terça-feira, 30 de junho de 2020

Atualidade do caso Dreyfus


Atualidade do caso Dreyfus

Péricles Capanema

Acho que é opinião geral, nada mais anacrônico que o caso Dreyfus. Tenho conjetura diferente, é palpitante. A situação pela qual passamos o evoca. Vislumbro perspectivas difíceis para os próximos anos. Tratarei delas nas hipóteses abaixo; e aí ficará clara, espero, a atualidade do caso Dreyfus ▬ ferramenta de interpretação. “Historia magistra vitae”, Cícero. Virou chavão, não deixa de ser verdadeiro e instrutivo.

Feridas ainda abertas. Para os leitores que ainda não o conhecem, durou 12 anos o caso Dreyfus, 1894 a 1906. Rachou a França de alto a baixo repercutindo nos âmbitos religioso, militar, político, social, moral, psicológico. Em todos, no curto. Foi o maior escândalo do fim do século XIX, dos maiores da História gaulesa. A França então se dividiu em duas ▬ sem-número de famílias fendidas, pai contra filho, mulher contra marido ▬, de um lado, “dreyfusards”; na banda oposta, “antidreyfusards”. Mais de cem anos depois ainda permanecem cicatrizes desses embates; sangram algumas poucas feridas. No primeiro campo, visão por alto, posicionaram-se republicanos, esquerda radical, esquerda socialista, intelectuais antimilitaristas, pacifistas, maçons. No segundo, também a vol-d’oiseau, monarquistas, defensores do Exército, católicos conservadores e tradicionalistas, parte da Hierarquia eclesiástica, antissemitas; de forma especial, boulangistas e outros grupos do nacionalismo extremado. Os dois lados tiveram imprensa violenta tensionando o ambiente. Até hoje não se sabe bem como o caso começou.

Marcos do caso Dreyfus. Em pinceladas rápidas, alguns episódios. Alfred Dreyfus (1859-1935), personagem central, servia como oficial de artilharia, origem alsaciana, família judia. Então capitão, foi acusado de espionar para a Alemanha, inimigo histórico, acabou condenado pela justiça militar em 22 de dezembro de 1894 à degradação e prisão perpétua. Partiu preso para as Guianas em 21 de fevereiro de 1895. O coronel Marie-Georges Picquart, em 2 de março de 1896, descobriu que o espião provável era o major Esterhazy. O coronel Picquart investigou a situação e nele a suspeita se transformou em certeza. O caso começou a tomar rumo distinto. Em 11 de janeiro de 1898 o Conselho de Guerra absolveu Esterhazy. O “J’accuse” de Émile Zola foi estampado na primeira página do “L’Aurore” de Georges Clemenceau, 13 de janeiro de 1898. Foi anulada a sentença contra Dreyfus em 3 de junho de 1899; ele imediatamente deixou a Ilha do Diabo, onde cumpria pena. Dreyfus foi condenado novamente por tribunal militar em 9 de setembro de 1899, agora a 10 anos de prisão com atenuantes, perdoado dez dias depois pelo presidente da República. Nas eleições de 1902, vitória das esquerdas; Jean Jaurès em 7 de abril de 1903 relançou o caso Dreyfus. Em 13 de julho de 1906 a Câmara votou lei que reintegrou Dreyfus ao Exército com grau de major. Em 12 de julho de 1906, a Corte de Cassação anulou o julgamento do Conselho de Guerra, reabilitou o capitão, reconhecendo inocência. Alfred Dreyfus, 21 de julho de 1906, recebeu a mais alta condecoração francesa, a Legião de Honra, grau de cavaleiro. Em 26 de outubro de 1906, o (agora) general Marie-Georges Picquart foi nomeado ministro da Guerra.

Vantagens revolucionárias. Em seu conjunto, o caso fortaleceu a república, enfraqueceu o movimento monarquista; lançou nota de descrédito sobre a alta hierarquia da Igreja, bafejou o anticlericalismo do início do século XX, favoreceu o laicismo oficial e a perseguição às congregações religiosas. Facilitou a vitória nas eleições legislativas do Bloco das Esquerdas. A mais, deslustrou o Exército, em especial a oficialidade de origem aristocrática. Finalmente, foi trombeteado como vitória da razão e da justiça (enraizadas na esquerda) contra o preconceito e a intolerância (aninhados na direita e em setores conservadores). Uma parte da direita se consolidou com base em justificativas que causarão sua demolição em anos futuros. Paro por aqui.

