sábado, 30 de março de 2024

Incoerências descaradas

 

Incoerências descaradas

 

Péricles Capanema

 

Lia hoje, 29 de março, aqui e ali, manifestações sulfurosas contra o movimento civil e militar de 31 de março de 1964. Em resumo, proibidas celebrações, nada nos quartéis, nada nas Forças. O Poder Público proibirá qualquer manifestação, por menor que seja, do que ocorreu em 31 de março de 1964 ▬ e depois, em decorrência da mudança institucional. Motivo repetido: foi golpe militar contra as instituições, tivemos ditadura, houve crime contra a democracia. Dentro dos clubes militares de oficiais da reserva, o problema é outro, não são instituições oficiais. Minha primeira e quase reflexiva reação: quanta incoerência enfatuada. Vou tratar dela. Poderia ter pensado, quanta incoerência enfatuada misturada à hipocrisia deslavada. Com efeito, muitos dos que berram contra a ditadura militar, ao mesmo tempo se dobram em elogios pela ditadura cubana, pela ditadura venezuelana ou nicaraguense, são sabujos de Putin. Mas de momento vou ficar na incoerência. Ainda tratarei de outros aspectos e temas, será um artigo um tanto “pot-pourri”. Saltou-me logo à lembrança fato pequeno e pitoresco, ocorrido décadas atrás em minha família. Ilustra o assunto, por ele começo.

 

Coerência infantil. Tenho um primo, convívio fácil, presença agradável, hoje médico competente em Belo Horizonte, que lá pelos anos 70 foi matriculado num jardim de infância. Talvez agora o nome seja outro, pré-escola. O que interessa no caso é que o garoto ainda não tinha sete anos. Certo dia a professora avisou a ele e a seus coleguinhas de turma que não mais deveriam correr pelos corredores, era impróprio, a partir do aviso só queria passos normais neles. Uma pergunta borbulhou imediata do primo, claro, não com as palavras que aqui vão: “Professora (talvez tenha dito tia), estou surpreso. A senhora está proibindo correr nos corredores? Corredores, a palavra indica, não foram feitos para neles corrermos? Corredor, acho, existe para correr. Por que não posso correr num corredor, feito para isto?” Não conheço a resposta da mestra.  Sei, houve espanto e até encanto dela. Comentou com a mãe do menino, maravilhara-se com a vivacidade da inteligência de um pimpolho de 5, 6 anos. Viro a página. O que reivindicarei aqui é vivacidade parecida, um jorro rápido da inteligência estimulada pela lógica, recusando incoerências. No Brasil de hoje, grande conquista.

 

Imposições inafastáveis da inteligência adulta. Admitindo ser o grande valor, digamos supremo, para um país a manutenção da ordem constitucional, o que “cum grano salis” admito, (abaixo direi algo a respeito, embebido em ensino jurídico de milênios), é imprescindível eliminar imediatamente o feriado de 15 de novembro, dia da Proclamação da República no Brasil. Deseduca. Ninguém nega, foi golpe militar, destruiu a ordem constitucional vigente, disparou uma inflação maluca desconhecida no Império, impôs ditadura militar sob a férula de Floriano Peixoto. Antes, tínhamos governo respeitado pelas grandes nações, o Brasil prosperava debaixo de ordem constitucional segura, Lei Magna bem enraizada ▬ era de 1824, portanto, 65 anos de vigência; a Cidadã, de 1988, vai completar 36. Curto, direitos respeitados, instituições funcionando, liberdade de imprensa, eleições regulares, governos legítimos. Tudo isto foi pelos ares com uma quartelada, um golpe; “o povo assistiu àquilo bestificado”, nas palavras conhecidas de Aristides Lobo. Por coerência, é preciso então cancelar o feriado nacional de 15 de novembro e eliminar quaisquer homenagens a Deodoro e Floriano. Mais uma medida urgente, também por imposição da coerência. Quem venceu as eleições presidenciais em 1º de março de 1930 foi Júlio Prestes. Em outubro de 1930 uma Junta Militar depôs Washington Luís, o presidente ainda em exercício, e entregou o poder a Getúlio Vargas, o candidato derrotado. Golpe também aqui, lesão do estado democrático de direito, ordem constitucional dilacerada, democracia em frangalhos, ditadura. Depois Getúlio deu outro golpe com apoio militar, em novembro de 1937. Por congruência, será necessário cancelar todas as homenagens oficiais a Getúlio Vargas. Incongruências na vida pública descivilizam. Enfim, atendendo a necessidade claramente civilizatória, a coerência na vida pública, é urgente a aplicação a Deodoro, Floriano e Vargas do mesmo tratamento institucional, assim como o midiático (eliminação progressiva de homenagens e propagação contínua do horror aos fatos censurados) que vem sendo aplicado aos presidentes militares recentes. E os que deblateram contra o 31 de março de 1964, por coerência, berrem também contra 15 de novembro de 1889 e a revolução de 1930 (para começo de conversa a ditadura getulista fechou o Congresso, anulou a Constituição, extinguiu os partidos). Repito, são exigências inafastáveis da conduta coerente, obediente ao impulso incoercível da lógica. Posto o atual quadro histórico, não agir assim é favorecer privilégios vazios, bem como deformações históricas prejudiciais às gerações futuras. Reitero, pereniza fatores de retrocesso e alimenta o atraso.

