quinta-feira, 30 de julho de 2020

De novo a opção preferencial pela exclusão


De novo a opção preferencial pela exclusão

Péricles Capanema

A jornalista Mônica Bergamo divulgou na “Folha de São Paulo”, 26 de julho, “carta ao povo de Deus”, manifesto assinado por 152 bispos (boa parte, resignatários), que deveria ser dado à publicidade um pouco antes, 22 de julho.  Signatários dela, pelo que afirma a colunista, queriam, antes de propagá-la, esperar a opinião da Comissão Permanente da CNBB, cuja reunião para análise do texto e sua oportunidade está marcada para 5 de agosto próximo. E temiam que a chamada ala conservadora da CNBB impedisse sua divulgação. Tem sólidos fundamentos o temor do choque em setores conservadores. E não só da CNBB, em qualquer lugar, pois é traumático o conteúdo; trata-se de lídimo libelo petista, poderia ser assumido pela Comissão Executiva Nacional do PT. De fato, na 2ª feira, 27 de julho, em nota a CNBB se distanciou (pelo menos, por enquanto) da mencionada tomada de posição, “nada tem a ver”, é “responsabilidade dos signatários”. Teria então havido um vazamento para impedir o engavetamento do texto. Aqui não se trata de apoio ao governo Bolsonaro. É normal a oposição, cumpre papel necessário, terá justificativas que devem ser ponderadas. O chocante no caso é a assunção da linguagem e das bandeiras da esquerda, mesmo a mais extremada, o apelo a um trabalho coordenado, cujo êxito colocará o Brasil em situação próxima à da Venezuela ou Cuba, retrocesso cruel para todos, em especial para os pobres.

Desde décadas, tem sido excluída a maioria silenciosa dos católicos. Existem cerca de 500 bispos atuando no Brasil, pouco mais de 300 efetivos, pouco menos de 200 resignatários. Dos 152 subscritores, repito, parte importante é resignatária. O fato tem sua importância. Convém recordar, o bispo emérito não tem obrigações de pastorear diocese, está mais distante dos fiéis e do Clero, sente-se assim mais livre para agir segundo suas preferências ronceiras; no caso, a militância esquerdista, que por razões prudenciais preferiria esconder quando à frente de dioceses. Ali, precisariam pelo menos fingir levar em conta o clamor da maioria silenciosa e silenciada do povo; recordando linguagem bíblica, não poderiam atirar uma pedra para filhos pedindo pão, nem poderiam arrojar uma serpente ao escutá-los pedindo peixe. Com efeito, observando a orfandade em que se encontra desde décadas a imensa maioria do laicato católico, excluída de forma intolerante pela opção preferencial pela esquerda levada a cabo por parte dos pastores, é normal se lembrar de passagens bíblicas atinentes. “Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor” (Ex 3, 7). E qual o pai de entre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, também, se lhe pedir peixe, lhe dará por peixe uma serpente?” (Lc 11, 11). Para os aflitos, a política habitual tem sido pedras e serpentes. O manifesto em análise constitui, dói dizê-lo, mais um dos episódios lacerantes do misterioso processo de autodemolição da Igreja, em que tantas vezes o pastor espanca a ovelha indefesa, abre as portas do redil e saúda alegremente o lobo que avança.

Radicalização da exclusão. Mais um ponto a ter em vista. Os 152 signatários podem estar redondamente iludidos a respeito da real influência que seu demolidor libelo terá na opinião nacional, em especial na católica. Na prática, vai demolir pouca coisa, se tanto. O brasileiro é pacato, abomina agitações e dilacerações. E o intolerante texto as instiga. Imaginarão que sua condição de bispos da Igreja Católica dá à sua voz eco que no caso não existe? Na prática, incomodado com a ácida linguagem revolucionária, o laicato majoritariamente fechará os ouvidos à mensagem. Outro aspecto importante. Nosso Senhor no Evangelho ensinou: “As minhas ovelhas conhecem a minha voz” (Jo, 10, 27). O sensus fidei faz com que o católico conheça o timbre da voz do bom pastor. Quando é estranho o timbre, dele se afasta. Em resumo, o palavrório amazônico terá repercussão escassa. Os católicos, em geral desgostosos com o disparatado do texto, sentir-se-ão ainda mais excluídos.

Outra maioria silenciosa. Certamente bem mais que 152 bispos foram sondados para dar seu apoio ao texto intoxicado por um esquerdismo primário e descabelado. Recusaram. Temos aqui uma maioria silenciosa, um pouco menos de 350 ▬ destes, quantos foram sondados, não tenho como saber ▬, que por razões as mais várias, inclusive desconhecimento, imagino, abstiveram-se. Preferiram guardar distância do texto revolucionário. Isolaram-se assim dos 152 signatários, tangidos pelo vezo incoercível de se juntar às reinvindicações da esquerda, mesmo as mais radicalizadas.

Em 1976, o professor Plinio Corrêa de Oliveira publicou livro de grande repercussão “A Igreja ante a escalada da ameaça comunista ▬ Apelo aos bispos silenciosos”. O trabalho continha o pedido para que os então bispos silenciosos, maioria clara, tomassem a frente do palco, tirando o protagonismo quase monopolístico dos bispos de esquerda. Agora, também, a maioria está silenciosa. Dizia ele na ocasião: “Importa, com efeito, não ver em tal silêncio apenas a posição cômoda de quem está longe da luta. Mas também o desapego e a retidão que evitam obstinadamente a complacência ativa com o mal. [...] Nas mãos dos silenciosos, pôs Deus todos os meios que ainda podem remediar a situação: são eles numerosos, dispõem de posições, de prestígio e de cargos. Atuem. Nós lhos imploramos. Falem, ensinem, lutem”. Estamos hoje em situação parecida. Os excluídos na Igreja, ansiando por inclusão e compreensão, hoje não pedem outra coisa a seus pastores. Não aprofundem ainda mais as valas da exclusão.

Apelo à união da esquerda em torno de programa demolidor. O libelo dos 152 está na rede e na imprensa escrita. Dele extraio trechos de maior significado. Ponto central, recusa qualquer complacência com o governo: “É dever [...] posicionar-se claramente. [...] A narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não justifica a inércia e a omissão”. Aos que não têm nenhuma complacência (os sem complacência) com o governo, a proposta: “O momento é de unidade. [...] Por isso, propomos um amplo diálogo nacional”.  A finalidade de tal frente popular salta do texto apaixonado: “As reformas trabalhista e previdenciária mostraram-se como armadilhas. [...] É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo. [...] uma ‘economia que mata’. [...] O desprezo pela educação, cultura, saúde e diplomacia também nos estarrece. [...] Demonstrações de raiva pela educação pública. [...] escolha da educação como inimiga. [...] No plano econômico, o ministro da economia [...] privilegiando apenas grandes grupos [...] grupos financeiros que nada produzem. [...] O governo federal demonstra rechaço pelos mais pobres e vulneráveis” [...] Este tempo não é para divisões”.

Esperemos que a CNBB recuse seu apoio a um texto favorecedor de retrocessos e exclusões. E que, enfim, para o bem do Brasil, falem os silenciosos do Episcopado.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Fascinação recíproca


Fascinação recíproca

Péricles Capanema

A França tem nova embaixadora no Brasil, Brigitte Collet; assume o posto em momento de dificuldades nas relações entre os dois países. Passo ao lado dos assuntos espinhosos, não têm relação próxima com o tema de que vou me ocupar. Objeto também espinhoso. As matérias rugosas precisam ser ventiladas.

A nova representante gaulesa fez saudação de praxe aos franceses residentes no Brasil. Está na rede (“Premier message à la communauté française de l’ambassadrice, Mme Brigitte Collet”). Nela, a diplomata mencionou realidade cada vez menos lembrada, a “fascinação cultural recíproca” existente entre o Brasil e a França. Vem de longe, está inscrita na história dos dois países. Só vou analisar, na fala da embaixadora, a expressão acima referida, o resto fica para outra hora, se ensejo houver.

Nada mais verdadeiro, nada mais justificável que recordar a “fascinação cultural recíproca”, campo com enorme poder evocativo. Contudo, verdade triste, não apenas é expressão cada vez menos lembrada; pior, está se apagando por causas várias o fascínio recíproco, tanto na França, como no Brasil. É tragédia sem nome, estávamos em uma aurora, ainda imersa na neblina, que, afastados os efeitos das tempestades, poderia ter dado origem a progressos autênticos.

Espiadela sobre razões do apagamento.  O deslumbramento a que alude a sra. Collet não é (ou era) apenas cultural. Ou era cultural em acepção ampla; como André Malraux via a cultura, “herança da nobreza do mundo”; de outro modo, junção harmoniosa de altas perfeições vicejando nos vários âmbitos da vida humana. O fascínio mútuo, encarando mais fundo era a percepção de traços de personalidade, de valor extraordinário que, pelo enlevo assimilativo, completariam os “role models” predominantes nas duas culturas.

De nossa parte, olhos daqui para lá, lembrando a distinção filosófica entre ato e potência, fascinava-nos sobretudo atos, realidades já construídas; uma ou outra vez energias latentes se transformando em atos. Examinando de lá para cá, minha opinião, os franceses eram sobretudo fascinados por potencialidades que avistavam no Brasil (em especial nas pessoas com as quais entravam em contato, para ser mais preciso). Tais pessoas, em geral, ou eram de condição social privilegiada, ou eram de inteligência e cultura privilegiadas. Ou ambas. Constituíam escol, representativo do que de melhor o Brasil, país ainda muito pobre, poderia na época oferecer ao mundo. Por indução, com base em tais amostras, era possível conceber noção real, traços gerais, esboço um tanto brumoso, do que o Brasil um dia poderia chegar a ser, se, entre outros esforços, continuasse aperfeiçoando e tornasse patrimônio comum do povo os valores psicológicos e morais percebidos naqueles encontros, expressos no comportamento.

Tal realidade incipiente de enorme riqueza potencial foi destroçada quase por inteiro. Não foi só desleixo. Houve ação contra, por vezes encarniçada. Se, em vez de lançar pedras, impulsionadas por preconceitos obscurantistas, tais grupos sociais ▬ pessoas, também ▬ fossem, com senso das proporções, prestigiados na vida da nação, ao longo das décadas teríamos tido das mais benéficas e produtivas iniciativas de inclusão social. Uma política autenticamente popular, e sem gastar um tostão do erário nisso. Por contato e admiração, círculos cada vez mais amplos, de forma gradual, partilhariam, ainda que de maneira diferenciada, tais maneiras de ver a vida, de grande potencial de ascensão (fonte de fascínio de estrangeiros que viviam no Brasil, em particular de franceses) florescentes então em particular em ambientes pequenos.

Nada ou quase nada disso aconteceu. Tais grupos informais ▬ moldados por valores, percepções delicadas, modos de viver próprios ▬, repito, foram sufocados pela desatenção geral, quando não objeto de mofa e desprestígio. Surgiram outros “role models”, ocuparam a cena, relegando os anteriores, como velheiras inúteis, aos desvãos não frequentados das casas.

E era em tais grupos, ilhas no interior dos mundos cultural e da sociedade educada, que latejava mais forte o fascínio pela França. Em direção contrária, ali em geral estava mais brilhante a origem do fascínio que o Brasil exercia na França. Fascinação recíproca, lembrou a embaixadora. Restam fiapos.

Em vez da subida em número e qualidade de setores autenticamente representativos e da ascensão popular generalizada, disse atrás, novos “role models” dominaram, postiços e caricatos, e com eles se impuseram socialmente em grande número de casos desigualdades desagregadoras e igualitarismos atrofiantes. Primarismos, boçalidades, má educação, incompreensão da vida, quando não a imoralidade solta, em boa parte são marcas distintivas dos primeiros lugares nas cenas pública e social do Brasil de hoje. Basta observar o que vemos e comparar com o que tivemos como figuras de expressão. São marcas da opção preferencial pelo atraso.

“Até o século XIX o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar uma cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida.[...] Descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. [...] Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas. ...] Os idiotas vão tomar conta do mundo [...] O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota” (Nelson Rodrigues). Aconteceu no Brasil, restam fiapos dos ambientes de inundados de simplicidade, finura de percepção e cultivo da educação, onde desabrochavam pessoas com possibilidades de orientar a sociedade e encantar quem nos visitava. Contrastam com tantos homens de relevo do Brasil contemporâneo, figuras grotescas, toscas, contrafações popularescas ou arrogantes do que outrora hove, ainda que em ambientes limitados. Quase diria, uma bênção que evolou deixou no lugar maldição cuja fedentina se entranha em tudo.

Vou dar um exemplo notável de traços do Brasil de outrora (já tenho aludido a ele) que hoje impulsionariam avanços civilizatórios, escolhido entre vários, mas já enterrado na história. Postas as condições atuais, não mais acontecerão, desapareceram os ambientes em que nasciam e se firmavam. Vem de Fernand Braudel (1902-1985), muitas vezes considerado o maior historiador francês do século passado. Morou no Brasil entre 1935 e 1937 (ainda em1947), lecionando na então recém-fundada USP. Conheceu e privou com muitos brasileiros, parte deles intelectuais de expressão, estudou autores nacionais, imergiu na vida intelectual do país. Não só isso. Frequentou casas de família, ouviu observações de pessoas de todas as condições; de outro modo, escutou as palavras e delas percebeu o tom e os entretons. Viajou. Sentiu o calor, o perfume e a cor da sociedade brasileira; sua realidade e seu passado profundos. Ao lado da instrução, veio o embebimento, a educação por osmose.

Em simpósio sobre sua obra, realizado em Châteauvallon, 1985, ano do falecimento, explicou Fernand Braudel: “Eu me tornei inteligente indo ao Brasil. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida eu passei no Brasil”. Em outra ocasião, meses antes, na Academia Francesa, afirmou: “O Brasil foi o grande período de nossas vidas”. Ainda, “eu me tornei menos banal [no Brasil]”. Constatou agradecido, “foi no Brasil que me tornei o que sou hoje”. Sua grande obra foi “La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II”. Dela disse: “Não creia que eu teria escrito sobre o Mediterrâneo um livro diferente dos outros, se eu não tivesse estado antes no Brasil”. Perguntado sobre o significado de se ter tornado inteligente no Brasil, respondeu sorrindo: “Talvez tenha sido porque lá eu aprendi a ser feliz”. Claro, em boa medida, é força de expressão dizer que se tornou inteligente no Brasil, utilizada para ressaltar com mais força a gratidão sentida pelo fato de a frequentação de ambientes nacionais lhe ter aberto horizontes mentais decisivos para sua vida intelectual.

Tendo como fundo as palavras de Fernand Braudel, é melancólico constatar, fechou-se um horizonte para nós, perdeu-se inconsideradamente ativo importante. Não haverá um Braudel 2. Por razão simples: mudaram os ambientes de formação, o principal dos quais era o interior das famílias, e com isso o Brasil perdeu uma de suas mais importantes características, digamos assim, nas pegadas do historiador francês, a de fazer os outros mais inteligentes, motor de progresso real. Seria possível recobrá-la? Sem dúvida. Duas palavras a respeito. A primeira coisa, lamentar a perda. Suporia reatar com aspectos do passado, um meia volta volver; quase uma ressureição. Para tal, pedir a Deus, claro. E ainda conhecer direito o que terá encantado tanta gente, pôr de lado contrafações. Daí, ambientes domésticos, comportamentos e “role models” renovados. Outro título para o artigo: brado de afeto e angústia.


segunda-feira, 20 de julho de 2020

O COVID-19 e santo Antão


O COVID-19 e santo Antão

Péricles Capanema

Não mais tolerando o confinamento, muitos estão jogando a toalha. Como que sufocados, querem sair logo de casa, tomar um ar, espairecer, pelo menos dar umas voltinhas no quarteirão; estão enjoados com as pessoas que veem todos os dias, precisam já ver gente diferente, sentir outras pessoas em volta, conversar sem a máscara. E, não menos importante, machuca muito a sensação do abandono, tantas vezes acabrunhante, em especial a falta de contato com familiares e amigos. Enfim, o isolamento para muitos está cobrando preço quem sabe excessivo. Abertura já, flexibilização já. Não ligam para fases, nem para cores, seja o que Deus quiser.

Em curto, o isolamento prolongado amargura e desorienta. Sumiu o bem-estar psicológico que propiciava a vida da movimentação livre, cafezinho no bar, pastel na padaria, longas passadas e paradas diante das lojas. Em rumo contrário ▬ com a economia em queda, não obstante promissores sinais de recuperação ▬, avultam no caminho, como assombrações, a insegurança, a incerteza e o medo do futuro. Em casos sem conta também a grana curta, todavia, por outro lado, muita gente está percebendo o que antes não chamava atenção, é possível com menos viver igualmente bem.

Vivemos numa civilização do toque, do contato, do calor humano. Da conversa, da conversinha e da falação. Emoções e sentimentos se expressam pela proximidade. Estávamos acostumados com tudo isso e desapareceram da noite para o dia, mudou o panorama. Olhamos para os lados sem saber o que fazer e a quem recorrer. Será o fim da linha? Sair agora do confinamento? O preço poderá ser ainda mais alto. Não sou médico, nem autoridade pública para fazer reparos e dar orientações, cujos fundamentos, melhor que eu, conhecem os especialistas.

Corta. Meu foco aqui é outro, o entretenimento, bem de primeira necessidade. Tem muita gente mundo afora enfrentando riscos de internamento em UTIs, sequelas permanentes, até morte, para sorver com delícias alguns minutos de distração. Pesam os prós e contras e se lançam, ao voltar parcialmente à normalidade do período anterior ao COVID-19, na aventura do perigo calculado para tentar escapar da depressão, construir barreiras contra desequilíbrios psíquicos e fortalecer defesas do organismo. Os ares novos permitem desviar o olhar, que seja por pouco tempo, das perspectivas minguadas do confinamento, bem como divisar horizontes maiores e dar as costas para ambientes em que o futuro aparece toldado pela neblina das incertezas.

Entretenimento, bem de primeira necessidade, dizia. Significa divertimento, distração, diversão. Não é só isso. Dou aqui à palavra também significado pouco usual, talvez novo. O trabalho, o esforço, as provações, a seu modo, têm condições de fazer parte do entretenimento. Entreter significa também ocupar o tempo com esforço estrênuo em algo útil e, em consequência, deixar-se dominar pela sensação da vida justificada. E assim fortalecer os nervos espirituais, formando, ampliando e enrijecendo a personalidade. Um soldado numa trincheira, debaixo de saraivadas mortais de balas e granadas, pode ter em plenitude tal sensação. Igual modo, uma enfermeira exausta, lutando para salvar vidas numa UTI repleta de pacientes com COVID-19. Alegria na fina ponta da alma, mantida longe das depressões.

Corto de novo. O que faz santo Antão no título, tem alguma coisa a ver com o assunto? Tudo. Pensava nos sofrimentos do confinamento. Todos fugimos do sofrimento, mas não do confinamento. Surgiram naturalmente as figuras dos monges do deserto, que fugiam da sociedade e se afundavam no deserto, buscando voluntariamente a solidão [sob tantos aspectos forma extrema de confinamento]. Na solidão voluntária encontravam significado para a vida, imprescindível para a felicidade. E assim, por associação de ideias, surgiu esmaecida, lá no fundo, a figura de santo Antão, em muitos sentidos, o primeiro e o maior dos ermitãos, sol no nascedouro da vida monástica no Ocidente. Santo Antão tem todos os títulos para ser o padroeiro dos presentes dias de confinamento, ser nosso intercessor para que transcorram de maneira proveitosa, ao mesmo tempo entretida e virtuosa, para cada um e suas famílias. Santo Antão, rogai por nós.

Intitulado o pai de todos os monges, santo Antão, segundo seu biógrafo santo Atanásio, bispo de Alexandria, nasceu na Tebaida, no Alto Egito, em 251 e faleceu em 356. Viveu 105 anos, portanto, séculos 3º e 4º. De família aristocrática e rica, perdeu os pais por volta dos 20 anos. Logo depois, em seguimento aos conselhos evangélicos, vendeu o que tinha e distribuiu aos pobres, estabelecendo-se como penitente nos arredores da vila em que tinha nascido. Conheceu outros eremitas por ali, procurava imitá-los, frequentava a igreja. Sentiu por volta dos 35 anos chamado para vida mais distante dos homens e buscou no fundo do deserto fortificação militar antiga e abandonada, onde se trancou. Amigos seus levavam a comida (pão) que lançavam por cima do muro. Muitos o procuravam, mas em geral não os recebia a não ser muito raramente. Vinte anos depois, já caminhando para os 60 anos,  aceitou orientar pessoas que ali queriam se fixar como monges. Impressionou a todos quando deixou a fortificação, forte e sadio como aos 35 anos. Ao redor dali, sob orientação do santo, foram fundadas ermidas e comunidades que buscavam a perfeição cristã. Um sem-número de eremitas e cenobitas viviam nas proximidades sob sua luz. Santo Antão, por duas vezes deixou a região para ir a Alexandria; na primeira para apoiar cristãos perseguidos, na segunda para lutar contra o arianismo. Com fama de santidade, eram numerosos os que buscavam seus conselhos em viagens ao local ou por carta, entre os quais o imperador e seus dois filhos.

A vida monástica ali praticada, da qual ele foi o motor, repito, está na origem do monaquismo cristão, amplo e importante impulso de piedade, com enormes reflexos civilizatórios, do qual surgiu a Europa, tal qual a conhecemos. E a América. É lícito conjeturar, quase nada de grande do que produziu a Europa, teria existido sem o enérgico impulso inicial dado por santo Antão, imerso na solidão voluntária, do fundo de um deserto.

Quem não fica tocado, caminhando pela serra da Canastra, ao ver o filete de água de onde provém o rio São Francisco, a nascente histórica? Ou, mesmo olhando o começo do rio Samburá, a nascente geográfica? Ali começa tudo. Até se perder no oceano Atlântico, quase 3 mil quilômetros depois, o rio São Francisco fertiliza, alimenta, transporta, embeleza. Santo Antão é o filete de água do monaquismo, impulso inicial de incalculáveis rios de virtude, cultura, arte, oração, civilização ▬ enfim, de perfeição natural e sobrenatural. Avanço civilizatório de fato está aqui.

Concluo. Santo Antão viveu entretido até os 105 anos, a maior parte dos quais na mais completa solidão ▬ na oração, na penitência, na leitura e reflexão, nos trabalhos de cultivo e criação. Dali, por graduais e sucessivos efeito aprimorantes, via de regra em círculos cada vez mais afastados, foi surgindo sociedade mais moralizada e civilizada. Sob a luz de tal exemplo, no confinamento, para cada um, podem surgir visões mais abrangentes de considerar a vida, maneiras mais apuradas de convívio, até de preparar pratos, tanta coisa mais, que poderão melhorar para sempre a vida das pessoas, das famílias, dos círculos próximos. Mais ainda. O confinamento pode ser destrutivo, contudo  tantas vezes esconde bênçãos. Cabe a nós não as deixar passar ao largo.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Putin desfaz ilusões


Putin desfaz ilusões

Péricles Capanema

O artigo escrito por Vladimir Putin, verdadeira proclamação, abaixo trechos comentados, desfaz ilusões, uma vez mais. Traz afirmações elucidativas para gente de espírito objetivo. Contudo, para viciados em fantasias ▬ legiões que infelizmente ainda veem no ocupante do Kremlin um líder que justifica esperanças ▬, as crendices resistem à evidência. No caso, à evidência do preto no branco sobre o papel.

Em 10 de junho último o presidente russo publicou em “New Europe” matéria extensa, a bem dizer ensaio, sobre suas convicções e orientação política. Mereceria análise dos que têm por ofício esclarecer a opinião pública no Brasil ▬ não a vi. Afinal, trata-se de político com chance, por enquanto, de permanecer no poder até 2036, ultrapassando em tempo (como primeiro-ministro e presidente) no leme de país importante, intervencionista e imperialista, de muito, os anos de chumbo da ditadura stalinista (1927-1953).

O artigo de Putin se intitula “75º aniversário da grande vitória: responsabilidade histórica compartilhada e nosso futuro” ▬ em inglês, “75th Anniversary of the Great Victory: Shared Responsability to history and our Future”. Está na rede. Coloca a Rússia atual como continuadora, em especial na política externa, da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). E enfatiza que o norte, segundo ele, lá na era staliniana e cá na era putiniana, é e sempre foi a proteção e defesa dos interesses nacionais russos. Nesse aspecto, faz clara e argumentada defesa da política stalinista, ataviando seu autor com os adereços de grande e avisado nacionalista. Por alto, só uma vez, circunlóquio rápido para minorar o peso a reserva, censura a perseguição comunista à religião e os ataques à história russa (“zombarias contra nossa história nacional, tradições e fé que os bolchevistas tentaram impor, em especial nos primeiros anos”).

Ponto curioso, em nenhum momento Putin diz que o povo russo lutou na 2ª Guerra Mundial pela defesa do comunismo. A guerra é patriótica, os russos defendiam a terra ancestral, a terra do pai, a terra da mãe, os lares, crianças, pessoas amadas, famílias. Stalin de fato lançou mão desse artifício, sofreria estrondosa derrota se apelasse para a defesa do comunismo contra o nazismo. O povo russo tinha horror ao comunismo, que o escravizara. E Putin embarca aqui; hoje, como ontem foi com Stalin, o foco é defender a Mãe Pátria. Mas, é claro, a Rússia com a guerra consolidou e expandiu o comunismo, realidade ovante calada por Putin.

Esbofeteando a história, o líder russo atribui papel decisivo à contribuição da URSS na derrota do nazismo (seria maior que o concurso norte-americano): “A União Soviética e o Exército Vermelho, não importa o que se está tentando provar hoje, foram as principais e centrais contribuições para a derrota do nazismo”. Desvaloriza, congruentemente, a amparo norte-americano à Rússia soviética enviada em especial por meio do “Lend and Lease Act”, evidenciando que a mentira, da qual era useira e vezeira a União Soviética, continua amplamente usada como instrumento de propaganda na Rússia atual: “Seremos sempre gratos ao apoio aliado fornecendo ao Exército Vermelho munição, matéria prima, alimento e equipamento. Ajuda significativa, em torno de 7% da produção militar total da União Soviética”.

De passagem, alguns dados sobre o “Lend and Lease Act”. Mais de um terço de todos os explosivos usados durante a guerra. 55% do alumínio, mais de 80% do cobre, 57% do combustível dos aviões, 35 mil rádios, 32 mil motocicletas, 33% dos veículos, 20 mil lançadores de foguetes foram montados em cima de caminhões norte-americanos, recuperação do sistema ferroviário, 2 mil locomotivas, metade dos trilhos para o sistema ferroviário. Um enorme etc.

Justifica o autocrata russo, inteiramente, qualificando-o como medida de defesa nacional, o pacto Ribbentrop-Molotov, bem como de justa a anexação tirânica à URSS da Estônia, Lituânia e Letônia “feita com base contratual com o assentimento das autoridades eleitas”. Afirma em relação às nações do Leste europeu que foram esmagadas por Stalin (Estados satélites): “[A União Soviética e o Exército Vermelho] libertaram Varsóvia, Belgrado, Viena, Praga. [...] E assim a Exército Vermelho começou sua missão de libertação na Europa. Salvou nações inteiras da destruição, da escravidão e do horror do Holocausto”.

Enfim, a Rússia de hoje, continuando a mesma política, seria a herdeira reconhecida da União Soviética. E o que propõe ela? De começo, como herdeira, Putin articula nova rodada de negociações, semelhante às conferências de Yalta e Potsdam, que, como aquelas, reconfigurariam o mapa mundial (em especial, certamente, zonas de influência). “Hoje, como em 1945, é importante demonstrar vontade política e discutirmos juntos o futuro. Nossos colegas, Xi Jinping, Macron, Trump e Johnson, apoiam a iniciativa russa de termos uma reunião de líderes dos cinco estados com bombas nucleares, membros permanentes do Conselho de Segurança”. Os temas são os mais esperados, amplos e genéricos ▬ tudo o que é especialmente importante. O Chefe de Estado russo julga fundamental o encontro das cinco potências para dar rumo novo e estável ao mundo inteiro.

Acontecerá? Não sei, julgo pouco provável, para não dizer impossível. Trump está em posição fraca nas pesquisas. Poderá ser substituído por Biden. Índia, Japão, Alemanha, Paquistão aceitarão que, como no passado, outros países decidam o futuro deles?  Quem acredita nisso? E Argentina, México, Brasil, Indonésia, Canadá, Austrália? Israel? Os povos muçulmanos? Os árabes? Entre outros, o que pensarão da tal reunião que os coloca, disfarçada mas inequivocamente, em condição análoga à do menor de idade?

Tem mais. A Rússia ▬ hoje, tratada como potência inescrupulosa [mais no ponto, país bandido] ▬ não tem autoridade moral para convocar nada. Depois da anexação violenta da Crimeia, foi excluída do G-8. Foi excluída também das competições esportivas internacionais por quatro anos, o que inclui as próximas Olimpíadas. Está sendo acusada de roubar pesquisas sobre a vacina contra o coronavirus. Enfiou o nariz nas últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos. Paro por aqui.

Em suma, por todo o visto, parece improvável que os grandes de 1945 (e a China) se reúnam só entre eles e se julguem com poderes para decidir o destino do mundo. Contudo, é preciso ter sempre em vista a proposta de Putin, reiteração do desejo de estabelecer uma espécie de “pax romana” estável e permanente pela divisão do mundo em áreas de influência, como se deu em Yalta. É proposta perigosa, com consequência quiçá mortais; poderá voltar com outros atavios.

Entrementes, o governo russo continua expansionista: lembro apenas, apoia movimentos nacionalistas, as ditaduras venezuelana, síria e cubana. Objetivo sempre presente: minar o poder dos Estados Unidos. Em resumo, em sua política Putin se descreve como autêntico continuador de Stalin. E aqui concordamos com ele.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Bofetada prenunciativa


Bofetada prenunciativa

Péricles Capanema

A bofetada humilha, avassala, abate; contudo, pode acender brios. Enfim, o efeito depende em parte de quem a recebe. Nelson Rodrigues achava: “O pior da bofetada é o som. Se fosse possível uma bofetada muda, não haveria ofensa, nem humilhação, nada”. Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia esbofeteou o Ocidente, desdenhou autoridades religiosas e políticas, ao destinar a igreja de Santa Sofia, até então museu, ao culto muçulmano. Estralejou alto o sopapo, ecoou humilhante o som ensurdecedor. A partir de 24 de julho, a antiga catedral bizantina estará aberta ao culto muçulmano. Pelo jeito, foi estudada e prenunciativa bofetada; virão outras, tudo o indica.

Declarou o autocrata: “Hoje, a Turquia se livrou de uma vergonha. Santa Sofia vive, de novo, uma de suas ressureições, como já sucedeu várias vezes no passado. A ressureição de Santa Sofia prenuncia a libertação da mesquita Al-Aqsa” em Jerusalém. Continuou: “Significa que o povo turco, os muçulmanos e toda a humanidade têm novas coisas para dizer ao mundo”. Que novas coisas terá a Turquia para dizer ao mundo? Pela voz dos símbolos, já está falando. No anúncio televisionado, o presidente da Turquia citou um intelectual turco, Osman Yüksel Serdengeçti que anunciou a vinda de um segundo conquistador para devolver Santa Sofia ao Islã. “Este dia chegou”, proclamou Erdogan.

Como se sabe, a basílica de Santa Sofia foi construída no século VI pelos bizantinos (imperador Justiniano), depois foi catedral cismática. Com a conquista de Constantinopla em 1453 pelo sultão Maomé II, o Conquistador, o primeiro conquistador, foi feita mesquita; a partir de 1934, museu.

Borbotaram de todos os quadrantes respostas à insolência do presidente Erdogan, ainda que até agora fracas; de outro modo, palavras desacompanhadas de medidas concretas. Três reações significativas resumem um lado da questão. Na véspera do desplante, Mike Pompeo, secretário de Estado dos Estados Unidos, tentou evitar a desfeita, solicitando ao líder turco “continuar a conservar Santa Sofia como museu, exemplo de seu compromisso de respeitar as tradições culturais e a rica história que moldaram a república turca”. Jean-Yves Le Drian, ministro do Exterior da França, em comunicado, declarou: “A França deplora a decisão do Conselho de Estado turco de modificar o estatuto de museu de Santa Sofia e o decreto do presidente Erdogan a pondo sob a autoridade da direção turca dos negócios religiosos. Tais decisões colocam em causa um dos mais simbólicos atos da Turquia moderna e laica. A integridade dessa joia religiosa, arquitetural e histórica, símbolo da liberdade de religião, de tolerância e de diversidade, inscrita no patrimônio mundial da UNESCO, deve ser preservada”. Ameaçadas estão a modernidade, laicidade, tolerância, liberdade de religião e diversidade, é a censura do governo francês. Finalmente, o presidente Vladimir Putin expôs a seu colega turco o desagrado causado na Rússia inteira pela decisão do governo turno. Comunicado do Kremlin afirmou que o presidente russo “chamou a atenção de Recep Tayyip Erdogan para a significativa desaprovação causada na Rússia pela decisão de mudar a situação de Santa Sofia”.

Ou seja, entendia-se como adesão estável à modernidade o ato do presidente Mustafá Kemal Ataturk, fundador da república turca, que em 24 de novembro de 1934, como foi dito, transformou em museu a até então mesquita. A Turquia deixava para trás a condição de estado muçulmano confessional, com legislação enraizada no Corão e adotava princípios constitutivos vigentes na maioria dos países ocidentais. Caminhava em direção à Europa, à qual já pertence, geograficamente, pela metade. Com efeito, desde décadas ela faz parte da OTAN tem lugar em organismos internacionais e busca fazer parte da União Europeia. Com a bofetada, ela se distanciou da Europa e dos Estados Unidos, aproximando-se de Estados muçulmanos. Potência regional, representa muito na junção da Ásia e da Europa o país de 80 milhões de habitantes (renda per capita em torno do dobro da brasileira), por volta de 800 mil quilômetros quadrados.

Fica a questão da Rússia, inimigo histórico, justificativa política importante para a adesão à OTAN e ao Ocidente. Sintomaticamente, no meio da condenação geral, inclusive dos cismáticos russos, Putin teve gesto quase formal. Ele também utiliza a fórmula nacionalismo, patriotismo, religião para se manter no poder. Autoritarismo, nacionalismo, religião, defesa de uma vaga identidade pátria são vias que favorecem uma aliança futura, presumivelmente prejudicial aos Estados Unidos e à Europa.

Falava acima, um lado da questão, era o político. O outro é o religioso. Destaco em particular um ponto. O enorme edifício do ecumenismo religioso entre Islã e Cristianismo, construído pacientemente há décadas, mambembe e artificial, é verdade, mas enfim levantado, recebeu trinca de alto a baixo. A afirmação desafiadora das crenças do Islã, a proclamação de que é apenas o primeiro passo em novas conquistas, bem como a inteira desconsideração dos sentimentos dos católicos e dos cismáticos, deixam no ar um cheiro de jihad, uma atmosfera de enfrentamento.

O Papa Francisco se declarou “aflitíssimo”. Bartolomeu, patriarca ecumênico de Constantinopla, já havia tomado posição, tendo advertido, Santa Sofia era “um símbolo do encontro, solidariedade, compreensão mútua entre o Cristianismo e o Islã”. Foi adiante “transformá-la em mesquita poderia lançar milhões de cristãos no mundo inteiro contra o Islã”. De novo aparece o clima de enfrentamento, pois estava sendo destruída a atmosfera de encontro, solidariedade e compreensão. A igreja cismática russa lamentou a decisão e afirmou que ela trará “consequências sérias para toda a civilização”. Seu porta-voz observou: “Constatamos que a inquietação de milhões de cristãos não foi levada em consideração”.

Resposta de Erdogan, trata-se de exercício de direitos soberanos. Não amolem, em linguagem informal. “Os que não se preocupam com a islamofobia em seus próprios países, atacam a vontade da Turquia de exercitar seus direitos soberanos. Tomamos esta decisão sem levar em conta o que os outros dizem, mas considerando nossos direitos, como fizemos na Síria, Líbia e em outros lugares”.

Pelo que representa e prenuncia, a bofetada aprofunda trincas na aliança ocidental, é afirmação desafiante de poder muçulmano, deixa em frangalhos as alegações em que se esteia o diálogo ecumenista entre cristãos e muçulmanos. Virão outros sopapos. Se recebidos com resignação derrotista, representarão recuos. Podem, contudo, acender brios. Aí a história seria outra.

domingo, 12 de julho de 2020

Saneamento infeccionado


Saneamento infeccionado

Péricles Capanema

O novo marco legal para o setor de saneamento básico despertou numerosas (espero que justificadas) esperanças. O objetivo é até 2033 levar água tratada para 99% e esgoto para 90% dos brasileiros. Trinta e seis milhões de brasileiros não contam com água tratada e 101 milhões não dispõem de serviço de coleta de esgoto. Apenas 41% da população têm esgoto tratado. Outros dados preocupantes, em 2018 se perdeu mais de 38% da água tratada, desperdiçada ao longo da distribuição, falta de manutenção adequada.

Caminho a construir. São inestimáveis as vantagens de ordem material, cultural e moral que traz a água em casa, a presença do sistema de esgoto, o tratamento que restaura os rios em sua utilidade e beleza pristinas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) calcula que um real aplicado no saneamento poupa quatro reais em gastos com saúde. Tudo isso pode ser proporcionado, pelo menos em larga medida, pela aplicação enérgica do novo marco legal do saneamento. Para tal, são cálculos de bons especialistas, será necessário investir na ampliação do setor cerca de $500 bilhões de reais. E ainda por volta de R$250 bilhões na recomposição e manutenção do sistema existente. São quase R$800 bilhões de reais, em torno de R$50 bilhões por ano até 2033. Aqui se adensa o problema, intenções e papel são bem mais fáceis de obter.

Obviamente, o Poder Público, falido, lerdo e perdulário, não tem capacidade de atender a tal demanda, à vera, necessidades prementes. E quem sofre é o povo, de forma especial os mais desassistidos. Em boa hora o novo marco do saneamento abriu portas para iniciativa privada nacional, bem como para o investimento estrangeiro. Hoje, apenas 6% das redes de água e esgoto no Brasil são geridos pela empresa privada, decorrência de atávica opção preferencial pelo estatismo, retrocesso mental difícil de remover, uma das causas de nosso atraso econômico ▬ endêmico.

