quinta-feira, 25 de março de 2021

Privatização à brasileira - 2

 

Privatização à brasileira - 2

 

Péricles Capanema

 

A imprensa divulga hoje, 25 de março, que o programa de desestatização do Brasil deu mais um passo. Desestatização ou privatização, tanto faz. A Petrobrás fechou a venda de uma de suas refinarias (oito estariam à venda) para o fundo Mubadala dos Emirados Árabes. O valor total seria US$1,65 bilhão de dólares. Falta-me competência para julgar se o preço é justo. Vou tratar de outra coisa.

 

O Brasil do atraso. Inicialmente, sempre é preciso ter em vista as repetidas declarações do dr. José Salim Mattar que entrou no governo para levar adiante a privatização, saiu de lá desiludido e hoje manifesta crescente preocupação e dúvidas quanto ao êxito do esforço. O programa está moribundo, o navio faz água por todos os lados, é a opinião do influente líder empresarial. O dr. Salim Mattar vê decisivos setores estatizantes, o Brasil do atraso, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário: “O Establishment não quer privatizações. Tudo é motivo para não privatizar. E Establishment, vamos deixar bem claro, é o Executivo, Legislativo e Judiciário, mais os oportunistas de momento. Podem ser sindicatos, pode ser imprensa, falsos empresários atrás de CNPJ. O modus pensante de 35 anos de social-democracia é manter o Estado grande, gigantesco. Onde já se viu o Estado entrar em meios de produção, fornecendo energia elétrica, produzir pólvora. É um atraso total. O Establishment se assustou com a pauta liberal. Lenta e gradualmente foram se opondo à pauta liberal”. O país do atraso não muda.

 

O Brasil da enganação. É privatização a conta-gotas, enfim. De quando em vez, uma fatia vai para a iniciativa privada. Vai mesmo? Vamos tratar da mais recente, anunciada hoje, 25 de março, a chamada privatização da Refinaria Landulpho Alves (Rlam), no Recôncavo Baiano. Foi promovida pela diretoria da Petrobrás. A refinaria foi comprada pelo fundo soberano Mubadala, uma holding estatal, de propriedade integral do governo do Abu Dhabi. De outra maneira, a compradora é uma estatal de alto a baixo. No programa de privatização brasileiro, haverá a transferência de uma refinaria de propriedade de uma sociedade de economia mista, cujo capital está dividido aproximadamente assim: Grupo de controle 36,75% (governo federal 28,67%, BNDESPar 7,04%; BNDES 1,04%); Investidores não-brasileiros 41,73%; Investidores brasileiros 21,52%; Investidores institucionais 9,32%. Outros 12,20%. Só destaco um ponto na tabela. Os investidores não-brasileiros e os investidores brasileiros detêm mais de 60% das ações da empresa. É capital privado. Deixo de lado o restante do capital privado. A refinaria, cuja propriedade acionária já era de maioria de capital privado, no programa de privatização do governo brasileiro, passará a ser propriedade total de uma estatal do governo de Abu Dhabi. Todos chamam isso de privatização. Vão continuar a chamar. Ninguém muda o absurdo da qualificação. Antes, parcialmente estatal, com controle do Estado, mas com maioria de capital privado. Agora, totalmente estatal, propriedade de governo estrangeiro. Privatização exitosa, sem dúvida. O país da enganação não muda.

 

O Brasil da impostura. Em artigo de 17 de dezembro de 2019, também intitulado “Privatização à brasileira”, observei: “Privatização em qualquer idioma da Terra significa transferir o bem estatal para a iniciativa privada. E, com isso, obter ganhos de eficiência, diminuir a perigosa ingerência do Estado na economia e, com a economia melhorada, possibilitar melhor atendimento aos pobres. No Brasil, não. Privatização significa transferir a propriedade de estatais brasileiras para estatais de outros países, em especial às estatais chinesas. Essa privatização, que traz no bojo o aumento da influência do Partido Comunista Chinês sobre a economia brasileira, fará o PT dar cambalhotas de alegria. Tem mais: a privatização vai ser pelas beiradas. O núcleo mais valioso continua nas mãos do Estado. É a autêntica privatização à brasileira, coisa nossa, não vista em nenhum país do mundo”. Tratei ainda do tema várias vezes. Em texto de 9 de janeiro de 2020, intitulado “A impostura continua intacta”, observei que o Brasil estava transferindo propriedade estatal brasileira para estatais de outros países, em política de muitos anos. Era uma impostura já velha, continuava intacta e levantava delicados problemas constitucionais e de soberania. Citava artigos constitucionais que estariam sendo esbofeteados. Notava então: “Sei, levantei questões pela rama, não as estou solucionando. A resolução demandaria rios de tinta. Mas o mero fato de levantá-las, passo inicial da caminhada, já aponta para começo de solução. E as suscitei porque creio, ou estou muito errado ou estamos diante de graves ofensas à Constituição. Sei, ninguém tratou delas antes (pelo menos não vi). Sempre tem a primeira vez. Convido então os constitucionalistas: estudem por inteiro a questão, reflitam, discutam. E depois, para esclarecimento da opinião pública, o caso é delicado, opinem com prudência e doigté, que sejam palavras embebidas do senso agudo dos interesses brasileiros. Só peço uma coisa: objetividade, nunca esbofetear a lei maior. E já aviso, a patrulha sairá dos gonzos, já que é tema proibido. Vai atacar furiosamente. Em resumo, continua intacta a impostura. Em espantoso retrocesso, o garrote vil afoga na garganta, mesmo dos mais lúcidos e informados, as palavras de previsão e alarma”.

 

Repeti muito, sei. É que tais problemas permanecem, agravando-se, com a impostura se solidificando, em mais um sinistro capítulo da espantosa privatização à brasileira. Pelo menos é necessário deixar o problema claro.

