Simplicidade
Péricles
Capanema
Hoje
passo ao lado do coronavirus, sem lhe virar as costas. Não subestimo a pandemia,
pelo contrário; perdi amigos, de momento são dele vítimas, alguns com
gravidade, gente que me é próxima, parentes; a vacina continua esperança, incógnita
envolta nas brumas do futuro. O próximo vulnerado bem poderá ser eu, estou de
cheio no grupo de risco, chances menores de escapar, chances maiores de ir a
óbito ou de recuperação com sequelas. Como não se alarmar?
À vera
desde semanas tenho reflexões sobre pontos da situação ▬ política, moral,
psicológica ▬ criada pela pandemia; e quando as escrever, tentarei não divulgar
meras repetições do que outros mais capacitados estão espalhando aqui e lá
fora. Oferecer pratos requentados, mesmo nutritivos, nunca foi o mais atraente.
Preocupa-me
ponto em especial, ainda hipótese chã, poderia vir a ter relevância; até agora
não li nenhuma alusão a ele. Fica para próximo artigo. Já advirto, conjeturas, uns
poderão gostar, outros terão reservas. Paciência, ainda serão meras conjeturas,
nada mais corriqueiro que aceitá-las ou recusá-las. Por outro lado, despreocupa-me
a possibilidade de levar chumbo, mesmo fogo amigo, de há muito virei boi do
couro grosso.
Corta. O
artigo de hoje, passando longe do vírus, repito, por surpreendente que possa
parecer, surge da arrumação de gaveta bagunçada. Foi preciso jogar muita coisa
fora, e a seguir ordenar com paciência, pelo menos minimamente, o que ficou. Na
papelada encontrei esquecida preciosidade, pela foto e pelo texto: o cartão de
Natal de dom Luiz de 2013. Palavras de afeto e irresignação.
Dom Luiz
é o Chefe da Casa Imperial do Brasil, todos sabem. O cartão comenta a foto da
avó, a princesa d. Maria Pia, clicada aos 19 anos ▬ ela nasceu em 1878. Natural,
a figura saída da História evocou de plano a constatação, aquela moça poderia
ter sido por longos anos a imperatriz do Brasil. Como teria se desempenhado?
Que marcas deixaria na sociedade e no governo? Na história do país?
Candura, esmero,
elevação, foram impressões primeiras despertadas pela foto de uma quase menina vestida
de branco, olhar penetrante, um leque pendente da mão direita. Fui invadido por
outras impressões, seriedade, leveza, delicadeza, bom tom, simplicidade,
qualidades que nobilitavam o ar aristocrático.
Borbotou incontível
o confronto. Explico-me. A vida pública do Brasil, não e de hoje, está empanzinada de cenas sórdidas, entulhada
de gente desbotada (na mais benévola e parcial das qualificações), da qual boa
parte a corrompe e avilta, estadeando arrogância, imoralidade e primarismo. Aí
o senso patriótico gritou forte. Amargurou-me o contraste entre a chusma desordeira
que observo entristecido e a figura serena de uma moça despretensiosa, a figura
indicava, provavelmente com enorme capacidade de influir e formar pelo bom
exemplo.
A
simplicidade de d. Maria Pia, ar modesto e tão senhora, contrastava no meu
espírito com o que vejo todos os dias, no mundo oficial e na vida privada, cabotinismo,
pedantismo, deboche, petulância, grã-finismo. Em vez de tanto retrocesso e
obscurantismo, poderíamos ter experimentado avanços civilizatórios, com grande
benefício social, impossibilitados, dói a constatação, pela subserviência irrefletida
a preconceitos deformantes.
Volto à
princesa. Não custa lembrar, a grande arte de governar está na exemplaridade;
acessível a todos (e, sob outro ângulo, paradoxalmente, com grande impacto, a
poucos; vale muito o que hoje em geral se denomina carisma). “Verba movent,
exempla trahunt”, bons exemplos cintilam e arrastam. Maus exemplos afundam. Os “role
models” , cujo estudo ocupa a tantos pesquisadores, têm enorme papel formativo,
potencial para promover inclusão social e impedir dilacerações nacionais.
E então,
de um lado, longe, lá no século XIX, esplendia na foto o conteúdo nobre expresso
na postura fidalga, tudo bem preparado para vida pública altamente favorecedora
do bem comum; de outro, junto a nós, pleno século XXI, entenebrecedor o fundo
cavernoso manifestado nos esgares contrafeitos de um sem-número de figuras
caricatas do Brasil contemporâneo, cada vez mais debilitado e manchado por nota
de abjeção em sua vida pública. Pensei cá comigo, pobres de nós, merecemos esta
(má) sorte? Terá Deus se esquecido de nós? Afastei o pensamento, o débito deve cair na nossa
conta.
Adiante. O
nome Maria Pia, familiar, em nada rescende ao postiço e rebuscado. A postura
ereta e a mirada segura mostram afavelmente o que ela é. No texto enaltecedor de
dom Luiz, elegante e simples, mareja a admiração pela avó, com quem conviveu, falecida
40 anos antes, em 1973. Evola das palavras a irresignação do neto, não aceita
que vá se apagando injustamente a memória da avó, tão necessária à família e
até à História. “Eu e meus irmãos tivemos o privilégio de estreito contato com
Vovó. [...] Em extensas caminhadas ou em longos serões, ela nos comunicava seu
grande afeto, transmitindo a visão do mundo e os valores”. Educação pela
palavra e pelo exemplo.
Recorda
dom Luiz: “Buscou ela mesmo identificar-se com o Brasil. Aqui esteve em 1922,
por ocasião do centenário da Independência, acompanhada do filho mais velho,
meu pai d. Pedro Henrique [...]. Sua presença foi muito solicitada então,
chegando a participar do lançamento da pedra fundamental do Cristo do
Corcovado, monumento cuja edificação teve origem em um pedido da Princesa
Isabel”.
Deixo,
por fim, ainda algumas palavras de dom Luiz: “D. Maria Pia teve a honra de
avistar-se pessoalmente com o papa são Pio X, e conservou do encontro, com
profunda veneração, uma foto dedicada do Pontífice, hoje em minhas mãos”. Bonita
atitude filial de dois católicos, o neto e a avó, merece registro. Com esteio
em ensinamentos de são Pio X, dom Luiz, muito oportunamente, termina a saudação
de Natal reiterando sua fidelidade à civilização cristã, que deseja ver
fulgurando no Brasil.
Por que título
simples, só a palavra simplicidade? Reconheço, pode parecer estranho haveria
multidão de títulos a escolher. Fiquei com simplicidade, chamou-me a atenção na
foto, mas teve ainda razão mais ampla, o conceito expressa a união harmônica de
virtudes. Evoco o ensinamento do Doutor Angélico. Na Suma escreveu santo Tomás:
“Em sentido contrário, Agostinho [santo] afirma: ‘Deus é verdadeira e sumamente
simples’. [...] Para nós, os compostos são
melhores do que os simples, porque a perfeição da bondade da criatura não se
encontra em um único simples, mas em muitos; ao passo que a perfeição da
bondade divina se encontra em um único simples, como se verá (q. 4, a.2).”
Faz falta
enorme para o progresso social (para cada um de nós também) o tipo de
personalidade da qual d. Maria Pia foi grande exemplo. Dom Luiz tem razão: a
avó não deve ser esquecida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário