terça-feira, 21 de abril de 2020

Consagrações atuais


Consagrações atuais

Péricles Capanema

Em 15 de abril último o padre José Alves de Amorim, reitor do Santuário de Nossa Senhora da Lapa consagrou  os países de língua portuguesa e mais de 60 santuários no mundo inteiro a Nossa Senhora da Lapa no santuário-mãe de Nossa Senhora da Lapa na diocese lusitana de Lamego, o mais antigo santuário dedicado a Nossa Senhora sob tal invocação.

Declarou a respeito o padre Amorim em 14 de abril: “Porque este santuário divulgou-se precisamente por esses povos e chegou a ter presença no Brasil, em África, na Índia e a devoção à Senhora da Lapa permanece ainda hoje em mais de 60 lugares, de uma maneira viva. Por isso amanhã todos esses povos e santuários derivados deste são convidados para se associarem a esta consagração. Convidamos toda a gente para se associar a esta oração, para que Nossa Senhora da Lapa nos proteja”.

Lê-se no alvissareiro comunicado do Santuário: “Atendendo ao momento de dor e sofrimento que a pandemia, provocada pela Covid-19, está a provocar em todo o mundo, o Santuário de Nossa Senhora da Lapa tomou a iniciativa de invocar a proteção maternal da Mãe de Deus, de forma muito especial para todos os povos de língua portuguesa e, mais concretamente, para as comunidades onde o culto secular à Senhora da Lapa continua presente. Na impossibilidade de nos reunirmos fisicamente no Santuário-mãe, na diocese de Lamego, vimos por este meio convidar os devotos da Senhora da Lapa, espalhados pelos quatro cantos do mundo, a associarem-se a nós e a acompanharem-nos espiritualmente, através das redes sociais e outros meios de comunicação”.

O convite. São solicitados à consagração os devotos de Nossa Senhora da Lapa e os povos de língua portuguesa. Eu, aqui no Brasil, fui convidado (o leitor também), fiquei sabendo por amigo e pela imprensa, aceitei agradecido o apelo. Convido a quem me leia que o aceite ▬ a fórmula da consagração está na rede, é fácil encontrá-la. São graças de Nossa Senhora da Lapa. E o padre reitor do santuário mais antigo de Nossa Senhora da Lapa tem títulos diante de Nossa Senhora para fazer tal súplica.

A prática piedosa das consagrações, em especial ao Sagrado Coração de Jesus, ganhou enorme presença na Igreja a partir do apostolado da santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690), freira reclusa no convento das visitandinas de Paray-le-Monial. Ali teve, entre seus confessores, a são Cláudio La Colombière (1641-1682), jesuíta, também considerado dos grandes difusores da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Consagração, reparação, esperança de triunfo. Três características marcaram especialmente tal prática na Igreja: consagração, reparação, esperança de triunfo. A consagração não pode ser ato meramente formal; supõe propósito sério de reforma de vida, é renovação das promessas do batismo.

Antes das aparições de Paray-le-Monial a devoção ao Sagrado Coração de Jesus não era muito difundida, não exista ainda o conjunto das práticas ascéticas que hoje a acompanham e não era inequívoco seu caráter reparador. Reparação pelos pecados próprios, reparação pelos pecados familiares, reparação pelos pecados sociais. Os últimos séculos foram de descristianização e o abandono dos preceitos de Cristo tornam congruente, até mesmo inelutável, a atitude de reparação. Aceitar o peso da responsabilidade prepara a leveza do perdão.

A última característica é a esperança de triunfo. Triunfo sobre os vícios pessoais, mas também sobre a indiferença e os pecados sociais, trazendo à terra o Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo, a ordem temporal cristã. Nosso Senhor é rei dos corações. rei da sociedade e do Estado.

Texto expressivo. Estão nele presentes as mencionadas três características na fórmula de consagração lida pelo reitor do Santuário de Nossa Senhora da Lapa, o que a coloca em longa esteira histórica. Reata com o passado piedoso, hoje tão atual; o texto não está contaminado pela atmosfera intoxicada de relativismo e laicismo, muito disseminada nos anos pós-conciliares que tendiam a ver tais movimentos de piedade como anacrônicos.

Respigo alguns trechos da consagração do último 15 de abril. Ela é pródiga em afirmações de contrição, humildade e reparação, faz bem repisá-las: “a prece ardente que hoje contritos vos dirigimos”; “embora réus da excelsa justiça de Deus e quão merecidos são os castigos que sobre o mundo ingrato e impenitente se possam abater”; “nos deis um coração e vida penitentes”. E que o Coração Imaculado de Maria se apiede de nossos corações e nos inspire a penitência que almejamos.