 

A cura do mendigo cego

 

A cura do mendigo cego

 

Péricles Capanema

 

Cegueira involuntária e cegueira voluntária. Estava lendo noticiário nacional, mas o que me vinha à cabeça estava longe dele, era a cena poética da cura do cego de Jericó. Corrijo-me, em parte, é falso o que afirmei. Vinha ao espírito não só a pobre cegueira involuntária do mendigo cego curado por Jesus, mas a situação dantesca da cegueira voluntária, realidade amazônica, fruto dos erros da inteligência e das prevaricações da vontade. Cegueira voluntária, real ou apenas moralmente; um homem que fura os próprios olhos é sempre cena dantesca. A primeira foi eliminada no mendigo pela voz de Cristo.

 

Ativismo compassivo. Teremos força para eliminar a segunda, a voluntária? Ou, por outra, existe cura para a noite voluntária do espírito? Para alguém que se inflige a cegueira mental, pior que a material padecida por um mendigo nas estradas da Palestina? Existe, sim. Qual? Voluntária, também. Esclarecendo-o, ajudando-o a mudar o rumo da vontade, estimulando novos hábitos de pensamento e conduta. É ativismo compassivo. Aviso, sob a luz da compaixão, cegueira voluntária e vacinação serão o miolo do artigo. Além da cura do cego de Jericó.

 

A tua fé te curou. Jericó, como se sabe, fica na Palestina, Cisjordânia, às margens do rio Jordão, a umas cinco léguas de Jerusalém. “Cidade das Palmeiras”, é considerada a cidade mais antiga ainda existente, e ainda a de menor altitude, 270 metros abaixo do nível do mar. Por ali entraram os judeus livres que retornavam da escravidão egípcia. Jericó viu também a libertação de um pobre mendigo do negrume dos olhos. “Ao sair Jesus da cidade com seus discípulos e com uma grande multidão, estava sentado à beira da estrada um cego mendigo, chamado Bartimeu, filho de Timeu. Quando soube que era Jesus o Nazareno, começou a clamar: ‘Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim!’ Muitos mandaram que se calasse, mas ele clamava ainda mais: ‘Filho de Davi, tem compaixão de mim!’ Jesus parou e disse: ‘Chamai-o’. Chamaram o cego, dizendo-lhe: ‘Tem ânimo; levanta-te, ele te chama’. Lançando de si a sua capa, de um salto levantou-se e foi ter com Jesus. Perguntou-lhe Jesus: ‘Que queres que eu te faça?’ Respondeu-lhe o cego: ‘Mestre, que eu tenha vista’. Disse-lhe Jesus: ‘Vai, a tua fé te curou’. No mesmo instante recebeu a vista, e o foi seguindo pela estrada.” (Mc, 10, 46-52).

 

Compaixão. Foi a fé que curou o cego? Ou foi o coração compassivo de Jesus, tocado pela firme manifestação da fé? Tocado pelo sofrimento. Foi a compaixão. Deixo o mendigo cego de Jericó, agora curado. Fazia o melhor, seguia Jesus pelas estradas poeirentas da Palestina. Agora, o Brasil.

 

Compra e doa tudo. Olhar na pandemia, de outro modo, nas necessidades da vacinação. Fez falta a compaixão. Trago de início os surpreendentes (para dizer pouco) artigos 2º e 3º da recente lei 14.125/2021: “Art. 2º Pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir diretamente vacinas contra a Covid-19 que tenham autorização temporária para uso emergencial, autorização excepcional e temporária para importação e distribuição ou registro sanitário concedidos pela Anvisa, desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI). § 1º Após o término da imunização dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, as pessoas jurídicas de direito privado poderão, atendidos os requisitos legais e sanitários, adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% (cinquenta por cento) das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita”.

 

Asfixia na vacinação e sufoco na economia. “Poderão adquirir vacinas, desde que sejam integralmente doadas ao SUS”. E assim, até que todas as pessoas pertencentes aos grupos prioritários sejam vacinadas (cerca de 77 milhões), as empresas brasileiras podem adquirir quantas vacinas quiserem. Sem problema algum, atendidas as exigências da lei. Mas terão de as doar, todas, ao SUS. Você entendeu direito, leitor, expliquei direito, está na lei; não se trata de avantesma de algum coitado delirante. Passado o limite dos grupos prioritários, sabe lá Deus quando será alcançado (mantido o atual ritmo, Deus ajude que não, na média da presente velocidade, 233 mil por dia, lá pelo fim do ano), as empresas poderão adquirir vacinas, mas terão de doar 50% do lote para o SUS. O que vai acontecer agora? É fato, o Brasil precisa de vacinas agora. Tenhamos compaixão do povo. Sem mudança na lei, até que seja ultrapassado o limite dos 77 milhões, a bem dizer nenhuma empresa estabelecida no Brasil vai comprar vacina. Óbvio ululante, ao alcance do beócio mais chapado. Com isso, mais fechamento na economia, aumento do número de mortes. Por que parece não ter importância? Por que parece não ter urgência? Veremos abaixo. Na prática, está sufocada pelo Poder Público, na fonte, no seu aspecto de momento mais urgente e importante, a colaboração da iniciativa privada. Legislativo e Executivo, contudo, trombeteiam dia e noite que querem e precisam com urgência da colaboração do setor privado para debelar crise que já matou mais de 300 mil brasileiros e vai logo chegar aos 500 mil e, ademais, sufoca a economia.

 

Ilegalidade evitável. Outra consequência desagradável e evitável da lei. Por baixo do pano, ilegalmente, algumas empresas importarão e clandestinamente vacinarão funcionários, familiares deles, donos, familiares dos donos, amigos. Já está acontecendo. Elas na prática estão defendendo vidas, estão garantindo o funcionamento do negócio, empregos. Quem as censurará? Muitos; mas a maioria as julgará com leniência e até com aprovação. Alexandre Padilha, deputado federal petista, requereu ao MP/MG que abra investigação e que sejam confiscadas vacinas, que segundo divulgação na imprensa, compradas por empresas, estariam sendo aplicadas em Minas Gerais. Circulam vídeos, existe ação da Polícia. Nada disso precisaria acontecer para o bem de todos.