E salto por cima das décadas. Outra cena, acontecimentos diferentes, atualidade incontroversa. A pandemia prende as atenções, põe vidas em perigo e deixa em frangalhos a economia. Em algum momento, que esperamos próximo, seus efeitos começarão a passar. E o mundo retomará a vida normal. Retomará? Qual normalidade? Já se fala abertamente em novo normal. Em “reset”, recomeço.

O rumo dos Estados Unidos. Ponto fundamental, como agirão os Estados Unidos? Estamos a quatro meses da eleição presidencial. De momento, são boas as chances de Joe Biden bater Donald Trump. Ele é idoso (de si não quer dizer muita coisa), mas o fato faz naturalmente crescer a figura da vice-presidente. Já digo a vice-presidente, Biden prometeu escolher uma mulher. Que orientação terá?

Notório, parece-me, Donald Trump está com a reeleição ameaçada. Nas últimas eleições presidenciais, Hillary Clinton obteve 65.853.514 votos, Donald Trump, 62.984.828; perdeu por 2.868.686 votos (no Colégio Eleitoral, Trump ficou com 304 votos, Hillary 227). Sua aprovação não subiu; existem fatores que podem baixá-la: economia em declínio, pandemia em ascensão, agitações sociais em vários pontos do país.

Joe Biden, esperança revolucionária. A vitória de Biden animará as esquerdas no mundo inteiro. Aconteceu com Jimmy Carter, aconteceu com Bill Clinton, aconteceu com Barack Obama. É conjeturável, entre outros pontos, a China terá mais facilidade de aumentar sua influência e poder. E não é de excluir que a pandemia forneça ocasião para a China mostrar uma face humanitária e protetora; seria o caso se lá fosse descoberta a vacina e depois distribuída mundo afora (ou vendida barata).

Chininha paz e amor. Será difícil, mas a China pode se lançar em bem-sucedida operação de simpatia. Assistiríamos a golpe publicitário que aplaine o caminho para o avanço chinês, torne ainda mais penosa e impopular a oposição a seus objetivos. É congruente com o quadro geral. Uns dois anos atrás escrevi um conto “Brigo pelos homens atrofiados” sob o pseudônimo Zeca Patafufo, no qual o personagem Adamastor Ferrão Bravo adverte: “Vão agigantar tudo pela propaganda. Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imanta­da, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista; via nos inten­tos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza apavo­rante, a construção da utopia socialista dos “amanhãs que cantam”; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores”. Aconteceu lá atrás, poderá suceder de novo lá na frente.

Boicote a governos conservadores. Não apenas a governos, também a movimentos que procurem fazer frente à investida revolucionária haveria oposição da administração Joe Biden. Governos de direita serão boicotados, em especial na Europa e na América Latina, com bafejo à oposição interna de esquerda. Outro ponto provável, a agenda chamada “social” terá mais virulenta aplicação. Social aqui significa estimular a desagregação da sociedade com fortalecimento de movimentos LGBT, ideologia do gênero, liberalização ainda maior do aborto, entre outros. Pois Joe Biden vencerá à frente de uma coligação que incluirá radicais como os que agora estão derrubando estátuas ▬ a de são Junípero Serra (1713-784) foi derrubada, arrastada, chutada, cuspida, a face pintada de vermelho. Odiaram o missionário franciscano, contas feitas, por pregar religião e trazer civilização à Califórnia. Sintoma gritante de que programas destruidores serão impostos de forma intolerante. Biden, no primeiro mandato provavelmente poderá indicar dois juízes para a Corte Suprema, tingindo de maior coloração revolucionária a hermenêutica constitucional nos Estados Unidos. Gravíssimo.