 

Duas estacas fundamentais, quase totalmente relegadas ao olvido. Falei acima de ensinamentos de milênios. Vamos a eles. Relembro aqui duas máximas do Direito, a bem dizer incontestes, sempre indispensáveis quando se consideram mudanças de governo fora de procedimentos previstos. A primeira é “salus populi suprema lex esto”. Que o bem comum seja a lei suprema, máxima do Direito Romano. As leis particulares cedem ao império do bem comum, lei suprema. A segunda máxima jurídica é o estado de necessidade, amplamente utilizada no Direito há séculos, se não milênio, v. g., nas leis e jurisprudência nacionais. Apenas um exemplo, o artigo 24 de nosso Código Penal: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. Um fato de si criminoso, passa a não ser criminoso, quando acontece sob o estado de necessidade. São numerosos os exemplos, poderia citar o furto famélico; outro, sacrificar um cão de outrem, quando o animal está na iminência de lesar gravemente uma idosa na rua. Temos os chamados excludentes de ilicitude. O estado de necessidade não se aplica apenas a casos individuais. Vale para grupos sociais, instituições. Os princípios supra aludidos legitimaram, é entendimento corrente, o rompimento do general Charles de Gaulle com o governo constituído de Vichy (em alguma medida, títere da Alemanha nazista vitoriosa), sua imediata fuga para Londres, onde formou um governo provisório. Reitero, a doutrina a respeito é ampla, antiga, largamente aceita, tem por base as duas máximas acima mencionadas. Colocá-la em pauta enriqueceria muito o debate público, tirando-o do “bas-fond” dos xingatórios e das ameaças. A mais, é tarefa facilmente ao alcance de constitucionalistas. Seria antídoto contra a calcificação das posições, realidade social destacada com clareza por Felipe Nunes, hoje generalizada no Brasil.

 

Advertência oportuna. Divulguei dias atrás, 23 de março, o artigo “Esclarecendo apagões ▬ em especial os não provocados pela ENEL”. Mostrava a falta de rumo, melhor, o rumo demolidor, dos programas de privatização no Brasil que, em larga medida, são transferências de estatais brasileiras para estatais estrangeiras, em especial chinesas. Uma destas estatais é a ENEL, que padece das mazelas de praticamente todas as estatais, de momento no centro de ácida polêmica por causa dos apagões sem fim que infelicitam a capital paulista. Hoje, 29 de março, no “Estadão”, Elena Landau, traz lúcido artigo “No escuro” em que aponta o perigo de reestatização, programa evidente do governo petista, fortalecido pelo mau serviço prestado pela ENEL aos consumidores. Denúncia meritória e oportuna, que poderia a meu ver ser mais ampla e contundente. Faltou-lhe ponto crucial: a ENEL é estatal italiana, dirigida pelo governo da Itália.

 

sábado, 23 de março de 2024

Esclarecendo apagões - em especial os não provocados pela ENEL

 

 

Esclarecendo apagões ▬ em especial os não provocados pela ENEL

 

Péricles Capanema

 

Apagões mentais. Temos apagões de várias ordens. Não lidamos apenas com os apagões devastadores na cidade de São Paulo. Lidamos ainda com apagões mentais, em boa parte causa próxima ou distante dos apagões de energia elétrica. Pretendo no presente texto jogar luz sobre um apagão mental. Há meses, se não há anos, a capital paulista sofre devastadora e contínua série de apagões e toda culpa dos enormes prejuízos despenca sobre a concessionária ENEL ▬ ameaças de processos, de CPIs, de cassar a concessão, sei lá mais o que. É justo? É equitativo? Em especial, o tiroteio atinge a todos os alvos? Não vulnera um deles pelo menos, de dimensões amazônicas, este a bem dizer nunca é citado. Vou citá-lo hoje, para completar o quadro. Não será a primeira vez. Para ser vero, sem efeitos perceptíveis, já fiz o mesmo numerosas vezes. Lá vou eu, de certo modo, “vox clamantibus in deserto”.