 

Ventania de bom senso. Arejamento, espaços abertos, ação pelo bem comum, é o que fazem de forma crescente alguns ativistas compassivos. Trabalham pelo interesse dos seus negócios, mas, ao mesmo tempo, sua ação revela compaixão pela situação brasileira. Nesse sentido, e justamente, são ativistas da compaixão. Diante do quadro de insensatez ovante (vou ficar por aqui), dois empresários em especial, Luciano Hang e Carlos Wizard, liderando sem-número de colegas da iniciativa privada, tentam viabilizar a entrada efetiva do setor privado no combate à pandemia. Para tal pedem mudança na lei 14.125.

 

Liberdades legítimas. Argumentam, com razão, que, em sintonia com o Poder Público, comprar vacinas e imunizar funcionários, além de salvar vidas, diminuirá o peso nas costas do SUS e ademais evitará fechamento de empresas, com consequente perda de empregos. Ação em sintonia com o Poder Público, sublinham. E garantem, já têm 1 milhão de vacinas que poderiam chegar logo ao Brasil. Declarou Luciano Hang ao Antagonista: “A lei veio com problema de fabricação. O Congresso e o governo deveriam dar liberdade total para os empresários comprarem vacinas para seus colaboradores. O governo precisa de licitação para comprar, é um processo demorado. O setor privado tem muito mais velocidade. Eu comprei recentemente 200 cilindros de oxigênio para Manaus. Não fiquei fazendo muita cotação. Queria para o dia seguinte e consegui. O setor privado é mais rápido e muitos empresários estão querendo comprar vacinas.” Ocorre-me, a BMW e a Volkswagen fecharam fábricas por temor da Covid-19. Houve diminuição da atividade econômica, queda de empregos, prejuízo de fornecedores, sofrimento de famílias. As duas empresas têm contatos importantes no Exterior, dispõem de aptidão grande para trazer vacinas. Fechariam suas fábricas, se tivessem possibilidade de vacinar os funcionários? Mas a lei-mordaça, cerceando liberdades legitimas, impede-as de agir a favor de seus funcionários. O caso delas se repete Brasil afora. Uma lufada de oxigênio. Li agora, Rolando Spanholo, juiz substitituto da 21ª vara federal de Brasília, em controle constitucional difuso, considerou “usurpação inconstitucional da propriedade privada” os dispositivos da lei 14.125, acima referidos. E autorizou um grupo de agentes de turismo, delegados (Sindicato dos Delegados de Polícia de São Paulo) e servidores a comprar no Exterior a vacina sem doar tudo para o SUS. Razão, os mencionados dispositivos violam o direito fundamental à saúde, pois atrasam a imunização. Espero que tal iniciativa prospere, suscite imitadores no Brasil inteiro e dê copiosos frutos de vida e prosperidade.

 

Privilégio e desigualdade. Qual a razão para barrar brutalmente a entrada do setor privado no fornecimento das vacinas? Qual o motivo que justificaria a medida cruel que favorece a asfixia de pacientes e da economia? Dois motivos de ordem doutrinária, nenhuma razão ponderável de ordem prática. Estão aqui: não pode haver privilégio, não pode haver desigualdade, ambos mantras da cegueira voluntária. É preciso deixar claro para os cegos, e são multidão, pois os normais já veem, existem privilégios (leis privadas) que prejudicam o bem comum, existem privilégios que favorecem o bem comum. O segundo caso deve ser estimulado. Estamos nele. De modo igual, existem desigualdades que prejudicam o bem comum. Mas existem desigualdades que favorecem o bem comum. O segundo caso deve ser estimulado. É a presente situação. Funcionários e familiares de muitas empresas serão favorecidos com a mudança da lei. As empresas continuarão abertas. Ótimo. Sua situação privilegiada favorecerá também ao país. Ótimo de novo. Com efeito, a inciativa do grupo de empresários traz liberdade para o povo, liberdade e estímulo para a economia. Representa compaixão para milhares de famílias. Apoiemos o que fazem esses ativistas da compaixão. Parabéns a eles e a todos os que caminham nessa direção. Realço, combatem o preconceito ▬ tais birras contra o legítimo privilégio e a legítima desigualdade são tumores de estimação que corroem em especial a intelligentsia brasileira. E para desgraça do Brasil o importante para os setores da cegueira voluntária é nutrir tumores de estimação e daí sua antipatia com a evidente urgência em punçá-los. Furar abcessos é tarefa imprescindível. Que tenham êxito os ativistas da compaixão, seja como autores de ações judiciais, seja como promotores dos movimentos de opinião pública e de esclarecimentos dos poderes constituídos em Brasília. Sua defesa de legítimos interesses privados tem enorme repercussão social. Com eles vitoriosos, sairemos do pântano do retrocesso e avançaremos em estrada segura.


segunda-feira, 22 de março de 2021

Vacina contra maldição brasileira

 

Vacina contra maldição brasileira

 

Péricles Capanema

 

Variante perigosa. O Brasil padece uma espécie de bruxedo (falo abaixo dele) ▬ entre vários, e para quem quer bem ao país, bom conhecê-los. Com efeito, em qualquer âmbito, saber das debilidades constitui prudência indispensável para a ação eficaz. O cardeal Mazarino (1602-1661), grande político, começa seu livro “Breviário dos Políticos” apontando como primeira providência o discernimento das próprias fraquezas ▬ físicas, mentais, morais. Mapeá-las e então neutralizá-las no possível. “Pergunta-te em que ocasiões tens tendência a perder o controle sobre ti mesmo, a deixar-te levar para desvios de linguagem e de conduta”. Vale para o indivíduo, vale para famílias, vale para nações (para o Brasil, naturalmente).