Preocupa. Entre os maiores interessados em aplicar maciçamente no setor, três me chamaram particularmente a atenção. O primeiro, fundos soberanos. Preocupa. Fundos soberanos são fundos de propriedade e gestão estatais; capitais geridos por governos. Vamos privatizar e entregar a órgãos estatais do Exterior a propriedade e gestão de um setor importante da economia? Que orientação política terão tais governos? O olhar não pode se limitar ao prazo curto, concessões supõem prazos dilatados, 30, 50 anos. Com que objetivos trabalharão no País os grupos econômicos cujos acionistas principais são fundos soberanos? Afirmei, tal fato preocupa. É mais um passo da privatização à brasileira, entregar estatais tupiniquins ou serviços públicos para estatais estrangeiras. E sair blasonando que o governo leva diante enérgico programa de desestatização. Não percebi ninguém que pense em enfrentar a dificuldade.

Alarma. Os outros dois interessados alarmam, não apenas preocupam. Duas corporações gigantescas, Gezhouba Group e o China Railway Construction Corporation, são citados na imprensa como dos maiores interessados em investir no setor de saneamento.

São mastodônticos grupos econômicos ▬ estatais chinesas. Não custa repetir, já há anos lembro o óbvio: as estatais chinesas são dirigidas pelo governo chinês, seus diretores na imensa maioria são membros do Partido Comunista Chinês (PCC), dono do governo. Vencida as concorrências, obtidas as concessões, quem, em última análise, vai dirigir a empresa formada por quaisquer desses dois grupos nas grandes capitais ou, exemplo, no interior da Amazônia, é o Partido Comunista Chinês. E a sujeitará a seus objetivos políticos. Como está avassalando Hong Kong, indiferente aos protestos de todo o mundo ocidental. Essa nova realidade, se implantada, nos próximos anos trarão mais alguns passos em nossa via para o protetorado, o caminho da servidão. Do total do bolo, que porcentagem abocanharão? Iniciativas semelhantes de sujeição ao poder chinês estão acontecendo em outros setores da economia.

Já sei, infelizmente não vai ser outra a linguagem do noticiário, é o que dita a experiência, mas convém repetir. Quando lermos na imprensa, empresas chinesas, entendamos, estatais chinesas. Quando lermos, investidores e empresários chineses, entendamos burocratas do PCC. Quando lermos investimentos chineses, entendamos aplicações do governo chinês.

Horror da transparência. Vivemos no reino dos eufemismos e das ocultações, da fuga obstinada da verdade e da transparência. E, desde os governos tucanos, pouco ou nada alterou até agora no avanço da China sobre a economia brasileira, com piora do quadro no período petista. Mudará? Oxalá, receio que não. No caso, trata-se de ameaças à independência e à soberania nacionais. E que ninguém se engane, se o rumo não for revertido, o tempo vai trazê-los ▬ governos totalitários. Protetorados, confessados ou disfarçados, tendem a seguir o modelo vigente nas metrópoles.

O tempo, falei dele. O tempo não parou durante o confinamento, acelerou-se em vários e decisivos âmbitos. A China começou como bicho papão, causa da crise. Pode tornar-se grande ganhadora. Sua economia sofreu menos que as outras. Caso de lá venha a vacina, e trabalham para tal, já declarou que será “bem público”, ou seja, não haverá direito a royalties e patentes, recolherá louros. De outro lado, os Estados Unidos, em vez de tomar a dianteira na coordenação e resolução da crise, afundaram-se em intermináveis disputas intestinas. Parecem perdidos de momento. Putin consolidou-se na Rússia. E, quem diria, Maduro dá sinais de estar se consolidando na Venezuela, para alegria de seus amigos cubanos, chineses e russos. Um eventual governo Biden agravaria tal quadro.

Esperança viva. Por que lembro tudo isso? Porque, como vigia na espreita, quero a vitória. Indispensável apontar zonas de infecção e tentar evitar que o desleixo, a superficialidade e o otimismo acarretem o fracasso.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Fugindo do óbvio


Fugindo do óbvio

Péricles Capanema

O ministro José Luís Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tocou em ponto delicado, silenciado e óbvio: “Temos preocupação que a facultatividade [do voto] possa produzir a deslegitimação dos eleitos na possibilidade de um elevadíssimo índice de abstenção”. Depois, aludiu a questão circunstancial: “Embora ache que deva se considerar, sim, uma eventual anistia de multa, ou considerar uma justificação dos que não compareceram por fundado temor de contração do vírus por se sentir grupo de risco." Em resumo, seria bom deixar de multar quem não apertar os botões na urna em 15 e 29 de novembro próximos.

Vou tratar do óbvio silenciado, levantado para surpresa minha por José Luís Barroso: o temor de o voto facultativo deslegitimar no Brasil as eleições e os eleitos. De outro modo, que o povo, soberano reverenciado na mitologia revolucionária, dê as costas para o processo eleitoral, desvalorizando o mandato dos escolhidos. Tô nem aí, diria um jovem. Repetindo o ministro para fazer de clareza solar a afirmação dele ▬ existe generalizado temor de que o voto facultativo possa deslegitimar os eleitos pela possibilidade de elevadíssimo índice de abstenção.

Qual seria o índice de abstenção no Brasil com o fim do voto obrigatório? Ninguém sabe. Meu palpite, 70-75% de abstenção em média, considerando todas as eleições. Um pouco menor nas votações para presidente e governadores, quem sabe prefeitos de grandes cidades, subiria a abstenção nas legislativas.

Já tratei do assunto em vários artigos: não acho que o voto facultativo deslegitime a eleição e desvalorize os eleitos entre nós ▬ todo mundo está cansado de saber que o voto vale pouco. À vera, expulsaria a fraude política silenciada e puxaria para o proscênio a realidade, mesmo desagradável, e a transparência. O voto obrigatório perpetua o embuste que cobre a represesntação, faz aparentar interesse onde não há, tange para a urna sob pena de punição ou distribuição de pequenos prêmios, multidões desinteressadas; todo mundo fica obrigado a votar debaixo de vara; se não o fizer, multa, proibição de praticar atos normais da vida civil. O soberano (o povo) é quase tratado como marginal perigoso, que precisa de vigilância minuciosa. Veja o que acontece ao desvalido eleitor se o deixar de votar, exercício de um direito, transmutado em dever penoso, e não justificar (alguns exemplos, não é tudo): não pode se inscrever em concurso público; não receberá vencimentos, remuneração em emprego público, autárquico ou de paraestatal, de empresa ligada ao Estado, proibição de participar em concorrências públicas; proibição de tirar passaporte, carteira de identidade, renovar matrícula em instituição fiscalizada pelo Estado; proibição de empréstimo na Caixa Econômica Federal; proibição de participar em ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou do imposto de renda. Em suma, amolação e atraso de vida para o pobre cidadão desamparado. Retrocesso.

A maioria dos países adota o voto facultativo. Entre eles, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Japão, Alemanha, Espanha, Portugal. Ninguém lá teme deslegitimar eleições nem desvalorizar eleitos por causa da abstenção. Entre a minoria que adota o voto obrigatório, além do Brasil, figuram Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai e Egito.

Entre nós, o voto facultativo baratearia as eleições (o custo proibitivo das campanhas é o maior fator de corrupção na política), melhoraria a representação, traria maior proximidade entre eleitores e eleitos. Apesar da evidência, o político brasileiro, direita, centro e esquerda, no caso, deputados federais e senadores, em geral foge da aprovação do voto facultativo como o diabo da cruz. Tem pavor de tratar do assunto. Quando pressionado, dá evasivas; poucas vezes se diz pronto a aprovar qualquer PEC a respeito. Há poucas exceções, às quais aqui homenageio. Não custa lembrar, voto obrigatório (determinado pelo artigo 14, § 1º, I da Constituição) não é cláusula pétrea. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.