Resistência, reação, reconstrução. Para as forças conservadoras, se as perspectivas aqui rabiscadas se realizarem no todo ou em parte, serão anos de resistência, reação (contra o “reset”) e reconstrução. Importa lembrar, para um movimento muitas vezes mais vale a legenda que dele evola que a realidade que expressa. Para o retorno triunfante (ou, pelo menos, exitoso) preservar a aura, a legenda, mais caseiramente, o bom nome, é fundamental. A reconstrução será favorecida se ao conservadorismo estiverem ligadas as noções de ordem, razoabilidade, senso de proporção, limpeza ética, religiosidade. Tudo será mais difícil se no espírito público aos grupos conservadores, no poder ou fora dele, por meio de campanhas conduzidas de forma eficaz ficarem correntemente associadas as pechas da irreflexão, irresponsabilidade e insensibilidade no enfrentamento da pandemia, para dar um exemplo. Mais ainda, corrupção e falta de escrúpulos. Como infelizmente se deu após o caso Dreyfus, parte da reconstrução poderia trabalhar sobre alicerces corroídos. Em resumo, o que acontecer agora poderá determinar ou limitar condutas nos previsíveis períodos de resistência, reação e reconstrução. E será utilizado implacavelmente por forças revolucionárias para sufocar quaisquer movimentos que se oponham a seus objetivos. Será como agora: hoje é comum líderes da esquerda de forma inescrupulosa utilizarem os labéus fascista, nazista, neonazista, neofacista para manchar reputações de oposicionistas, não importa a doutrina que esposem e a conduta que tenham.

Circunspecção. Fui pessimista? Espero que não. Olhemos ao redor. Foram simples conjeturas, feitas com intenção de ajudar a lutar num futuro que pode ser difícil. Dizia o professor Plinio Corrêa de Oliveira, não sou otimista, não me vejo como pessimista. Considerava-se um pessimólogo. Alguns de seus comentários: “[Sou] consciente de que o péssimo, em nossos dias, acontece com relativa frequência. É a atitude de quem se coloca diante do pior, para construir sua previsão, para poder enfrentá-lo”

Para poder enfrentá-lo, se acontecer. E aí sem ilusões, nem a de ter avisado. Tenho presente a “boutade” de Agripino Grieco: “O pior dos erros é acertar sozinho contra muita gente”.


sexta-feira, 26 de junho de 2020

Não à asfixia intelectual


Não à asfixia intelectual

Péricles Capanema

Tive em mente vários títulos para o artigo, bem mais fosforejantes. Um deles: “Jornalistas brasileiros esbofeteiam Prêmio Nobel”. Desisti, sensacionalista demais. Coloquei “Não à asfixia intelectual”, mais comportado.

O chanceler Ernesto Araújo, poucos meses atrás, afirmou que o nazismo era um movimento de esquerda. Já tinha feito a mesma afirmação em seu blog em 2017. Desencadeou-se sobre ele uma tempestade midiática, infestou o ambiente. Pareceria, o titular do Itamaraty teria solto o maior dos disparates. Não vou entrar aqui em disputa sobre oportunidade, necessidade de matizar melhor o pensamento, percepção pública. Ficam para outra ocasião, se houver.

Asneira, absurdo científico, disparate, labéus desse nível recebeu o ministro, saraivada de impropérios; só contumélias, zero de argumentação. Irritou-me a agressão descabelada da patrulha ideológica, tentativa escancarada de desqualificar o tema pela operação mordaça, imposição intolerante de ponto de vista, esteada na gritaria intimidatória, bem como no desconhecimento de boa parte do público.

Calma, vamos abrir as janelas, deixar ventilar, arejar o ambiente, refrescar o assunto; trabalho de descontaminação. Houve autores muito sérios, ao longo de décadas, que antes do ministro disseram com argumentação convincente a mesma coisa. Bastaria uma consulta ao paquidérmico material acadêmico e jornalístico, hoje na rede. Lembro aqui apenas dois deles.

O primeiro, entre nós, já antes da 2ª Guerra Mundial, quando o nazismo estava no auge. No “Legionário”, semanário da arquidiocese de São Paulo, de que era diretor, escreveu o professor Plínio Corrêa de Oliveira em agosto de 1938: “[Houve] o reatamento das relações diplomáticas entre a Alemanha e a Rússia, que vinham sendo muito regulares e que se tornaram normais. [...] A verdade é esta: se bem que Hitler pregue contra o comunismo e se apresente como defensor da civilização europeia contra esse mal, sua atitude em relação ao governo soviético difere fundamentalmente dessa propaganda”. Mais adiante, em 1º de janeiro de 1939, previa ele: “Efetivamente, enquanto todos os campos se definem, um movimento cada vez mais nítido se processa. É a fusão doutrinária do nazismo com o comunismo. A nosso ver, 1939 assistirá à consumação dessa fusão”. Convém acentuar, o autor nota crescente confluência doutrinária entre os dois movimentos ▬ em especial, totalitarismo e nacionalismo. E já antes da guerra. O que leva naturalmente a acordos políticos e diplomáticos.