 

Curas na raiz. Falava de uma espécie de maldição, sortilégio potente que está na raiz de persistentes desgraças nossas. Vem de longe, aqui está ele: temos o vezo de escolher mal nossos representantes. E depois, povo, imprensa e academia se dedicam ao esporte nacional de malhar o Judas, no caso, os políticos. Na próxima eleição, comporta-se igual o eleitorado, escolhe mal de novo. Ou piora, para lembrar a lamentação desiludida de Ulysses Guimarães: “Se você acha que o atual Congresso é ruim, espere pelo próximo, vai ser pior”. Inescapável, pelo menos boa parte da culpa respinga no representado que passou descuidado a procuração para o representante errado. Vai mudar? Dá para exorcizar seus efeitos? Difícil. Referida situação permanecerá a menos que mude a postura do público, aconteça o saneamento das raízes para então os galhos crescerem saudáveis e a árvore dar bons frutos. Que venha a maturidade, generalize-se uma educação qualificada, sejam cultivados a honestidade e os hábitos de reflexão. Nada disso será possível sem famílias revigoradas por forte senso religioso. Solução por aí. Quem descura do aperfeiçoamento das famílias, impulsiona o retrocesso social. Hoje, 21 de março, o Estadão traz comentário elucidativo a respeito da mencionada situação. Ouvido pela reportagem, influente deputado federal do PL, partido do Centrão, disse “de São Paulo para baixo, o PL é Bolsonaro, para cima é Lula”. Situações assim, sinais prenunciativos de desgraças futuras, pejadas de descarado oportunismo, ovante primarismo ideológico e deprimente falta de princípios, repetem-se Brasil afora.

 

Critérios de seleção. Trata-se em especial de critérios políticos, mas se refletem em outras áreas. Recordo aqui um político, Francisco Campos (1891-1968), o Chico Ciência, destacada presença no Brasil décadas atrás e cuja figura, por contraste, evidencia o enorme tombo na representação que sofremos ao longo do tempo. Pertencia, é certo, ao Brasil que contava (e quais são os critérios decisivos para contar no Brasil de hoje?). Teria defeitos e virtudes da época, foi homem de posições até hoje combatidas e com bons motivos, mas representou com traços fortes um tipo de personalidade que ascendia à direção do país. Outros homens públicos poderiam igualmente servir de ilustração; aconteceu, contudo, cair sob meus olhos discurso do prócer mineiro.

 

Gente com cabedal relevante e autêntico era chamada ao governo, sufragada, eleita. Oswaldo Aranha foi ainda exemplo. Antes, o barão do Rio Branco; muitos ainda haverá. É um primeiro critério, nascido de bom senso milenar, sobre o qual se pode construir solidamente. É, em suma, a atração para a vida pública dos mais capazes nos espaços da inteligência, elite autêntica com amplas condições de trabalhar pelo bem comum e assim promover a inclusão social com viés de alta ▬ ascensão judiciosa, enérgica e ampla.  Foi outrora em boa medida o caso no Brasil. Quando, pelo contrário, pululam nos postos de mando figuras sem nenhuma qualidade para relevo real, hoje tantas vezes nosso caso, não há governo que preste e possa dar certo. Inexiste até mesmo a possibilidade da consciência objetiva dos problemas mais importantes e urgentes. “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”, escreveu Nelson Rodrigues.

 

Exemplo entre muitos. Professor de Direito Constitucional, Chico Campos foi deputado estadual, deputado federal, secretário, ministro. Logo depois da Revolução de 1930, no governo provisório, ocupou a pasta da Educação entre 1930 e 1932 ▬ o primeiro ministro da Educação do Brasil. Nesta condição, recebeu convite para paraninfar turma da Faculdade de Ciências Econômicas em Salvador. Falou longamente sobre administração e economia, era o prato de resistência, mas antes apresentou, e era simples discurso de paraninfo, rápida visão de conjunto sobre características da Bahia e sua inserção no Brasil. Aqui temos perfume civilizador que se dispersou, fruto de ambiente que continha princípios ativos de aperfeiçoamento. Sumiu por inteiro dos rarefeitos ares oficiais e de outros ares a cortesia superior, constatada a seguir, esteada na observação luminosa do real ▬ impulso de progresso benéfico. Vinha de Minas o ministro e encontrava na Bahia “a mesma simplicidade, o mesmo acolhimento, a mesma doçura, amenidade e gentileza de maneiras”. Percebia, contudo, uma nota diferente: “a graça e o sabor”. Os frutos “são na Bahia mais doces, mais saborosos e mais belos”.

 

Prossegue: “Aqui raiou a madrugada do Brasil. No berço da Bahia embalou-se a sua infância”. Amplia: “Os brasileiros revemos na Bahia o Brasil, os seus traços característicos e significativos, aqueles que as mãos e o espírito baianos imprimiram no Brasil, os traços que nos definem como nação, as linhas da inteligência e do caráter”. Caminha para o fim da abertura: “Nessa terra de bênçãos e de paz”, de “gênio pacífico”, ele via “as tradicionais virtudes de sobriedade, de reflexão e de firmeza”, “ancoradas nesse misterioso e insondável subsolo da alma baiana”. E a conclui: “Aqui, nessa luminosa Bahia, é onde se sente, em toda a amplitude de sua onda, a vibração da alma brasileira, no ritmo da língua, no compasso da música, na expressão dos sentimentos cívicos, de maneira a se poder dizer que a Bahia é o padrão do Brasil”. Realçou: “Nela se encontram, nas suas formas típicas, as categorias espirituais, por cujo intermédio se exprimem e se traduzem inteligência e coração do Brasil”.