O texto também é copioso nas manifestações de consagração: “consagrar os nossos povos e Vos pedir que deles afasteis a atual pandemia”; “ó dulcíssimo Jesus, Vos pedimos por intercessão da Senhora da Lapa, a Quem hoje nos consagramos”.

Finalmente, rico de passagens denotando a esperança do triunfo e afirmação do Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo: “que sejais a Rainha daqueles que vivem obscurecidos pelos erros”; “obtenhais para todos as nações tranquilidade e ordem, em tudo submetidas à beleza da Fé”.

Trouxe excertos, a consagração é muito maior. E começa com frase conhecida de grande densidade teológica: “Se foi por Vós que Jesus Cristo, Senhor Nosso, veio ao mundo, é também por Vós que nele deve reinar”. A consagração se coloca especialmente oportuna, lembra o Santuário e repito “atendendo ao momento de dor e sofrimento que a pandemia, provocada pela covid-19, está a provocar em todo o mundo”.

Colômbia. Este mesmo momento foi invocado por iniciativa semelhante, rumo idêntico, encabeçada pela Sociedad Colombiana Tradición e Acción, que pede ao presidente da República e à Conferência Episcopal que consagrem a Colômbia ao Sagrado Coração de Jesus e à Nossa Senhora de Chiquinquirá, padroeira do País. O texto do importante documento, assinado por seu diretor, Eugenio Trujillo Villegas, suplica e lembra: “Queremos lhe pedir com veemência, que diante da incerteza pela qual passamos, junto com as autoridades da Igreja Católica, renove a consagração ao Sagrado Coração de Jesus, que se fez ininterruptamente de 1902 a 1992. E também que consagre o País a Nossa Senhora de Chiquinquirá, padroeira da Colômbia”.

Faróis. Duas iniciativas atuais e exemplares. Empreendimentos assim, acompanhados da contrição congruente, infelizmente muito raras, atrairiam a misericórdia divina nos presentes dias duros trilhados por todos nós. Sua ausência, é incoercível, a lógica nos arrasta até lá, pressagia maiores sofrimentos e tragédias. A elas nossa adesão e aplauso. São faróis, iluminam e indicam rumos.


segunda-feira, 20 de abril de 2020

Plenitude


Plenitude

Péricles Capanema

Não vai falar da covid-19? Tenha paciência, tratar de plenitude? Que atualidade tem isso? Calma, vou escrever sobre o covid-19. E por que escolhi logo plenitude? Sei, o assunto não dá manchete, parece do mundo da lua, desinteressante, frio. Incende para mim, precisa queimar; quanto mais, melhor.

Em linhas muito gerais, vou discorrer sobre uma plenitude, a humana. Com temperança, buscar a própria plenitude, em qualquer âmbito (moral, cultural, financeiro), é direito humano. Devagar. Plenitude tem (apenas) a atualidade do perene; no caso, perenidade de enorme relevância. Semanas atrás, em escrito sobre objeto parecido, observei: “Eles são perenes. Com efeito, em muitos sentidos o que é verdadeiramente atual deixa ver sempre a nota do perene ▬ eco do imorredouro no presente. O resto é só o momentâneo, o passageiro, o fugaz, o efêmero, o fugidio, sei lá o que mais. Realidades breves evanescentes, minguando rumo ao nada.”

Estou convencido, é imprescindível manter o assunto plenitude em lugar alto em nosso panorama mental. Jamais retirá-lo daí ▬ providência simples, irriga todo o espírito. Se permanecer no horizonte de grande número de pessoas, vai estimular avanço civilizatório, será vacina contra retrocessos e atrasos que, em última análise, fortalecem a opção preferencial pela atrofia, parte integrante da política, já de séculos, mesmo que inconfessada, das correntes revolucionárias. Exemplos paroxísticos e próximos são Cuba e Venezuela. No século passado, foram macabros e didáticos exemplos (melhorando, advertências), celebrados pelos progressistas mundo afora, a Revolução Cultural Chinesa e o Camboja do Khmer Rouge ▬ pelo menos, até a revelação, ainda hoje parcial, da realidade dantesca. Muita gente no Brasil, de alto a baixo da escala social, movida pela mitomania igualitária, fez a opção preferencial pela atrofia, não vai mudar nunca. Os partidos de esquerda e o “progressismo católico” estão abarrotados delas. E não só lá.