Sem dúvida, o voto facultativo traria eleitos com votações pequenas, acabaria com muitos candidatos folclóricos, forçaria atitudes de sobriedade e modéstia nas casas legislativas, silenciaria blá-blá-blás de participação popular (inautêntica). Enfim, sanearia muita coisa. Mas é pregar no deserto, para desgraça nossa existe sólida maioria na Câmara dos Deputados e no Senado contrária à sua adoção, unida na preservação do entulho autoritário. Panaceia? De modo nenhum, melhoraria algum tanto a representação política, já é ganho ponderável, um avanço civilizatório, de que nos privam os eleitos (por nós).

Viro a página. O ministro Barroso levantou tema de enorme importância: a legitimidade. Deixou evidente que a legitimidade, mesmo em situações perfeitamente legais, pode ser ofendida e é dever dos homens de bem evitar a ofensa. Com o voto facultativo, opina o ministro, as eleições teriam igual força constitucional e legal, mas faltaria legitimidade aos eleitos, pouco sufragados. Para ele, situação grave a evitar. Ele tem razão num ponto essencial, a legitimidade não se assenta exclusivamente na lei. Assenta-se também, completo, em outras realidades; se olharmos para o Direito Natural, negado por tantos, tem ali raízes. Em curto, o que é legitimidade? Vai aqui conceito caseiro, sujeito a bombardeios, é a conformidade com a ordem. Ordem via de regra nascida da natureza, da História, do fato moralmente justo. Qualquer situação, brotando da desordem, irrompe ilegítima. É útil recordar, existem a legitimidade e a ilegitimidade da ordem social, das leis, das condições sociais, das dinastias e não apenas das reais. Viver dentro da legitimidade é das mais importantes condições para a consecução do bem comum. E, por ricochete, dos bens individuais. É, contudo, assunto para outra ocasião.

Volto ao fulcro, não fujamos do óbvio. É notório, o eleitor brasileiro, desinteressado de política e eleições, sem apetência pelos pratos oferecidos, em sua boa maioria, não votaria se não fosse tangido, debaixo de vara, para a urna. É inafastável a pouca representatividade dos eleitos, a mais do claro fracasso democrático, fatos em nada ofuscados pela tentativa de tentar tapar o sol com a peneira mediante a adoção do voto obrigatório. Haveria mais legitimidade em nossos processos eleitorais com a adoção do voto facultativo; a verdade e a transparência, hoje evitadas, iluminariam melhor o processo eleitoral.

Eleições na bica


Eleições na bica

Péricles Capanema

No Brasil teremos eleições municipais em 15 de novembro; nos casos de 2º turno, ainda em 29 de novembro, votações para prefeitos. Sem dúvida importantes, fornecerão estimativa, instantâneo, de como se posiciona a opinião pública e tornarão mais plausíveis os prognósticos para 2022.

Aqui as eleições brasileiras serão tocadas de raspão, não é sobre elas que pretendo discorrer. Eleições presidenciais norte-americanas serão o tema. Muita gente já comentou em blague, repito o gracejo, as eleições presidenciais nos Estados Unidos influenciam tanto, que todo mundo deveria votar delas.

A conhecida revista inglesa “The Economist”, em sua última avaliação sobre o pleito de 3 de novembro próximo coloca Joe Biden com 54% dos votos populares, Trump com 46%. Ainda segundo “The Economist”, de momento Biden tem 90% de chances de ser o próximo presidente dos Estados Unidos (98% de probabilidade de vencer no voto popular).

Se os atuais prognósticos foram confirmados, e não é difícil que o sejam ▬ ainda que pesem sobre eles as justificadas reservas sobre a objetividade das pesquisas ▬, Biden chegará ao poder à frente de gigantesca coligação que incluirá, apenas como exemplos, simpatizantes do movimento vandálico de derrubada de estátuas, setores extremados do “Black Lives Matter”, defensores da pauta LGBT, ideologia do gênero, aborto. E ainda forças políticas que simpatizam com partidos de esquerda na América Latina. Em outro âmbito, presumivelmente ficarão mais fáceis as manobras de Xi Jinping e Vladimir Putin para expandir a própria influência e minar a importância dos Estados Unidos no mundo. Queira-se ou não, terão sido enormes golpes nos interesses do Ocidente, eco pálido (a demolição interna é enorme) e, paradoxalmente poderoso (engloba países de grande poder) do que foi a Cristandade. Enormes golpes, disse; reafirmo. Presumivelmente desferidos de forma gradual, passamos por era girondina. E possivelmente menos contundentes para a opinião pública pela restauração parcial, quando menos publicitária, do papel internacional dos Estados Unidos, com a recusa do “America first”.

Adiante. Descendo a detalhes e analisando de perto o período pré-eleição, Joe Biden tem contra si a falta de carisma, o ar distante e a aparência um tanto avoada. Não galvaniza seguidores, eleitores potencialmente seus poderão não se sentir animados a votar no 3 de novembro. Contudo, tais circunstâncias devem ser vistas com olhar matizado. Biden sabe ganhar eleições. Senador aos 30 anos, venceu a seguir seis disputas sucessivas para o Senado; e por duas vezes, junto com Barack Obama, foi vitorioso em eleições presidenciais. É nome nacional desde 1973.

Católico, não age na política de forma coerente com a fé, tendo tido choques com o bispo diocesano, por causa de seu favorecimento do aborto. Semanas atrás, declarou que agirá contra os estados da União que promulgam leis restritivas ao aborto: “Os direitos à saúde das mulheres estão sob ataque quando estados no país inteiro aprovam leis extremadas restringindo o direito de escolha das mulheres sob quaisquer circunstâncias”. Continuou: “Como presidente vou colocar na legislação o determinado pela decisão Roe v. Wade da Suprema Corte e o Departamento de Justiça fará tudo que estiver a seu alcance para impedir a avalanche de leis estaduais que tão claramente violam o direito de escolha das mulheres”. Suas posições pró-aborto e favoráveis ao “same sex marriage” podem lhe tirar votos; é forte o eleitorado conservador nos Estados Unidos.

Joe Biden tem histórico familiar amplo e controverso. Alguns fatos o favorecem eleitoralmente; outros podem prejudicá-lo, em proporção ainda não conhecida. Casou-se em 1966 com Neilia Hunter. Tiveram três filhos, dois meninos e uma menina. A mulher e a filha, em 1972, morreram em desastre de automóvel. Biden casou-se uma segunda vez, em 1977, com Jilly Tracy, com quem teve uma filha. O filho mais velho de Biden, Beau, faleceu de câncer aos 46 anos. O outro filho, Hunter, ▬ observa o sociólogo Manuel Castells, favorável a Biden, em “La Vanguardia” de Barcelona ▬ “uma bala perdida, expulso da Marinha por vícios em drogas e envolvimento em negócios com empresas chinesas e depois ucranianas, que lhe pagavam salários astronômicos por ter um Biden em seus conselhos. Isso explica o escândalo da negociação de Trump com o presidente da Ucrânia para que lhe facilitasse informação sobre Biden júnior em troca de ajuda, um assunto que levou à acusação de impeachment contra Trump”. De momento, as estrepolias do filho parecem não prejudicar significativamente a candidatura do pai. Os Estados Unidos têm outras preocupações, em especial a crise econômica e a pandemia.

Uma palavra sobre Donald Trump. Mesmo sem mudanças ideológicas e de aspirações no eleitorado, a crise econômica e a decepção com o comportamento presidencial podem lhe tirar votos decisivos. E, então, reitero, pode começar uma época particularmente difícil: liberdades ameaçadas, crescente desagregação social, ameaças de totalitarismo caminhando a nosso encontro.