 

Algum dos leitores leu ou ouviu algum dia texto ou discurso de político atual que se aproxime dessa introdução de Francisco Campos em simples discurso de paraninfo? Falava em perfume civilizatório; é mais, é impulso civilizatório; vidas de pensamento com tônus desse naipe não só aperfeiçoam personalidades; levam, em ondas cada vez mais extensas, ao aproveitamento das qualidades e oportunidades jacentes na população. Sua perda, evaporação trágica, dentro do desapreço amazônico, representou no Brasil retrocesso intelectual e baixa na educação social.

 

Desorientação. “Quos Jupiter vult perdere dementat prius” ▬ Júpiter enlouquece primeiro os que deseja perder. Um país que tem dirigentes com o gosto do escangalho, arrogantemente toscos, useiros e vezeiros de expressões chulas, mesmos nos mais solenes ambientes, está virtualmente enlouquecido por Júpiter, pisa estrada que desemboca em abismo.

 

Estrada abandonada. Coetâneo de Francisco Campos na vida pública foi Gilberto Amado (1887-1969), também escol da inteligência nacional. Ele coloca como condição fundamental da democracia representativa, axioma, a escolha dos melhores. Só assim o governo pode agir com energia na busca do bem comum. Leciona o político sergipano: “É um axioma de ciência política, verdadeiro em todos os regimes — no regime democrático como nos demais — que a sociedade deve ser dirigida pelos mais avisados (sages), pelos mais inteligentes, pelos mais capazes, pelos melhores, em uma palavra pela elite”. Estuda então os meios para que tal elite “possa aceder à direção da sociedade”. Não é o caso de deles tratar aqui, iria muito longe.

 

O deslumbramento beócio por concepções falseadas de democracia, contrafações tóxicas do conceito, na prática cadinho contínuo para toda sorte de contubérnios demolidores, nos fez retroagir. Um avanço, começo, seria noções mais claras do problema: conceitos e realidades na vida social. Já estivemos a respeito em situação bem melhor, nos anos do Império e em épocas do período republicano. Em rápidas pinceladas um exemplo vai acima. Foi minha intenção, no presente texto, pôr um grãozinho em tal esforço. Fim.

quinta-feira, 18 de março de 2021

O crime do esquecimento

 

O crime do esquecimento

 

Péricles Capanema

 

Vacina eficiente. Lula voltou ao proscênio da cena política, prepara sua volta em 2022 como candidato com chances de vitória. Ponto vivo da estratégia, o demiurgo petista conta com o esquecimento popular. Sabe, a memória boa é a mais eficaz vacina contra a reinfecção petista.

 

Coligação forte à vista. Tudo o indica, o morubixaba petista busca pôr em pé coligação forte para 2022; para isso certamente irá migrar rumo ao centro e escolher vice tranquilizador ▬ como o fez com êxito ao pinçar milionário, líder empresarial e político de centro para as eleições de 2002. São suas armas para reconquistar o Planalto. Como molhar a pólvora? Nenhuma amnésia. No caso, a memória boa será a salvação do Brasil.

 

Desgaste da reação antipetista. Lula conta ainda com o desgaste das desorganizadas forças direitistas e conservadoras que surgiram e surraram eleitoralmente o PT em 2018, tendo como principal combustível os avassaladores sentimentos antipetista e anticorrupção, gerados pelo horror dos desgovernos da “cumpanherada”. Por isso, em particular, o esquecimento dos desgovernos é primordial na estratégia petista.

 

Tais sentimentos perpassavam então de alto a baixo a sociedade, horrorizada com o inescrupuloso assalto ao poder pela tigrada insaciável. Debilidade a ter em vista, noto só de passagem, sentimentos e emoções costumam ser efêmeros. Cuidado com eles, precisam ser cultivados, alimentados e enraizados; permanentes são os princípios e hábitos entranhados. E é congruente, já está em curso intensa campanha de desmoralização das forças conservadoras e direitistas que emprega como munição motivações reais, inventadas ou aumentadas, pouco importa aqui. Vale tudo.

 

Por tudo isso, retomo e reitero, em 2022 a memória do passivo petista será fundamental. Décadas atrás foi muito popular lema em São Paulo, relativo à Revolução de 1932. Vale a recordação: “São Paulo não esquece, não transige, não perdoa”. Agora realço uma das três posturas, não esquecer, a primeira e mais fundamental delas. O perigo será esquecer. Com o olvido, a transigência e o perdão ficam dispensáveis; de fato, nem entram em linha de conta.

 

Anão diplomático. Vou lembrar alguns, só alguns, infindo é o rol dos pesadelos pelos quais passamos entre 2002 a 2016 ▬ e a lista voltará aumentada e agravada se o petismo triunfar em 2022. Hostilizar os Estados Unidos e a Europa, na prática, foi política de Estado. Sob o mesmo bafo e em direção contrário bajular e favorecer China, Rússia, Cuba, Venezuela, Irã, Síria e estados em situação semelhante. Claro, também a Argentina de Nestor e Cristina Kirchner. O petismo triunfante tentou criar uma aliança destrutiva da qual participavam países onde campeava a ditadura, o terrorismo e a corrupção para opô-los ao mundo desenvolvido. Era uma versão tóxica da rivalidade Norte-Sul. Ídolos da diplomacia brasileira foram Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales. Do sanguinário ditador cubano, Lula afirmou que foi “o maior de todos os latino-americanos” A disputa do governo brasileiro com Israel chegou ao ponto de o porta-voz do Estado judeu, em 2014, ter qualificado o Brasil de “anão diplomático”.

