prova dos seus elevados sentimentos de justiça. Não pode, entretanto – quaisquer que sejam os usos das marinhas de guerra em outros países – deixar de lamentar que o Comandante da Panther tivesse incumbido oficiais e praças da sua guarnição de fazer indagações em terra, mesmo obrando com a maior reserva e prudência, para verificar o paradeiro de um desertor, tanto mais quanto o mesmo Comandante declara que contava com a boa vontade das autoridades territoriais, às quais compete, incontestavelmente, praticar as diligências de polícia necessárias para a descoberta, captura e entrega de desertores".

Por que recordo tudo isso? Preliminarmente, para tirar do mutismo (ou melhor, do olvido e do desconhecimento) fatos que merecem ser divulgados. Em segundo lugar, para subir os padrões de comparação, é sempre estimulante ter diante dos olhos modelos de excelência. Em terceiro, para lembrar a importância de criar ambiente permeado de elevação, em que floresçam a compreensão e a admiração mútuas (prévio ao surgimento de problemas), que facilite o bom encaminhamento das soluções. Todos os brasileiros que prestam esperam que passem as nuvens tóxicas, acabem as queimadas em nossa reputação (e as desautorizadas na Amazônia), para que o ar se torne cada vez mais impregnado de civilidade, inteligência e busca efetiva dos interesses nacionais. Como no exemplo de Gilberto Amado e do barão do Rio Branco que, nos casos relatados, agiram de maneira eficaz favorecendo interesses do Brasil. Esperemos e trabalhemos com paciência, com a esperança de chegar a bom porto. Em muitas ocasiões, esperar é saber.