Adiante. Otto Lara Resende comentava, Nelson Rodrigues era uma “flor de obsessão”. Com isso queria significar, o amigo repetia sempre alguns pontos. Batia, rebatia, martelava, reiterava, insistia, reafirmava, recordava, repisava as mesmas trilhas. Atalhos perenes. O dramaturgo recifense concedia sereno, é isso mesmo. “Sou um obsessivo e houve alguém que me chamou de ‘flor de obsessão’. Exato, exato, e graças a Deus. O que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões.” Morreu quarenta anos atrás, até hoje seus textos são dos mais lidos no Brasil. Ninguém se lembra, ou quase tanto, quais eram seus críticos. Depois de frigir os ovos, tem coisa mais atual que a perenidade?

Entre companhia vasta, ou seja, pessoas que viam utilidade na repetição, Nelson Rodrigues teve uma de especial relevo, Napoleão. “A repetição é a mais forte figura da retórica”, garantia. Para que serve a retórica? Persuadir. E o melhor instrumento para convencer seria a repetição, opinião de alguém com forte propensão de convencer pelo fuzil e chicote.

Acho também, pelo menos na confusão da atual quadra histórica, é indispensável repetir alguns assuntos (plenitude, um deles), mesmo com o recurso disfarçado pelo emprego de meios variados. Martelar até que os argumentos entrem e se acomodem na cachola. Pode parecer obsessivo; paciência, precisa. Um dia, quem sabe o tema da plenitude humana exploda nas manchetes, é anelo meu, seja tratado com o valor que acho normal lhe seja atribuído; relevância dispensada por todos, claro, mas em especial pelos que decidem os rumos da nação.

Verdade, aspiro que seja preocupação central dos que decidem os rumos da nação. Não estou aqui me referindo, todavia, sobretudo a quem tenha destaque no Executivo, Legislativo, Judiciário, empresariado, meios de divulgação, academia. Longe disso. Foco realidade diferente. Refiro-me em particular a gente espalhada em todos os meios sociais que, entre outros atributos, tenha amplitude de vistas, bom caráter, dotes de observação, pensamento próprio, esteja interessada no bem comum, saiba valorizar doutrina e movimentos de alma no público. Coloca-se, pela força dos fatos, à frente do povo, tem influência decisiva nos seus destinos.

Talentos, se quisermos, qualidades naturais, desde que não permaneçam latifúndio improdutivo, são o mais importante ativo de um povo, mais que qualquer outro. Em contas finais decidem seu bem-estar e presença na História. Florescê-los é o decisivo. Grandes benfeitores, quem os estimulam, das sementes aos frutos; criminosos, quem os atrofia, impedindo que das sementes surjam árvores, plenitude daquelas.

Nas pessoas, nas famílias, nos grupos sociais, latejam talentos já plenamente desabrochados, outros pelo meio do caminho, outros ainda latentes, mananciais para aperfeiçoamentos futuros. Levá-los à perfeição, mesmo que relativa, cabe primeiramente às famílias, à escola, a instituições próprias, aos mais variados ambientes sociais. De maneira suplementar, ao Estado. Não é coisa de um dia. Acontece, qualidades em uma família levam duas, três gerações para se desenvolverem plenamente. Volto a Napoleão, “a educação de uma criança começa vinte anos antes de ela nascer, com o nascimento de sua mãe”. Infelizmente, em cada geração a imensa maioria das qualidades naturais não chega ao pleno florescimento, à plenitude, enfim. Mais ainda, não é raro, em cada geração, antigos reservatórios de conhecimentos, costumes, modos de fazer e de ver a vida de enorme valor acabam indo para o ralo, somem. E é preciso começar do chão outra vez.

Hoje, em frangalhos, a família perdeu muito de sua capacidade formativa. Mas, de si, é a estufa natural para o florescimento das sementes. A seguir, de forma suplementar, outros grupos sociais. Todos somos, uns para os outros, em ocasiões próprias, mestres, modelos, regentes.

Ponto escamoteado, mas central, convém ser realçado, pois é foco difusor de excelência, um dos reflexos da plenitude. Nas mais variadas elites de um povo, elites de artesãos, de escritores, de empresários, de políticos, de diplomatas, de professores, de cozinheiros e cozinheiras, sociais, de financistas, de seleiros, o tempo vai depositando valioso acervo de perfeições humanas, necessárias ao bem comum, que é crime desconhecer, subestimar, a elas ser indiferente; mais ainda, atacar. Pelo contrário, o dever é estimulá-las com proporção, pois favorecem o aperfeiçoamento social.