 

Modelos a imitar, Cuba e Venezuela. Na política interna, a união com partidos políticos complacentes (para dizer o mínimo) levou por anos à roubalheira solta ▬ mensalão e petrolão, e ainda não tivemos o destape do eletrolão ▬, pilharam em especial estatais, o maior assalto aos cofres públicos de que o mundo tem notícia. E à continuação da escandalosa política de promoção da reforma agrária, que empobrece o campo há décadas. Sofremos ainda no fim do governo Dilma, a paralisia econômica, a inflação em alta, o empobrecimento generalizado e a recessão. E suportamos a teimosia do PT em continuar no mesmo rumo, o abismo. Sem falar na parcialidade gritante da assim chamada Comissão da Verdade, em que pululavam favorecimentos para alguns da patota, bem como perseguições claras ou veladas aos opositores. Um autêntico ensaio dos tribunais populares, de sinistra memória nas ditaduras comunistas. No horizonte escuro, o fantasma aterrador de o Brasil virar uma nova Cuba ou uma nova Venezuela. Outra vantagem da memória boa, dificulta idealizações acarameladas dos desgovernos petistas.

 

Todas as agendas de ideologia do gênero, promoção do aborto, “normalização” social e institucional da “família”, sob as mais absurdas formas, receberão impulso novo, o que não impedirá à CNBB, CPT e entidades congêneres de darem apoio a tais governos, que trabalharão efetivamente para eliminar restos ainda vivos da evangelização em solo brasileiro.

 

As CEBs fundaram o PT. Convém reproduzir diálogo entre o ex-frei Leonardo Boff e Lula ▬ está na rede. Temos ali a responsabilização da esquerda católica pelos padecimentos populares de 2002 a 2016, o Brasil atolado no pântano do atraso. Diz o antigo franciscano: “As CEBs, as comunidades eclesiais de base, que eu acompanhei tantas, não entraram no PT, elas fundaram as células do PT, isso é muito mais que entrar num partido, é fundar um partido”. O líder do PT comenta: “O PT não existiria do jeito que ele existe, se não fossem as comunidades eclesiais de base, se não fosse a Teologia da Libertação, eu sei o que é o valor de um padre progressista numa cidade pequena.”

 

De outro modo, segundo os dois corifeus da extrema esquerda, as comunidades eclesiais de base formaram o caldo de cultura indispensável para fazer germinar no Brasil partido que trouxe no bojo, o retrocesso, a intolerância, o desenho de uma sociedade socialista, com atrofia enorme das possibilidades de realização pessoal. E cuja implantação invariavelmente acarretou exclusões brutais, sufocamento da liberdade, fuga dos pobres apavorados com a generalização da miséria, uma forma de inferno na terra.

 

O esquecimento, causa de tragédias. Dou um cavalo de pau e recorro a exemplo imaginário ▬ já aconteceu coisa assim. Um pai estaciona o carro na rua, dia de muito calor, deixa os vidros fechados, o filho pequeno fica no banco. O pai vai cuidar da vida, faz negócios, demora, esquece que o filho está trancado. Quando volta, desespero, a criança está morta por insolação e asfixia. Não quis o fato, não agiu para que acontecesse. Foi culpado? Sim, pela lei e jurisprudência. Negligenciou atenção que deveria dar à situação em que era garantidor. Situações desse tipo configuram os chamados crimes de olvido ou de esquecimento. Reza o artigo 13 do Código Penal: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se a causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. E está no § 2º do mesmo artigo: “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”.

 

Crimes de esquecimento. Por que fui tão longe e dei o cavalo de pau no texto? Para lembrar um ponto, mesmo de forma inconsciente, até desejando o contrário, o esquecimento não raras vezes leva a tragédias e até ao crime. A criança do exemplo pode no futuro lembrar o Brasil. O pai, qualquer um de nós, se negligentes; faltaríamos no caso ao dever de cuidado.


terça-feira, 2 de março de 2021

Olhares que enxergam longe

 

Olhares que enxergam longe

 

Péricles Capanema

 

Bênçãos desprezadas. São uma bênção, para si e para os próximos, os olhares que divisam o remoto na neblina do futuro. Desvelam a via e assim preparam os caminhantes contra adversidades. Contudo, é a realidade, em geral, são menosprezados. Pois cansam, podem parecer falta de senso prático. Espiar dez, vinte anos à frente? Para quê? A percepção voltada ao imediato, pelo contrário, distrai, às vezes reflete senso do real. Como não se fatigar da vista fixada longamente no horizonte, e então procurar o necessário repouso nas coisas próximas? O remanso também é necessário. Pode restaurar forças, pode dispersar. O gracioso é nutrimento da vigilância varonil; o vulgar é seu tóxico. Quem se enchafurda no vulgar, criará anticorpos recusará espiar o horizonte carregado.

 

Advertência histórica. Com a competência a ele própria, o prof. Roberto de Mattei escreveu erudito e esclarecedor artigo sobre o conde Joseph de Maistre (1753-1821), dos maiores pensadores contrarrevolucionários do século XIX ▬ está na rede o trabalho. Não pretendo aqui glosar aspectos levantados pelo mencionado estudo. De fato, tudo no texto me chamou a atenção, mas quero destacar ponto crucial, em geral subestimado, vale para todas as épocas.

 

Joseph de Maistre foi enviado em 1802 pelo rei da Sardenha, Vitor Emanuel I, como embaixador junto ao czar Alexandre I. Na Rússia viveu 14 anos, deixou-a em 27 de março de 1817, lá concebeu boa parte de sua grande obra intelectual. Consciencioso, além de avançar nas tarefas de pensador, enviava informações pormenorizadas e análises agudas a seu soberano, que entretanto, misérias da vida, irritava-se com elas. Não pelo conteúdo que certamente reconhecia denso, mas pelo esforço intelectual que dele solicitava. Grandes demais, graves demais, profundas demais; não lhe caíam bem, queria coisa mais leve, tangível, vida mansa, enfim. Aristocrata da alta nobreza, família real antiga, aparentava-se em espírito com o Jeca da conhecida canção:”Êh vida marcada, num dianta fazê nada, e pruquê si esforçá, se não paga a pena trabaiá”. E aí, fugindo do esforço, seus frutos seriam também os que amealhava o desidioso Jeca: “De manhã cedo eu óio pra rocinha; Pra ver se as veiz nasceu quarqué coisinha; Mas qual o quê, num nasceu nada não; Prantando nasce, mas num pranto não”

 

O amigo angustiado. Certamente, de todos os embaixadores da Sardenha, era o mais amigo do rei; aquele que não pretendia distrai-lo, mas se esforçava em contribuir para sua formação e governo. Que enxergasse longe, avistasse através da bruma as sombras ameaçadoras do porvir. Enfim, era quem cujos conselhos poderia salvar o trono, manter a honra da dinastia, evitar desvios nos quais se meteu. Poderia ainda influir de forma favorável no Congresso de Viena. Vitor Emanuel I não o escolheu, todavia, como representante.