Em maio de 1939, voltava ao tema: “A nota mais curiosa do noticiário da semana passada foi fornecida, sem dúvida pelos rumores insistentes sobre uma aproximação teuto-russa. À primeira vista esta versão tem contra si fortes possibilidades […]. Dada a campanha espetacular que o nazismo e o comunismo dirigem um contra o outro, seria deveras surpreendente que ambos se reconciliassem. Os observadores menos superficiais entretanto, não consideram tão inverossímil essa hipótese. Em primeiro lugar nenhuma pessoa medianamente culta poderá negar a inteira afinidade ideológica existente entre o totalitarismo e o comunismo […]. A Alemanha é nacional-socialista. A Rússia está ficando nacionalista sem deixar de ser comunista.”

À véspera da 2ª Guerra Mundial, a Rússia e a Alemanha firmaram em 23 de agosto de 1939 [ a guerra começou em 1º de setembro] uma aliança, o pacto Ribbentrop-Molotov, que só terminou dois anos depois, em 22 de junho de 1941, com a invasão da Rússia pela Alemanha. Em fevereiro de 1940, já em plena guerra, foi assinado o acordo de comércio germano-soviético. Em junho de 1940, escreveu Plinio Corrêa de Oliveira a respeito da entrada na guerra da Itália ao lado da Alemanha: “Nessa ocasião, o Legionário já sustentava a inconsistência da luta entre o totalitarismo de direita e de esquerda. Segundo as previsões desta folha, dia viria em que os fatos demonstrariam esta tese, e o mundo ainda assistiria à aliança de uma e outra ideologia. Veio finalmente o pacto Ribbentrop-Stalin e de lá para cá nosso ponto de vista tem recebido da realidade a sua mais plena confirmação”.

Agora, deixo o Brasil e vou para a Inglaterra. Em 1944, em plena guerra, foi ali publicado o livro “O Caminho da Servidão” de Friedrich August von Hayek (1902-1992). Lembro alguns dados biográficos. Hayek nasceu em Viena, lá se doutorou, mudou-se em 1932 para Londres para lecionar na London School of Economics. Logo teve polêmicas públicas com John Maynard Keynes (1883-1946). Naturalizado cidadão britânico em 1938, firmou-se imediatamente como pensador de destaque no mundo inglês, em especial em temas econômicos. Margareth Thatcher o admirava: “o mais importante crítico do planejamento socialista e do Estado socialista”. À vera, amplo conhecedor do mundo alemão, suas raízes e estudos estavam lá, sua voz repercutia também na nação de onde viera. Lecionou ainda nos Estados Unidos e na Alemanha, para onde se mudou em 1977 e lá faleceu. Recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1974.

Em 1944, já se pressentia a derrota da Alemanha, atacada no oeste pelos Estados Unidos e aliados; no leste pela Rússia. Por causa do inimigo comum, era grande a propaganda favorável aos soviéticos e às doutrinas socialistas. Hayek via o aumento do prestígio das teses socialistas na Inglaterra, percebia a provável repercussão eleitoral. Publicou o livro-advertência em plena guerra (1944), cujo resumo, para o que aqui nos interessa, é simples. A Inglaterra estava em situação parecida com a Alemanha depois da 1ª Guerra Mundial. As doutrinas e os movimentos que geraram o nazismo eram ali também fortes. Poderiam gerar uma situação socialista, como uma de feições nazistas. Os dois movimentos tinham inspiração doutrinaria comum, estatismo, planejamento totalitário, culto do coletivo, menosprezo da pessoa humana: “É o destino da Alemanha que estamos em perigo de seguir. Há mais do que uma semelhança superficial entre o rumo do pensamento na Alemanha durante e após a 1ª Guerra Mundial. Poucos estão prontos a reconhecer que a ascensão do nazismo e do fascismo não foi uma reação contra as tendências socialistas do período precedente, mas o resultado necessário dessas mesmas tendências”

Contata que, como na Alemanha de quinze anos atrás, o socialismo havia dominado as mentalidades na Inglaterra: “Se considerarmos as pessoas cujas opiniões influem nos acontecimentos neste país, todas elas são em certo sentido socialistas. Porque todos o desejam estamos marchando na direção do socialismo”.