Percebo, não despertei esperanças róseas, e fico sujeito à censura de atrair, quiçá prematuramente, o olhar do leitor para perspectivas sombrias. Errei? Não me parece. Em primeiro lugar, não é tão prematuro assim, as eleições estão na bica. E a seguir, tudo o indica, teremos avalanche de fatos que, já agora, precisam ser entendidos, combatidos e detidos quanto possível. A mais, pode-se alegar em favor de tal atitude exemplo histórico de um grande vitorioso. Sem ele, a história da liberdade e das democracias ocidentais teria sido outra. Quando ascendeu ao cargo de primeiro-ministro, no discurso inaugural de 13 de maio de 1940, julgou Winston Churchill necessário para enrijecer a fibra britânica e preparar o país para uma luta vitoriosa expor de forma escancarada a realidade sombria: “Só tenho a oferecer sangue, sacrifícios, lágrimas e suor. Temos diante de nós provação muito dolorosa. Diante de nós estão muitos e muitos meses de luta e sofrimento. Qual é nosso objetivo? Fazer a guerra por terra, mar e ar. Guerra com todo o nosso poder, com toda a força que Deus nos deu. Guerra contra uma tirania monstruosa nunca suplantada no escuro e lamentável catálogo dos crimes dos homens. Esta é nossa política. Qual é nosso objetivo? Respondo com uma palavra: a vitória. Vitória. Não importam os custos, apesar de todos os sofrimentos. Vitória, ainda que o caminho seja longo e duro. Sem vitória, não há sobrevivência”.

“Proportione servata”, se as considerações acima valem para a situação geral, valem também para os dias difíceis que podem estar diante de nós no Brasil, em consequência das eleições de 2020 e 2022.

terça-feira, 7 de julho de 2020

O Cristo Redentor do Corcovado na mira


O Cristo Redentor do Corcovado na mira

Péricles Capanema

Prossegue intensa nos Estados Unidos a campanha de destruição de estátuas simbólicas. Foram derrubadas estátuas de Cristóvão Colombo; várias estátuas de generais heróis na Guerra Civil sofreram a mesma sorte, também algumas de são Junípero Serra. Estátua de são Luís IX, rei da França, foi rapidamente recolhida em Saint Louis para não ser vandalizada. E ainda ameaçadas estátuas dos chamados pais fundadores da nação líder do Ocidente. A destruição continua, nada parece escapar à fúria vandálica. Além de arrancadas violentamente dos pedestais, têm sido corrente, para completar a liturgia caricata, cusparadas, chutes, berros, pinturas afrontosas. Não são raras mutilações e decepações.

A mensagem lampeja clara: a figura dos homenageados evoca realidades já não mais toleráveis. Primeiro o símbolo e depois as realidades simbolizadas serão banidos da superpotência. Acusam-nos de representar uma civilização escravocrata, imperialista, genocida, opressora, em especial de negros e índios. Um passo a mais: é a civilização europeia que está no cadafalso. Outro passo na mesma direção: é a civilização cristã europeia. E a fonte última da Europa cristã é Nosso Senhor Jesus Cristo. Questão de tempo, chegarão lá, as estátuas de Jesus Cristo, símbolo de sua doutrina e igreja, também serão abatidas.

Aliás, já estamos nas primeiras etapas de tal demolição revolucionária ▬ não convém evitar o qualificativo que cabe: satânica. Coerente com o espírito do movimento, foi o que sintomaticamente já anunciou o escritor Shaun King, ativista social, fundador do “Real Justice PAC” e apoiador do movimento “Black lives matter”: as imagens de Jesus Cristo também precisam ser derrubadas, pois lembram “uma forma de supremacia branca”. Imposição da justiça real, parece, ditadura dos novos tempos.

No começo, o vozerio pela derrubada virá da extrema esquerda, de movimentos anarquistas e assemelhados, como já exigido por Shaun King. Depois, vozeadas do centro ecoarão os protestos, propondo a medida como necessidade de harmonia social. No fim, uma suposta maioria centrista achará melhor tirar todas as estátuas de Nosso Senhor dos lugares públicos para preservar o caráter laico do Estado. E, no trajeto, algumas estátuas serão vandalizadas, sem nenhuma punição, forma de impor celeridade maior ao processo demolidor. Alguns, com subestima, às vezes calculada, dirão, são meros atos simbólicos, não mexem no fundo das realidades que importam, que continuarão as mesmas. Serão as mãos que apagam, as vozes que adormecem.

Símbolos não importam? Pulo as décadas, retorno para longe. Em 23 de junho de 1813, Napoleão encontrou Metternich em Dresden. Ali se jogava a sorte da Europa, a vida, quem sabe, de milhões de homens. Foram quase quatro horas de conversas, por vezes amável, por vezes tensa e ríspida. De um lado, o general representante da investida revolucionária. Do outro, o representante da Europa conservadora. Em certo momento de tensão, os dois em pé, Napoleão gritou ameaças e atirou o chapéu no chão. Ele era imperador, o outro, apenas ministro. Esperou um gesto de cortesia de Metternich, recolhendo e lhe devolvendo o chapéu. Nada. O corso passou ao lado do chapéu, empurrou-o com o pé. O chanceler austríaco não se mexeu, fingiu nada ter percebido, continuou a argumentar. Napoleão ameaçou:

▬ Para um homem como eu, a vida de um milhão de homens, vale nada”

Metternich olhou o chapéu no chão. Continuou Napoleão:

▬ Perdi 300 mil homens na Rússia, entre eles não havia mais que 30 mil franceses. Os outros, italianos, poloneses, alemães.

O ministro atalhou:

▬ Vossa Majestade se esquece que fala a um alemão.

Napoleão sentiu o golpe, apanhou o chapéu e o enfiou na cabeça. Derrota simbólica enorme. Ao se despedir, Metternich lhe disse: “Majestade, sua situação está perdida. Pressentia-o, quando cheguei. Agora, levo comigo a convicção”.

O encontro de Dresden, pleno de frases e gestos simbólicos, repercutiu. Repercute até hoje. É visto como um dos marcos importantes da queda de Napoleão. A Europa tomou um rumo detestado pelo imperador da França. Um gesto simbólico, a recusa de apanhar um simples chapéu (no caso, indício de temor e traço de subserviência) até hoje é vista como resumo de uma reunião de mais de três horas. Gestos simbólicos têm efeito enorme, são lances da guerra cultural. Além da importância em si, são observados como atitudes prenunciativas.

Será derrota enorme para a Cristandade que diante das estátuas derrubadas (no frigir dos ovos o que está sendo atacado é a Cristandade), não haja resposta à altura com desagravos proporcionais e revide legais, mas altamente significativos.

Donald Trump está em campanha pela reeleição. Qual estátua os dirigentes da propaganda escolheram como a mais representativa para ser derrubada? À primeira vista, seria alguma de um “foundigng father”. Ou alguma célebre na Europa pelo valor artístico.

Nada disso, foi selecionada a do Cristo Redentor do Corcovado, braços abertos para o mundo, inaugurada em 1931, eco lídimo do movimento pela realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ato de enorme simbologia, visto pelos chefes da campanha presidencial republicana como de forte repercussão eleitoral. O fato é conhecido. Em propaganda divulgada por todos o país, encimada pelo Cristo do Corcovado, o texto dizia: “O Presidente deseja saber quem o apoiará contra a esquerda radical”. Está dado a entender, queiramos ou não, estamos diante de uma batalha universal.

Dia virá, e não está longe, em que se exigirá no Brasil a derrubada da estátua do Cristo Redentor do Corcovado. A exigência virá de grupos ideológicos, inflamados pelas mesmas doutrinas que hoje trabalham nos Estados Unidos pela destruição de suas raízes históricas e aparecimento de uma sociedade rasa e ateia, parecida com o mundo comunal imaginado por Marx como etapa final do comunismo.