 

Transcrevo parte do artigo: “A observação de Alphonse de Lamartine, segundo a qual ‘teria sido impossível encontrar o conde Joseph de Maistre sem imaginar que se estava a passar diante de algo grande’, entende-se bem folheando os despachos que o representante do Rei da Sardenha na corte dos Czares enviou a seu soberano (cf. Joseph de Maistre, Napoleone, la Russia, l’Europa, Donzelli, Roma 1994). Pelos despachos de Petersburgo, acompanhamos, passo a passo, o avanço de Napoleão, num jogo em que ‘está em aposta o mundo’. Mais que despachos, trata-se de amplos relatórios, ricos em observações eruditas e profundos aforismos, não compreendidos por Vítor Emanuel I, honesto mas de medíocre inteligência, que, por meio do seu primeiro escudeiro, fez chegar esta mensagem a seu ministro em Petersburgo: ‘Pelo amor de Deus, diga ao conde de Maistre para escrever despachos e não dissertações!’” Amolação.

 

Da Sardenha para o Brasil. Agripino Grieco (1888-1973), crítico ferino, mas certeiro; certa vez observou: “O pior dos erros é acertar sozinho contra muita gente”. Tem razão, divisar o ruim que irromperá a bem dizer necessariamente, destrói amizades, possibilidades de carreira e de convívio. E é sina corriqueira de quem tem o que às vezes foi chamado de olhar de lince; e, impulsionado pela lógica, não foge das conclusões, mesmo das mais duras.

 

Por que comento tudo isso? Não parece distante? Não é. Em retrospectiva. A Casa de Savoia teve percurso conturbado, em especial no século XIX, liderou o movimento de unificação da Itália, colocou-se contra os Papas. Manchou-se, com a invasão de Roma o rei foi excomungado por Pio IX, situação que se manteve por sessenta anos. Acabou despojada de todos os seus domínios. É conjeturável, outra teria sido sua história, da Itália e até mesmo da Europa, se Vitor Emanuel I tivesse dado ouvidos aos despachos que recebeu de Joseph de Maistre, utilizasse-os para formação do espírito e valioso subsídio político. Constituiu fato aparentemente pequeno e desimportante (não era), despercebido por quase todos, mas exigia esforço e ajuste de vistas. O soberano preferiu a maciota, apoiar-se molemente em opiniões cômodas, a tragédia engoliu seus descendentes. Em prospectiva. Brasileiros de espírito objetivo estão advertindo sobre a gravíssima situação do país, sobre necessidade de medidas duras; enfim, sobre ser imperativa a seriedade na percepção dos horizontes. Em resumo, fuga da mentira, da conduta cafajeste, da inconsequência e da irresponsabilidade. O preço a ser pago será alto, se a superficialidade agora impedir rumo certo. As advertências poderão cair no vácuo. Mas ainda há tempo, não repitamos Vitor Emanuel I. E tantos outros. Mais proximamente, escapemos de hábito generalizado em Pindorama: “Se o sór tá quente a gente arruma a rede; Garra a viola presa na parede; Acende o pito, cospe e passa o pé; E deixa a vida como Deus quisé”. Deus não quer.

 

segunda-feira, 1 de março de 2021

Obsessões genocidas

 

Obsessões genocidas

 

Péricles Capanema

 

O artigo poderia ter outro título: obsessões homicidas. De quem? Nossas, infelizmente temos obsessões homicidas. Fácil apontá-las, curá-las é tarefa hercúlea. Estamos enterrados em gravíssima crise sanitária, cresce o número de mortes em decorrência da disseminação do COVID-19 e de suas variantes. Governos, mundo afora, para evitar contágio, fecharam suas portas a viajantes provenientes do Brasil ▬ viramos um leprosário para eles. Não há como fugir da comparação, temos semelhanças com os leprosos de épocas passadas, os povos nos evitam e nos isolam na tentativa de impedir a disseminação da enfermidade mortífera. O toque de recolher, o lockdown (fecha tudo), as restrições à circulação estão na ordem do dia. O perigo é nos transformarmos, culpa nossa, em leprosário de enfatuados obsedados. Mais disso abaixo.

 

É urgente escapar da enrascada. Mas como sair dela? Cortando as raízes do problema. Existe um consenso, a bem dizer geral, quase unanimidade, aqui vai: com a maior velocidade possível, generalizar a aplicação das vacinas. População vacinada significa vidas salvas e reabertura da economia. Sob certo ângulo, vida e prosperidade contra morte e penúria. Em resumo, o programa básico de salvação nacional se enuncia de forma simples, bastaria comprar muitas vacinas autorizadas pela ANVISA e aplicá-las.

 

Fomos lerdos, hoje temos só o Butantan (governo do Estado de São Paulo) e Fiocruz (governo federal), na linha de frente. Ótimo, ainda bem, pelo menos duas instituições respeitadas fornecem, ainda que menos do que seriam necessárias, as vacinas. Ambas trabalham com insumos provenientes da China, o que nos sujeita de certo modo ao governo chinês. Não é a hora de realçar que, além dos acordos com a AstraZeneca, certamente poderiam ter sido firmados acordos com empresas ocidentais, com sede nos Estados Unidos ou na Europa. Foi o que fizeram países europeus, asiáticos e latino-americanos.