Preciso fechar. Reflitamos sobre plenitude; pessoal, familiar, social. O mundo pós-pandemia será muito melhor, se dermos ao tema o lugar merecido.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Cardeal birmanês ataca o Partido Comunista Chinês


Cardeal birmanês ataca o Partido Comunista Chinês

Péricles Capanema

O cardeal na linha de frente. O cardeal Charles Bo é arcebispo da arquidiocese de Yangon em Myanmar. É o primeiro cardeal birmanês, nasceu em 1948, foi bispo em 2003, cardeal em 2015, preside a Conferência da Federação dos Bispos Asiáticos.

Localização. A antiga Birmânia, hoje República da União de Myanmar, 678 mil km2, por volta de 55 milhões de habitantes, tem fronteiras com a China. Cerca de 700 mil de seus habitantes são católicos.

Declaração histórica contra o despótico PCC. O cardeal-arcebispo, cujo país tem fronteiras com a China (quase 10 milhões de km2, 1,5 bilhão de habitantes) divulgou em fins de março, a propósito da crise do coronavirus, corajosa e esclarecedora declaração contra o Partido Comunista Chinês. A declaração foi entregue à imprensa, repercutiu em particular na Europa, e encontra-se na íntegra no site da Arquidiocese. Logo no começo, afirma o Purpurado: “Vozes no mundo inteiro se levantam contra a atitude tomada pela China, em especial pelo despótico Partido Comunista Chinês, liderado pelo homem forte Xi Jinping”.

Estudos demolidores. Continua o arcebispo de Yangon: “O London Telegraph de 29 de março divulgou que o ministro da Saúde inglês acusou a China de esconder a escala verdadeira do coronavirus naquele país. James Kraska, reputado professor de Direito, escreveu na última edição do ‘War on Rocks’ A China é legalmente responsável pelo covid-19 e os pedidos de indenização estariam na casa dos trilhões (de dólares)”

Prossegue dom Charles Bo, citando estudos: “Um modelo epidemiológico feito na Universidade de Southampton concluiu que se a China tivesse agido responsavelmente, apenas uma, duas ou três semanas antes, o número de pessoas afetado pelo vírus teria sido menor em 66%, 86% e 95%, respectivamente. Sua atitude desencadeou um contágio universal, matando milhares.

O PCC é réu. Pondera o hierarca: “Quando estudamos os danos causado a vidas no mundo inteiro, precisamos buscar o responsável. Muitos governos estão sendo acusados de omissão, quando perceberam o problema do coronavirus em Wuhan. Mas existe um governo que tem a responsabilidade primeira, resultado do que fez e do que deixou de fazer, é o governo do Partido Comunista Chinês em Pequim. Vou ser claro ▬ o responsável é o Partido Comunista Chinês, não o povo da China. O povo chinês é a primeira vítima do vírus e há muito tempo tem sido a primeira vítima do seu regime repressivo”.

Mentiras disseminadas, verdades escondidas. O cardeal avança: “Quando o vírus apareceu, as autoridades chinesas censuraram as notícias. Em vez de proteger o público, e apoiar os médicos, o Partido Comunista Chinês silenciou os denunciantes. Pior ainda, os médicos que tentaram dar o alarme ▬ como o dr. Li Wenling no Hospital Central de Wuhan que advertiu colegas em 30 de dezembro ▬ foram silenciados. A polícia lhes ordenou que ‘parassem de espalhar rumores falsos’. A polícia mandou o dr. Li, oculista, ‘parar de divulgar comentários falsos’; foi obrigado a assinar uma confissão. Morreu, infeccionado pelo vírus. Desapareceram jornalistas jovens, que tentaram noticiar a pandemia. Li Zehua, Chen Qiushi, Fang Bin, parece, foram e continuam presos por informar a verdade”.

Perseguição religiosa crescente. Dom Charles Bo denuncia a perseguição crescente na China: “As mentiras e a propaganda colocaram em perigo milhões de vidas no mundo inteiro. A conduta do Partido Comunista Chinês evidencia sua natureza crescentemente repressiva. Nos últimos anos houve grave diminuição da liberdade de expressão na China. Advogados, blogueiros, dissidentes e ativistas foram perseguidos e desapareceram. Em particular, o regime desencadeou uma campanha contra a religião, da qual resultou a destruição de milhares de igrejas e cruzes e a prisão de pelo menos um milhão de muçulmanos em campos de concentração. Um tribunal independente de Londres, presidido por sir Geoffrey Nice, acusa o Partido Comunista Chinês de pela força coletar órgãos humanos de objetores de consciência”.