No capítulo intitulado “As raízes socialistas do nazismo”, afirma o Prêmio Nobel de Economia de 1974: “É um engano considerar o nacional-socialismo uma simples revolta contra a razão, um movimento irracional sem antecedentes intelectuais. As doutrinas do nacional-socialismo representam o ponto culminante de uma longa evolução de ideias. O sistema se desenvolveu com coerência implacável. Uma vez aceitas suas premissas, não se pode fugir à sua lógica. Trata-se simplesmente do coletivismo. No início as ideias nazistas eram aceitas apenas por uma minoria, mas em seguida passaram a conquistar o apoio da maioria do povo. O apoio a elas veio exatamente dos socialistas e não de uma burguesia. Os mais ilustres precursores do nacional-socialismo são reconhecidos, ao mesmo tempo, como fundadores do socialismo”. Como se vê, para Hayek importavam pouco os rótulos, analisava o conteúdo comum, o coletivismo e o menosprezo da pessoa.

É isso. Foi um desabafo (desculpem-me o jogo de palavras) contra a operação abafa. O totalitarismo não morreu, continua vivo entre nós em especial na academia, nas redações dos órgãos de divulgação, nas sacristias do clero de esquerda. A vida intelectual reclama oxigênio, desabrocha em ambientes arejados.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Retrocessos monstruosos


Retrocessos monstruosos

Péricles Capanema

Temos às pencas regressões sociais desconhecidas da maior parte das pessoas, às vezes esquecidas, por vezes subestimadas. São fracassos medonhos, lesivos ao bem comum. E assim, ao longo das décadas e séculos, empobreceram a sociedade, dificultaram a inclusão, a mais de fechar horizontes da promoção (perfeição) social. Por imperativo de justiça, reclamam resgate do olvido imerecido, que começa pelo conhecimento. Reitero, convém trazê-los de volta à luz, para fruição, instrução e proveito popular. Bem vista, essa revivescência é benemérito ativismo social. Todos perdem com tais esquecimentos (qualificação benévola, existem ocultações e deformações).

Vou falar em especial de um deles, hoje perdido em desvãos da História. Antes, poucas linhas de útil recordação sobre a relevância da exemplaridade. Tratei faz pouco, pela rama embora, do papel social dos “role models”, exemplos e padrão para milhões. Bafejando comportamentos, são fundamentais para formar mentalidades, favorecer doutrinas, promover condutas. Governam no mais alto sentido da palavra. Pois governar não é sobretudo abrir estradas e construir pontes; é em primeiro lugar dirigir pessoas. Dirige-as quem influi nas convicções, mentalidades e hábitos morais.

É difícil a tradução de “role model” para o português; seria modelo ou modelo social. Aliás, é exatamente esse o papel de um santo canonizado, servir de modelo, padrão, sugerir rumos, trabalhar mentalidades. O “role model” dos nossos dias em regra é versão apequenada, desnaturada, laicizada e aguada do santo.

Assim define o “Business Dictionary” [Dicionário dos Negócios] o “role model”: “São pessoas para as quais se olha e se reverencia. Um modelo social é alguém que os outros desejam imitar, seja agora, seja no futuro. Um modelo social pode ser alguém que você conheça, relacione-se normalmente com ele, ou alguém que você nunca encontrou, como uma celebridade. Modelos sociais podem ser atores conhecidos, figuras públicas, políticos, professores, policiais, pessoas importantes da família”.

Modelos sociais são ou foram Gandhi, os Beatles, Elvis Presley, Che Guevara, Bill Gates, Pelé, a princesa Diana e ainda numerosos influencers atuais. Um tio seu, leitor, admirado na família. Uma prima, leitora. “Quero ser como fulano”, é grito interior de sem-número de pessoas. Modelos sociais influem no caminhar da sociedade (involuções ou avanços), cada um a seu modo e título, cada um atuando em especial sobre certa faixa do público. Seu tipo humano se torna objetivo atraente naquela faixa da realidade. É corrente, a irradiação de sua personalidade, ligada ao fascínio que exercem, muitas vezes ultrapassa a influência de chefes de governo ou de Estado, mesmo de grandes potências. Em curto, podem atrair para o bem, hoje pouco comum, podem puxar para o mal, o mais frequente.