 

Um deles, o Chile, serve de exemplo. Graças em parte ao faro empresarial do seu presidente, em fins de junho já terá vacinado toda a população. “El País” ainda destaca a “a musculatura comercial de uma das economias mais abertas do mundo”. O país firmou acordos com Pfizer, Sinovac, Johnson & Johnson, AstraZeneca. Quanto a nós, no ritmo atual, oxalá se acelere, por ora aplicação de 250 mil doses por dia, vamos precisar para lá de dois anos para vacinar toda a população. México, Colômbia, Peru, Uruguai e Paraguai já pediram ajuda às autoridades chilenas. Um bom exemplo para o Brasil, pedir ajuda também, foi enormemente mais competente que nós, valeria a pena entrar na fila, ainda que no último lugar. Receio que o bom exemplo, humildade construtiva, seja inútil. Nossas obsessões cegam, impedem até soluções simples, apontam outro rumo, intervenção, estatismo, controle burocrático. O povo paga a conta, mas que importa? Caminhamos nesse passo rumo ao paraíso venezuelano ou cubano. Um dia chegaremos lá, é só ter paciência.

 

Diante da gravidade do quadro presente, insuficiência clara da ação federal (eufemismo), o normal seria a complementação com a conjunção de esforços de todos os que tenham possibilidade de ajudar. Um exemplo de tal suplementação está em curso, pode dar bons resultados, é a cooperação de governadores para comprar vacinas. Depois, se possível, espetarão a conta no Executivo federal. Foi o que pontuou há pouco Renato Casagrande (PSB-ES), expressando, informalmente, opinião de todos. Dezoito deles (27 no total, os ausentes manifestaram apoio à iniciativa) foram a Brasília na 3ª feira, 2 de fevereiro, para falar com autoridades, com laboratórios e tentar destravar o caso, fazendo jorrar o mais rápido possível cachoeiras de vacinas no país inteiro.

 

Aqui começam os sintomas do que acima qualifiquei de obsessão homicida. Declarou o governador do Espírito Santo: “Não haverá a formalização de um consórcio. Nossa ideia é comprar cotas proporcionais à população de cada Estado. Nenhum Estado comprará mais do que o equivalente ao percentual de sua população”.

 

À primeira vista, tem ares de política equitativa, compassiva, serena, sensata. Um bom começo, à vera, desde que seguida por medidas arejadas. iniciativas mais amplas. Conservando-se na primeira estação, será apenas desnecessário e tosco engessamento.

 

Com efeito, existindo Estados mais ricos e com folga de caixa, por que não buscar vantagens para todos, privilegiando os com maior liberdade e capacidade de ação? De outro modo, pôr em execução medidas esteadas em acordo amplo, que não prejudiquem a nenhum participante. Em resumo, deixar que os mais providos de recursos resolvam mais rápido seu caso. E assim, comprariam mais vacinas, atenderiam logo às populações, tirariam peso das costas do SUS, até poderiam ajudar a outros entes mais pobres. Suas economias se abririam mais cedo, acarretando reflexos positivos no País inteiro. Seráp ossível esse caminho, ou haverá sabotagem nos três níveis de poder, com inevitáveis sequelas de inércia econômica e atraso no combate à pandemia? Nossas obsessões avassalam-nos tanto que acho pouco provável.

 

Tem pior. O consórcio dos governadores, nas palavras do dirigente capixaba, propõe a ajuda empresarial de maneira “sui generis”: “Vemos, por exemplo o movimento Vacina para Todos, esforço que a Luíza Trajano está fazendo. Está tentando articular a participação dos empresários junto ao ministério da Saúde e os Estados. Acho que todo mundo tem de comprar para entregar ao plano nacional. Há empresários dispostos a comprar. Comprar e entregar para o ministério da Saúde. Defendo que as empresas que se dispuserem a adquirir vacinas repassem 100% das doses para o ministério da Saúde. Não é correto permitir que quem tem dinheiro se vacine primeiro”.

 

Você entendeu direito, leitor. A empresa compra, embala e depois entrega tudo para o governo. Não fica nem com unzinha vacina. É louvável, não resta dúvida. Estimula a vacinação? Óbvio ululante, não. Se a vedação doidivanas não enterrar de vez a iniciativa, pelo menos a inibirá de alto a baixo, atrasará horrores a solução do problema urgente. Teremos aqui exemplo inolvidável de opção preferencial pelo retrocesso. Prejuízo para a economia, aumento do número de mortes, desemprego maior, tudo com base em um só e mambembe argumento: “não é correto permitir que quem tem dinheiro se vacine primeiro”

 

Contudo, o digno governador capixaba não está só, seria querer demais. Enuncia opinião generalizada, compartilhada por espíritos suposta e ufanamente equânimes. São multidão. O normal, em país sem obsessões e xodós, diante da gravidade da crise, seria, vamos combinar, dentro de plano coordenado pelos poderes públicos, esporear as empresas a comprar vacinas para funcionários e familiares ▬ que doassem parte do lote para o SUS, ótimo. Haveria enorme e generalizado estímulo, benéfico a todos, traria significativo alívio para os cofres públicos, de momento exauridos.

 

Todavia, infortúnio antigo, vivemos em país (organismo doente), tem tumores de estimação já deitando metástases há décadas. Um deles é a idolatria do estatismo, a crendice tola e demolidora de que o intervencionismo em suas várias gradações, de regra boçal, sempre será benéfico. Na prática, retrocesso, atraso e ladroagem; o estatismo (e seu irmão, o intervencionismo) asfixia liberdades, gera pobreza, sufoca criatividade, atrofia personalidades. Tais obsessões enraizadas, pavoneadas tantas vezes com petulância, “à la longue”, matam mais que muitos vírus que ora nos agridem.