O PCC, ameaça para o mundo. O cardeal sobe o tom: “Durante sua conduta irresponsável e inumana da crise do coronavirus, o Partido Comunista Chinês provou que é uma ameaça para o mundo”.

Responsabilização lógica. E conclui: “Por causa de sua negligência criminosa e sua repressão, o regime chinês, dirigido pelo Partido Comunista Chinês e pelo poderoso Xi Jinping, é responsável pela disseminação da pandemia. Deve-nos compensação pela destruição que causou, pelo menos pagar os gastos dos países no combate ao covid-19. Com base em nossa humanidade comum, não devemos ter medo de responsabilizá-lo pelo que fez”.

Exemplo para ser imitado. O Purpurado desafiou perseguidores, evidenciou clareza, firmeza e coragem. É o que infelizmente falta a sem-número de dirigentes ocidentais, comodamente instalados a milhares de quilômetros de Pequim. Que sigam o exemplo do Purpurado birmanês, voz desassombrada ecoando de um país fraco e limítrofe com a China. Seu brado soa como o de guerreiro solitário resistindo investida de chusmas soldadescas. Que Deus o proteja.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Não ao derrotismo ▬ viva Sobieski!



Não ao derrotismo ▬ viva Sobieski!

Péricles Capanema

Alain Touraine, nascido em 1925, é dos mais influentes sociólogos do século 20 e 21. Homem de esquerda, adversário de ditaduras, desde muito é hierofante e pitonisa na intelectualidade ▬ e não apenas na esquerda. Continua hoje, em idade avançada. reputado em especial na academia.

Creio necessário explicar para alguns poucos o que aqui significa hierofante, palavra hoje pouco utilizada. Lembrei-me dela em meu último artigo (O mundo depois do coronavirus) quando comentei opiniões de Yuval Noah Harari sobre a crise do coronavirus.

Yuval Noah Harari e Alain Touraine são hierofantes e pitonisas da sociedade contemporânea. Dizia eu: “Hierofantes saíram totalmente de moda nos meios de divulgação. Até há pouco a palavra era empregada de forma analógica. Na origem, designa os sacerdotes de alta hierarquia que nas religiões de mistérios da Grécia antiga e do Egito instruíam iniciados. Pitonisa era sacerdotisa de Apolo, oráculo, possuía o dom de prever o futuro. [Yuval Noah Harari], intelectual público, digamos, junta em si as duas características, é hierofante e pitonisa de nossos dias, quem sabe o mais ouvido. Fala constantemente para políticos, empresários e jornalistas”.

Harari e Alain Touraine, ambos intelectuais públicos requisitados, em linhas gerais cumprem a mesma função para a intelligentsia e ainda para boa parte dos que dirigem o mundo em seus vários âmbitos ▬ econômico, político, artístico etc. Orientam passos. Suas palavras podem ter efeito benéfico, como serem demolidoras.

Alain Touraine falou em 30 de março a El País, o mais influente jornal espanhol, sobre a crise presente, desencadeada pela pandemia. À maneira de fria constatação, ponderou o sociólogo francês: “Vivemos dois bons séculos, a sociedade industrial, em um mundo dominado pelo Ocidente durante 500 anos. Acreditamos, foi o caso nos últimos cinquenta anos, que vivíamos em um mundo norte-americano. Agora talvez passemos a viver em um mundo chinês, mas não estou inteiramente certo. Os Estados Unidos estão afundando. A China está em situação contraditória que não pode durar eternamente: quer praticar o totalitarismo maoísta para gerir o sistema mundial capitalista. Estamos sem lugar em uma transição brutal que não foi preparada nem pensada”.

Assim, Alain Touraine acha, contas feitas, os dois últimos séculos sob o signo da Revolução Industrial foram bons para a humanidade. Não parece estar seguro sobre os dois séculos próximos que ele vê provavelmente como “um mundo chinês”, sucedâneo do “mundo norte-americano”, com os atores dominantes, está subentendido, não mais no Ocidente.