Pode parecer cavalo-de-pau, não vai ser, o rumo permanece. Luís XIV (1638-1715) é considerado a personificação do monarca absoluto. Dele teria sido a frase, pronunciada em 1655, “L’État, c’est moi”, o Estado sou eu. Nunca a disse; pelo contrário, pouco antes de falecer, afirmou: “Morro, mas o Estado permanece”. Ninguém nega, contudo, Luís XIV governou com autoridade, exerceu com desembaraço o mando. “Le métier du roi est grand, noble et délicieux”. Essa é dele; para o monarca o ofício do rei era grande, nobre e delicioso. Marcou a França, marcou sua época, foi modelo para soberanos. Não analisarei sua política, nem seus acertos e erros. Meu foco é aspecto pouco destacado, facetas de seu tipo humano, inspiradoras de comportamentos e formadoras de mentalidade. A descrição de que me valho é de Hyppolite Taine (1828-1893), dos maiores historiadores franceses, está nas páginas do seu livro “Les origines de la France contemporaine”; dela vou retirar apenas as referências para tornar mais fluente a leitura. Hoje é fácil encontrar a obra na rede e baixá-la ▬ está no domínio público.

“Luís XIV tinha todas as qualidades de um mestre de casa, o gosto da representação e da hospitalidade, a condescendência e a dignidade; a arte de não ferir o amor-próprio das pessoas, a arte de ficar sempre em seu lugar, a galanteria nobre, o tato, o atrativo do espírito e da linguagem. Falava perfeitamente bem; quando era preciso tinha a linguagem leve; quando necessário, o gracejo. Se narrava uma história, fazia-o com enorme encanto, um tom nobre e fino, que só vi nele. Nunca houve homem mais naturalmente polido, nem com uma polidez tão bem medida, tão bem graduada, ninguém distinguia melhor nas respostas e na maneira de ser a idade, a condição social e o mérito. Suas reverências, mais ou menos marcadas, sempre discretas, tinham uma graça e uma majestade incomparáveis. Era admirável pela forma diferenciada de receber homenagens à frente das tropas e ainda nas revistas. Sobretudo no tratamento das mulheres, nada havia de semelhante. Nunca passou diante da mais simples empregada de quarto sem tirar o chapéu e sabia a\ quem cumprimentava. Nunca disse nada depreciativo para ninguém. Nunca em sociedade comentou alguma coisa fora do lugar ou deslocada. Até no menor gesto, no caminhar, no porte, na postura, tudo medido, decente, nobre, grande, majestoso e, contudo, muito natural”.

Taine conclui: “Eis o modelo. De perto ou de longe, foi seguido até o fim do Antigo Regime”. Sabe-se, Luis XIV morreu em 1715, o Antigo Regime acabou com o triunfo da Revolução Francesa em 1789. De fato, Luís XIV incarnou em alto grau um ideal de perfeição social, que marcou o Antigo Regime. Em especial, tal ideal social moldou a educação dos príncipes, a formação do “honnête homme”, o homem de sociedade. Tendia a se generalizar; sua perenidade e aperfeiçoamento gradual estimulariam avanços civilizatórios, dos quais o mundo se viu privado. Com o fim do Antigo Regime, atacada e vilipendiada pelas correntes revolucionárias, em análise rápida, sobraram destroços de tal padrão de convívio, ainda que por vezes enormes. Multidões durante séculos estiveram excluídas de formas mais perfeitas de vida social, acostumando-se com a degradação nas relações humanas. Decadência atroz ▬ minimizada.

Esse mesmo espírito, aninhado no fundo da doutrina e da mentalidade das formações revolucionárias, manifestou-se repetidas vezes ao longo da História, gerando miséria e exclusão. Dois exemplos. Um grande cientista ▬ nascido na nobreza de toga (durante a Revolução Francesa, renunciou ao uso da partícula de, própria à nobreza; aliás, pouco lhe adiantou) ▬, hoje por vezes chamado de “pai da química moderna”, Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794) foi condenado à guilhotina por tribunal de exceção da Revolução Francesa. Pediu alguns dias de adiamento da execução, queria terminar pesquisas solicitação negada. Resposta emblemática de Jean-Baptiste Coffinhal, presidente do Tribunal Revolucionário: “A República não precisa de sábios”. Lavoisier foi guilhotinado em 8 de maio de 1794. Arremeteu irado contra o crime hediondo Louis de La Grange, dos maiores matemáticos da época: “Morreu Lavoisier, só lhes custou um segundo cortar a cabeça, cem anos talvez não sejam suficientes para que apareça uma parecida”. Quanto perdeu o mundo? Quanto perderam os pobres em qualidade de vida? Retrocesso desumano ▬ silenciado.