 

Privatizações para inglês ver. Começo com algumas recordações necessárias e reitero o que venho martelando há anos: o processo de privatização brasileiro (e de desestatização) em larga medida é de mentirinha, para inglês ver. O caso da cidade de São Paulo é apenas um exemplo, dentro de um mar de situações semelhantes Brasil afora. Boa parte das empresas “privatizadas” no Brasil virou estatal estrangeira, comandada por governos estrangeiros, com presença marcante da China comunista. Em 2019, vale lembrar, o capital chinês nos segmentos de geração, transmissão e distribuição elétricas representava, respectivamente, 10%, 12% e 12% do total. A tendência é de participação crescente, o que levanta problemas evidentes de independência e soberania. Ninguém fala nisso. E nem reflete a respeito, pelo que parece. Há apagão mental aqui, que irá gerar escuridão em setores decisivos da economia. Mais ainda, do futuro pátrio. De passagem, privatização e desestatização no Brasil em larga medida pertencem ao vocabulário da novilíngua. Significam muitas vezes exatamente o contrário.

 

O caso da ENEL. A empresa concessionária ENEL tem capital predominante italiano. Mas quem manda nela não são proprietários privados. De fato, com 23,6% de seu capital, o governo italiano controla a ENEL. Mais claro, quem manda na ENEL é o governo italiano. A ENEL, em linguagem corrente, é uma estatal ▬ em linguagem mais precisa, sociedade ou empresa de economia mista, como o Banco do Brasil ou a Petrobrás. No fim de 2023, acionistas minoritários da ENEL tentaram evitar que o governo indicasse o presidente do Conselho de Administração e ainda o presidente da empresa. Fracassaram. Sob protesto de tais acionistas, o governo colocou na presidência do Conselho de Administração o sr. Paolo Scaroni, nascido em 1946, que já tinha sido presidente da empresa entre 2002 e 2014. O mesmo cidadão passou ainda pela presidência da ENI, gigante petrolífera em que o governo detém por volta de 30% da capital e indica seus dirigentes. Situação lá parecida com a nossa no Brasil, em que o governo controla o Conselho de Administração e a Diretoria Executiva da Petrobrás e do Banco do Brasil. Já se vê, entre as especialidades do sr. Scaroni, ativo ainda em idade provecta, está a de se refestelar como alto executivo de estatais. O mercado não gostou, achou que prejudicaria os interesses da empresa. Uma das censuras emanadas do mercado italiano, a proximidade do sr. Paolo Scaroni com a Rússia ▬ cercania com Putin, no momento em que o autocrata russo agride não apenas a Ucrânia, mas à vera toda a Europa. Pior para o mercado, venceu o governo, (“quia nominor leo”), encarapitou-se Paolo, seguro, tranquilo, na presidência do Conselho. Com isso, são prejudicados os acionistas, baixa a qualidade dos serviços, sofrem os consumidores. Convém lembrar, a ENEL, estatal italiana, tem numerosas concessões Brasil afora. É côngruo, a bagunça lá repercute aqui, a empresa tem sido alvo de queixas contínuas dos clientes. Só no Estado de São Paulo atende a 7,8 milhões de consumidores. A ENEL entrou no Brasil no bojo do amplo programa de desestatização e de privatização, cuja meta era aumentar a eficiência, baixar custos e generalizar atendimento. Curto, visava enterrar o péssimo e caro das empresas estatais. Leitor, você já leu em algum lugar que a ENEL é uma estatal? Com os mesmos defeitos comuns às estatais, compadrio, ineficiência, inchamento de funcionários, favorecimentos, ingerências políticas. Para a ENEL, que atende o consumidor paulista, o determinante, nunca foi e nem poderia ser as conveniências deste consumidor. O determinante é o interesse do governo italiano. Um slogan atual para a cidade de São Paulo: ▬ Privatização já.

 