Fala um pouco mais sobre a tese geral que levantou “os Estados Unidos estão afundando”: “Nunca havia visto um presidente dos Estados Unidos tão estranho como Donald Trump, tão pouco presidencial, um personagem tão fora das normas e tão fora de seu papel. E não é por acaso. Os Estados Unidos abandonaram seu papel de líder mundial. Hoje já não existe nada. Na Europa, olhe os países mais poderosos, ninguém responde. Não existe ninguém na frente do proscênio”.

Parte da elite dirigente dos Estados Unidos admitia, graus diversos, uma expressão que pode soar pretensiosa, mas que, entendida com realismo e modéstia, tem raízes na realidade: “manifest destiny”, destino manifesto, missão evidente de exemplaridade e liderança.

As circunstâncias (os homens religiosos pensam na Providência) levaram os Estados Unidos à condição de líder e protetor natural do Ocidente. O presidente dos Estados Unidos, de alguma maneira, tinha papel semelhante à missão do imperador do Sacro Império Romano Alemão na Idade Média; pedra de cúpula, representava, mantinha e protegia uma ordem política e social, espaço de vida civilizada. E, em parte por isso, algo de enormemente grave, até mesmo sacral, envolvia sua figura, situação percebida pelos seus conacionais. Não mais; e, essencialmente, pelo abandono dos deveres inerentes à liderança mundial, julga Touraine.

De passagem, convém notar, tal papel histórico de líder mundial, que vem cabendo aos Estados Unidos, dirigentes internacionais tentaram conferir à Sociedade das Nações, após a 1ª Guerra Mundial, e à ONU, após a 2ª Guerra Mundial. Fracasso completo.

Volto ao centro. Estaríamos diante de uma abdicação, o abandono do papel de líder mundial, em parte foi provocada pela ênfase excessiva nos interesses nacionais. Abdicação que alcança a Europa, segundo Touraine: “Hoje não existem atores sociais, nem políticos, nem mundiais, nem nacionais, nem de classe. [Existem] pessoas e grupos sem ideias, sem direção, sem programa, sem estratégia, sem linguagem. É o silêncio.”

A abdicação é sobretudo moral; importa no caso em desviar o olhar de obrigações impostas pelo dever. Lembra Afonso XIII. O monarca renunciou ao trono da Espanha em 1931 com maioria eleitoral, enorme força política, apoio popular forte. Fugiu aos embates, foi embora do país, preferiu o exílio. O que Alain Touraine evoca de mais importante, os Estados Unidos e, em parte, a Europa estão repetindo a conduta de Afonso XIII.

De outro modo, estamos assistindo a apocalíptico desmoronamento. No silêncio, em ambiente de misteriosa abdicação, começaria a prevalecer “o mundo chinês”, a era em que, pelo menos de início, o maoísmo político ditaria o rumo dos acontecimentos mundiais.

Preocupam as palavras de Alain Touraine. Não são apenas as palavras, tem ainda o tom. “Le ton fait la chanson”. Preocupam muitíssimo, de fato; com variáveis, vem sendo o tom que, aqui e ali, adotam intelectuais públicos em destaque no mundo. Trazem no bojo fatalismo, inevitabilidade, suicídio, entreguismo.

De repente, já não mais se disfarça a tirania chinesa, antes prática comum nos meios de divulgação e nos ambientes sociais decisivos. Afirma-se candidamente, como alguém que constatasse a presença de um gato no quintal, que a China avança para o centro do palco. Ninguém mais nega o óbvio ululante do crescente domínio chinês, disfarçado até há bem pouco.

Chegou a hora de proclamar outro óbvio ululante. O “mundo chinês” (a era da China) não precisa vir, é francamente evitável, não deve chegar ▬ seria a vitória do ateísmo, do coletivismo, da tirania. Retrocesso e atraso dificilmente imagináveis. Os Estados Unidos possuem com pletora todas as condições para continuar, décadas afora, a ser a nação líder do Ocidente. Para isso, a batalha dos espíritos vai se dar e precisa ser vencida sobretudo na opinião pública norte-americana. Imprescindível a coligação de esforços da gente que presta.

Em suma, clareza e coragem. Evitar atitudes como a de Afonso XIII. Temos reis outros a a pisar os passos, nos quais se alteia um em particular. Diante de ameaça parecida, o domínio muçulmano na Europa, insurgiu-se João III Sobieski (1629-1696). Indomável, nada o abateu, não conheceu o derrotismo, fugiu das aparentes fatalidades, venceu. O mundo civilizado e cristão lhe tem indizível dívida de gratidão.