Outros fatos, de mesma natureza. No Brasil, animadas pelo mesmo fanatismo, mulheres do MST (uma das vanguardas da atrofia social entre nós), em pelo menos duas ocasiões, pelo que me lembro agora, 2006 e 2015, foram discípulas modelares de Jean-Baptiste Coffinhal. Em março de 2006 em Barra do Ribeiro, a 60 quilômetros de Porto Alegre, destruíram pelo menos um milhão de mudas de eucalipto em laboratório de propriedade da Aracruz Celulose. Renato Rostirolla, gerente florestal, lastimou: “Há trabalhos de 20 anos de melhoramento genético que foram destruídos. Se fôssemos realizar todos os cruzamentos, levaria no mínimo cinco ou seis anos. Alguns nunca mais serão possíveis, porque as matrizes foram destruídas”. Vandalismo semelhante foi perpetrado em Itapetininga, março de 2015, também por mulheres capitaneadas pelo MST, agora na Futura Gene, empresa do grupo Suzano. O gerente Eduardo José de Mello lamentou: “Perdemos alguns anos de desenvolvimento tecnológico”. Segundo a empresa, 14 anos de pesquisas foram destruídos.

Os setores que espatifam com delícias intolerantes milhares e até milhões de mudinhas escolhidas de eucalipto, prenúncios de porvir melhor, de forma congruente, simpatizarão com a decapitação criminosa de Lavoisier; e não perceberão problema algum, acharão é bom, que a alta educação de Luís XIV seja depreciada e finalmente desapareça como fator de aperfeiçoamento social. Inimigos do crescimento, obstruem os caminhos da subida e o povo é a maior vítima. Post-scriptum: tais setores não têm apenas manifestações extremadas; correntes de opinião numerosas ingeriram prazerosamente doses graduadas de tal veneno.

domingo, 21 de junho de 2020

Simplicidade


Simplicidade

Péricles Capanema

Hoje passo ao lado do coronavirus, sem lhe virar as costas. Não subestimo a pandemia, pelo contrário; perdi amigos, de momento são dele vítimas, alguns com gravidade, gente que me é próxima, parentes; a vacina continua esperança, incógnita envolta nas brumas do futuro. O próximo vulnerado bem poderá ser eu, estou de cheio no grupo de risco, chances menores de escapar, chances maiores de ir a óbito ou de recuperação com sequelas. Como não se alarmar?

À vera desde semanas tenho reflexões sobre pontos da situação ▬ política, moral, psicológica ▬ criada pela pandemia; e quando as escrever, tentarei não divulgar meras repetições do que outros mais capacitados estão espalhando aqui e lá fora. Oferecer pratos requentados, mesmo nutritivos, nunca foi o mais atraente.

Preocupa-me ponto em especial, ainda hipótese chã, poderia vir a ter relevância; até agora não li nenhuma alusão a ele. Fica para próximo artigo. Já advirto, conjeturas, uns poderão gostar, outros terão reservas. Paciência, ainda serão meras conjeturas, nada mais corriqueiro que aceitá-las ou recusá-las. Por outro lado, despreocupa-me a possibilidade de levar chumbo, mesmo fogo amigo, de há muito virei boi do couro grosso.

Corta. O artigo de hoje, passando longe do vírus, repito, por surpreendente que possa parecer, surge da arrumação de gaveta bagunçada. Foi preciso jogar muita coisa fora, e a seguir ordenar com paciência, pelo menos minimamente, o que ficou. Na papelada encontrei esquecida preciosidade, pela foto e pelo texto: o cartão de Natal de dom Luiz de 2013. Palavras de afeto e irresignação.

Dom Luiz é o Chefe da Casa Imperial do Brasil, todos sabem. O cartão comenta a foto da avó, a princesa d. Maria Pia, clicada aos 19 anos ▬ ela nasceu em 1878. Natural, a figura saída da História evocou de plano a constatação, aquela moça poderia ter sido por longos anos a imperatriz do Brasil. Como teria se desempenhado? Que marcas deixaria na sociedade e no governo? Na história do país?

Candura, esmero, elevação, foram impressões primeiras despertadas pela foto de uma quase menina vestida de branco, olhar penetrante, um leque pendente da mão direita. Fui invadido por outras impressões, seriedade, leveza, delicadeza, bom tom, simplicidade, qualidades que nobilitavam o ar aristocrático.