O disparatado programa brasileiro de desestatização e privatização vivo como nunca. A imprensa continua divulgando que existe um amplo programa de desestatização e privatização, pelo menos nos Estados não governados pelo PT, pois esta agrupação tem enraizado ranço estatista. Está plantada no atraso, promove o retrocesso. O ranço, contudo, aparece, onde menos se esperaria, vem de atavismo duro de eliminar. Em São Paulo, governado por administração que afirma favorecer a livre iniciativa, muito recentemente foi leiloada a construção de nova linha férrea São Paulo-Campinas, cem quilômetros de trajeto, que irá atender São Paulo, Jundiaí e Campinas, entre outras cidades. Há ainda outras atividades constantes do pacote entregue ao vencedor. Quem levou o leilão? Uma estatal chinesa (CCCR), ou seja, uma empresa dirigida pelo governo chinês (de outro modo, pelo Partido Comunista Chinês), associada a um grupo privado nacional. Não se sabe bem em que proporção um ou outro grupo dirigirão as operações, o que desperta preocupações. Mas, é claro, jamais prejudicarão interesses do Partido Comunista Chinês, que terá a última palavra sobre a indicação de cada alto executivo chinês, que dirigirá a construção e por trinta anos a concessão. Daqui a pouco, virá a privatização da SABESP, negócio gigantesco. Teremos privatização real? Seria ótimo, os consumidores agradecerão. Ou teremos privatização à brasileira, de mentirinha, negócio para inglês ver, de fato, entrega da estatal paulista a uma estatal de país estrangeiro, usualmente da China comunista. Seria péssimo, os consumidores sofrerão.

 

O caso da Refinaria Landulpho Alves (RLAM ou Mataripe). Outro exemplo. E recente. Em novembro de 2021, a Petrobrás vendeu a Refinaria Landulpho Alves, localizada na Bahia. A justificativa em tais casos sempre foi a mesma: é necessário privatizar, aumentaria a concorrência, o mercado teria mais fornecedores, subiria a produtividade e a eficiência; com isso, o consumidor seria mais bem atendido, teria oferta maior com preços melhores. Nada mais verdadeiro, a estatização sempre gerou pobreza, a livre iniciativa é fator de prosperidade. Contudo, três anos depois, março de 2024, a refinaria vendia gasolina com preço 6,4% mais caro que o oferecido pela Petrobrás. Pouco antes, em 21 de fevereiro de 2024, a revista Oeste informava que “a Petrobras quer retomar o controle da refinaria de Mataripe (BA), privatizada em 2021 durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro”. Ou seja, há negociações para que Mataripe volte a pertencer à Petrobrás. Mas vamos a este caso [no Direito Penal se diria, à verdade real, a única que deve determinar o juízo], apenas mais um exemplo da “privatização” há décadas vigente em Pindorama que pune a atual geração e deixará pasma as gerações futuras. Quem comprou a Landulpho Alves? A RLAM foi comprada pelo fundo Mubadala (fundo soberano, isto é, propriedade 100% estatal) de Abu Dhabi, um dos emirados que fazem parte dos Emirados Árabes Unidos. Na nossa política de “privatização”, a Petrobrás, empresa de economia mista, com cerca de 37% de capital estatal, 63% privado, (a empresa tem controle estatal, pois o Estado detém a maioria das ações ordinárias), vendeu a segunda maior refinaria do Brasil para uma empresa 100% estatal. Antes, Mataripe era, digamos, 63% privada. Depois da “privatização”, passou a ser 100% estatal. Resultado típico do programa de privatização brasileiro. Pior, todo mundo, parece, acha e proclama que isto é programa de privatização. Privatização à brasileira, claro. Faça um google, um teste. Mais de 95% do que encontrar sobre o caso, por baixo, será sobre a privatização de Mataripe (a refinaria Randulpho Alves). Convém lembrar, quem passou a mandar na Mataripe foi Abu Dhabi, parte dos Emirados Árabes Unidos, filiados à OPEP, cartel cuja função essencial é coordenar a produção do óleo cru para que o preço do barril de petróleo não caia. De outro modo, o governo dos Emirados Árabes Unidos não tem o menor interesse em que a gasolina no Brasil seja barata. Pode-se dizer sem problemas o contrário: via de regra, quanto mais cara nossa gasolina estiver, melhor para a OPEP, tal situação sustentará o preço do óleo cru no mercado mundial. De outro modo, é fantasia da mais rasa imaginar que a Mataripe nas mãos do governo do Abu Dhabi (é o fato, pertence ao Abu Dhabi) procuraria baixar o preço da gasolina (e outros produtos) por ela fabricados.

 

Fim dos apagões mentais. O público parece acreditar, temos entre nós efetivo programa de privatização. A imprensa, na grossa maioria dos casos, quando informa, falseia o quadro ou desinforma toscamente. Em particular, falta\ um elo indispensável, que ligue a presente situação acima apenas esboçada com problemas gravíssimos, de momento mais potenciais que reais, relacionados à soberania e à independência nacionais. Nas fímbrias do horizonte, por etapas compassadas, debuxa-se situação de protetorado efetivo, ainda que disfarçado ou inconfessado. Em resumo, queremos já o fim dos apagões, em especial na capital paulista. Mas com eles, talvez mais fundamentais, também a extinção dos apagões mentais.