Bofetada prenunciativa
Péricles
Capanema
A
bofetada humilha, avassala, abate; contudo, pode acender brios. Enfim, o efeito
depende em parte de quem a recebe. Nelson Rodrigues achava: “O pior da bofetada
é o som. Se fosse possível uma bofetada muda, não haveria ofensa, nem
humilhação, nada”. Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia esbofeteou o
Ocidente, desdenhou autoridades religiosas e políticas, ao destinar a igreja de
Santa Sofia, até então museu, ao culto muçulmano. Estralejou alto o sopapo, ecoou
humilhante o som ensurdecedor. A partir de 24 de julho, a antiga catedral
bizantina estará aberta ao culto muçulmano. Pelo jeito, foi estudada e
prenunciativa bofetada; virão outras, tudo o indica.
Declarou
o autocrata: “Hoje, a Turquia se livrou de uma vergonha. Santa Sofia vive, de
novo, uma de suas ressureições, como já sucedeu várias vezes no passado. A
ressureição de Santa Sofia prenuncia a libertação da mesquita Al-Aqsa” em
Jerusalém. Continuou: “Significa que o povo turco, os muçulmanos e toda a
humanidade têm novas coisas para dizer ao mundo”. Que novas coisas terá a
Turquia para dizer ao mundo? Pela voz dos símbolos, já está falando. No anúncio
televisionado, o presidente da Turquia citou um intelectual turco, Osman Yüksel
Serdengeçti que anunciou a vinda de um segundo conquistador para devolver Santa
Sofia ao Islã. “Este dia chegou”, proclamou Erdogan.
Como se
sabe, a basílica de Santa Sofia foi construída no século VI pelos bizantinos
(imperador Justiniano), depois foi catedral cismática. Com a conquista de
Constantinopla em 1453 pelo sultão Maomé II, o Conquistador, o primeiro
conquistador, foi feita mesquita; a partir de 1934, museu.
Borbotaram
de todos os quadrantes respostas à insolência do presidente Erdogan, ainda que até
agora fracas; de outro modo, palavras desacompanhadas de medidas concretas.
Três reações significativas resumem um lado da questão. Na véspera do desplante,
Mike Pompeo, secretário de Estado dos Estados Unidos, tentou evitar a desfeita,
solicitando ao líder turco “continuar a conservar Santa Sofia como museu,
exemplo de seu compromisso de respeitar as tradições culturais e a rica
história que moldaram a república turca”. Jean-Yves Le Drian, ministro do
Exterior da França, em comunicado, declarou: “A França deplora a decisão do
Conselho de Estado turco de modificar o estatuto de museu de Santa Sofia e o
decreto do presidente Erdogan a pondo sob a autoridade da direção turca dos
negócios religiosos. Tais decisões colocam em causa um dos mais simbólicos atos
da Turquia moderna e laica. A integridade dessa joia religiosa, arquitetural e
histórica, símbolo da liberdade de religião, de tolerância e de diversidade,
inscrita no patrimônio mundial da UNESCO, deve ser preservada”. Ameaçadas estão
a modernidade, laicidade, tolerância, liberdade de religião e diversidade, é a
censura do governo francês. Finalmente, o presidente Vladimir Putin expôs a seu
colega turco o desagrado causado na Rússia inteira pela decisão do governo
turno. Comunicado do Kremlin afirmou que o presidente russo “chamou a atenção
de Recep Tayyip Erdogan para a significativa desaprovação causada na Rússia
pela decisão de mudar a situação de Santa Sofia”.
Ou seja,
entendia-se como adesão estável à modernidade o ato do presidente Mustafá Kemal
Ataturk, fundador da república turca, que em 24 de novembro de 1934, como foi
dito, transformou em museu a até então mesquita. A Turquia deixava para trás a
condição de estado muçulmano confessional, com legislação enraizada no Corão e
adotava princípios constitutivos vigentes na maioria dos países ocidentais. Caminhava
em direção à Europa, à qual já pertence, geograficamente, pela metade. Com
efeito, desde décadas ela faz parte da OTAN tem lugar em organismos internacionais
e busca fazer parte da União Europeia. Com a bofetada, ela se distanciou da
Europa e dos Estados Unidos, aproximando-se de Estados muçulmanos. Potência
regional, representa muito na junção da Ásia e da Europa o país de 80 milhões
de habitantes (renda per capita em torno do dobro da brasileira), por volta de
800 mil quilômetros quadrados.
Fica a
questão da Rússia, inimigo histórico, justificativa política importante para a
adesão à OTAN e ao Ocidente. Sintomaticamente, no meio da condenação geral,
inclusive dos cismáticos russos, Putin teve gesto quase formal. Ele também
utiliza a fórmula nacionalismo, patriotismo, religião para se manter no poder. Autoritarismo,
nacionalismo, religião, defesa de uma vaga identidade pátria são vias que
favorecem uma aliança futura, presumivelmente prejudicial aos Estados Unidos e
à Europa.
Falava
acima, um lado da questão, era o político. O outro é o religioso. Destaco em
particular um ponto. O enorme edifício do ecumenismo religioso entre Islã e
Cristianismo, construído pacientemente há décadas, mambembe e artificial, é
verdade, mas enfim levantado, recebeu trinca de alto a baixo. A afirmação
desafiadora das crenças do Islã, a proclamação de que é apenas o primeiro passo
em novas conquistas, bem como a inteira desconsideração dos sentimentos dos
católicos e dos cismáticos, deixam no ar um cheiro de jihad, uma atmosfera de
enfrentamento.
O Papa
Francisco se declarou “aflitíssimo”. Bartolomeu, patriarca ecumênico de
Constantinopla, já havia tomado posição, tendo advertido, Santa Sofia era “um
símbolo do encontro, solidariedade, compreensão mútua entre o Cristianismo e o
Islã”. Foi adiante “transformá-la em mesquita poderia lançar milhões de
cristãos no mundo inteiro contra o Islã”. De novo aparece o clima de enfrentamento,
pois estava sendo destruída a atmosfera de encontro, solidariedade e
compreensão. A igreja cismática russa lamentou a decisão e afirmou que ela
trará “consequências sérias para toda a civilização”. Seu porta-voz observou:
“Constatamos que a inquietação de milhões de cristãos não foi levada em
consideração”.
Resposta
de Erdogan, trata-se de exercício de direitos soberanos. Não amolem, em
linguagem informal. “Os que não se preocupam com a islamofobia em seus próprios
países, atacam a vontade da Turquia de exercitar seus direitos soberanos.
Tomamos esta decisão sem levar em conta o que os outros dizem, mas considerando
nossos direitos, como fizemos na Síria, Líbia e em outros lugares”.
Pelo que
representa e prenuncia, a bofetada aprofunda trincas na aliança ocidental, é
afirmação desafiante de poder muçulmano, deixa em frangalhos as alegações em
que se esteia o diálogo ecumenista entre cristãos e muçulmanos. Virão outros
sopapos. Se recebidos com resignação derrotista, representarão recuos. Podem,
contudo, acender brios. Aí a história seria outra.
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