Borbotou incontível o confronto. Explico-me. A vida pública do Brasil, não e de hoje,  está empanzinada de cenas sórdidas, entulhada de gente desbotada (na mais benévola e parcial das qualificações), da qual boa parte a corrompe e avilta, estadeando arrogância, imoralidade e primarismo. Aí o senso patriótico gritou forte. Amargurou-me o contraste entre a chusma desordeira que observo entristecido e a figura serena de uma moça despretensiosa, a figura indicava, provavelmente com enorme capacidade de influir e formar pelo bom exemplo.

A simplicidade de d. Maria Pia, ar modesto e tão senhora, contrastava no meu espírito com o que vejo todos os dias, no mundo oficial e na vida privada, cabotinismo, pedantismo, deboche, petulância, grã-finismo. Em vez de tanto retrocesso e obscurantismo, poderíamos ter experimentado avanços civilizatórios, com grande benefício social, impossibilitados, dói a constatação, pela subserviência irrefletida a preconceitos deformantes.

Volto à princesa. Não custa lembrar, a grande arte de governar está na exemplaridade; acessível a todos (e, sob outro ângulo, paradoxalmente, com grande impacto, a poucos; vale muito o que hoje em geral se denomina carisma). “Verba movent, exempla trahunt”, bons exemplos cintilam e arrastam. Maus exemplos afundam. Os “role models” , cujo estudo ocupa a tantos pesquisadores, têm enorme papel formativo, potencial para promover inclusão social e impedir dilacerações nacionais.

E então, de um lado, longe, lá no século XIX, esplendia na foto o conteúdo nobre expresso na postura fidalga, tudo bem preparado para vida pública altamente favorecedora do bem comum; de outro, junto a nós, pleno século XXI, entenebrecedor o fundo cavernoso manifestado nos esgares contrafeitos de um sem-número de figuras caricatas do Brasil contemporâneo, cada vez mais debilitado e manchado por nota de abjeção em sua vida pública. Pensei cá comigo, pobres de nós, merecemos esta (má) sorte? Terá Deus se esquecido de nós? Afastei o  pensamento, o débito deve cair na nossa conta.

Adiante. O nome Maria Pia, familiar, em nada rescende ao postiço e rebuscado. A postura ereta e a mirada segura mostram afavelmente o que ela é. No texto enaltecedor de dom Luiz, elegante e simples, mareja a admiração pela avó, com quem conviveu, falecida 40 anos antes, em 1973. Evola das palavras a irresignação do neto, não aceita que vá se apagando injustamente a memória da avó, tão necessária à família e até à História. “Eu e meus irmãos tivemos o privilégio de estreito contato com Vovó. [...] Em extensas caminhadas ou em longos serões, ela nos comunicava seu grande afeto, transmitindo a visão do mundo e os valores”. Educação pela palavra e pelo exemplo.

Recorda dom Luiz: “Buscou ela mesmo identificar-se com o Brasil. Aqui esteve em 1922, por ocasião do centenário da Independência, acompanhada do filho mais velho, meu pai d. Pedro Henrique [...]. Sua presença foi muito solicitada então, chegando a participar do lançamento da pedra fundamental do Cristo do Corcovado, monumento cuja edificação teve origem em um pedido da Princesa Isabel”.

Deixo, por fim, ainda algumas palavras de dom Luiz: “D. Maria Pia teve a honra de avistar-se pessoalmente com o papa são Pio X, e conservou do encontro, com profunda veneração, uma foto dedicada do Pontífice, hoje em minhas mãos”. Bonita atitude filial de dois católicos, o neto e a avó, merece registro. Com esteio em ensinamentos de são Pio X, dom Luiz, muito oportunamente, termina a saudação de Natal reiterando sua fidelidade à civilização cristã, que deseja ver fulgurando no Brasil.

Por que título simples, só a palavra simplicidade? Reconheço, pode parecer estranho haveria multidão de títulos a escolher. Fiquei com simplicidade, chamou-me a atenção na foto, mas teve ainda razão mais ampla, o conceito expressa a união harmônica de virtudes. Evoco o ensinamento do Doutor Angélico. Na Suma escreveu santo Tomás: “Em sentido contrário, Agostinho [santo] afirma: ‘Deus é verdadeira e sumamente simples’. [...] Para nós, os compostos são melhores do que os simples, porque a perfeição da bondade da criatura não se encontra em um único simples, mas em muitos; ao passo que a perfeição da bondade divina se encontra em um único simples, como se verá (q. 4, a.2).

Faz falta enorme para o progresso social (para cada um de nós também) o tipo de personalidade da qual d. Maria Pia foi grande exemplo. Dom Luiz tem razão: a avó não deve ser esquecida.