terça-feira, 30 de junho de 2020

Atualidade do caso Dreyfus


Atualidade do caso Dreyfus

Péricles Capanema

Acho que é opinião geral, nada mais anacrônico que o caso Dreyfus. Tenho conjetura diferente, é palpitante. A situação pela qual passamos o evoca. Vislumbro perspectivas difíceis para os próximos anos. Tratarei delas nas hipóteses abaixo; e aí ficará clara, espero, a atualidade do caso Dreyfus ▬ ferramenta de interpretação. “Historia magistra vitae”, Cícero. Virou chavão, não deixa de ser verdadeiro e instrutivo.

Feridas ainda abertas. Para os leitores que ainda não o conhecem, durou 12 anos o caso Dreyfus, 1894 a 1906. Rachou a França de alto a baixo repercutindo nos âmbitos religioso, militar, político, social, moral, psicológico. Em todos, no curto. Foi o maior escândalo do fim do século XIX, dos maiores da História gaulesa. A França então se dividiu em duas ▬ sem-número de famílias fendidas, pai contra filho, mulher contra marido ▬, de um lado, “dreyfusards”; na banda oposta, “antidreyfusards”. Mais de cem anos depois ainda permanecem cicatrizes desses embates; sangram algumas poucas feridas. No primeiro campo, visão por alto, posicionaram-se republicanos, esquerda radical, esquerda socialista, intelectuais antimilitaristas, pacifistas, maçons. No segundo, também a vol-d’oiseau, monarquistas, defensores do Exército, católicos conservadores e tradicionalistas, parte da Hierarquia eclesiástica, antissemitas; de forma especial, boulangistas e outros grupos do nacionalismo extremado. Os dois lados tiveram imprensa violenta tensionando o ambiente. Até hoje não se sabe bem como o caso começou.

Marcos do caso Dreyfus. Em pinceladas rápidas, alguns episódios. Alfred Dreyfus (1859-1935), personagem central, servia como oficial de artilharia, origem alsaciana, família judia. Então capitão, foi acusado de espionar para a Alemanha, inimigo histórico, acabou condenado pela justiça militar em 22 de dezembro de 1894 à degradação e prisão perpétua. Partiu preso para as Guianas em 21 de fevereiro de 1895. O coronel Marie-Georges Picquart, em 2 de março de 1896, descobriu que o espião provável era o major Esterhazy. O coronel Picquart investigou a situação e nele a suspeita se transformou em certeza. O caso começou a tomar rumo distinto. Em 11 de janeiro de 1898 o Conselho de Guerra absolveu Esterhazy. O “J’accuse” de Émile Zola foi estampado na primeira página do “L’Aurore” de Georges Clemenceau, 13 de janeiro de 1898. Foi anulada a sentença contra Dreyfus em 3 de junho de 1899; ele imediatamente deixou a Ilha do Diabo, onde cumpria pena. Dreyfus foi condenado novamente por tribunal militar em 9 de setembro de 1899, agora a 10 anos de prisão com atenuantes, perdoado dez dias depois pelo presidente da República. Nas eleições de 1902, vitória das esquerdas; Jean Jaurès em 7 de abril de 1903 relançou o caso Dreyfus. Em 13 de julho de 1906 a Câmara votou lei que reintegrou Dreyfus ao Exército com grau de major. Em 12 de julho de 1906, a Corte de Cassação anulou o julgamento do Conselho de Guerra, reabilitou o capitão, reconhecendo inocência. Alfred Dreyfus, 21 de julho de 1906, recebeu a mais alta condecoração francesa, a Legião de Honra, grau de cavaleiro. Em 26 de outubro de 1906, o (agora) general Marie-Georges Picquart foi nomeado ministro da Guerra.

Vantagens revolucionárias. Em seu conjunto, o caso fortaleceu a república, enfraqueceu o movimento monarquista; lançou nota de descrédito sobre a alta hierarquia da Igreja, bafejou o anticlericalismo do início do século XX, favoreceu o laicismo oficial e a perseguição às congregações religiosas. Facilitou a vitória nas eleições legislativas do Bloco das Esquerdas. A mais, deslustrou o Exército, em especial a oficialidade de origem aristocrática. Finalmente, foi trombeteado como vitória da razão e da justiça (enraizadas na esquerda) contra o preconceito e a intolerância (aninhados na direita e em setores conservadores). Uma parte da direita se consolidou com base em justificativas que causarão sua demolição em anos futuros. Paro por aqui.

E salto por cima das décadas. Outra cena, acontecimentos diferentes, atualidade incontroversa. A pandemia prende as atenções, põe vidas em perigo e deixa em frangalhos a economia. Em algum momento, que esperamos próximo, seus efeitos começarão a passar. E o mundo retomará a vida normal. Retomará? Qual normalidade? Já se fala abertamente em novo normal. Em “reset”, recomeço.

O rumo dos Estados Unidos. Ponto fundamental, como agirão os Estados Unidos? Estamos a quatro meses da eleição presidencial. De momento, são boas as chances de Joe Biden bater Donald Trump. Ele é idoso (de si não quer dizer muita coisa), mas o fato faz naturalmente crescer a figura da vice-presidente. Já digo a vice-presidente, Biden prometeu escolher uma mulher. Que orientação terá?

Notório, parece-me, Donald Trump está com a reeleição ameaçada. Nas últimas eleições presidenciais, Hillary Clinton obteve 65.853.514 votos, Donald Trump, 62.984.828; perdeu por 2.868.686 votos (no Colégio Eleitoral, Trump ficou com 304 votos, Hillary 227). Sua aprovação não subiu; existem fatores que podem baixá-la: economia em declínio, pandemia em ascensão, agitações sociais em vários pontos do país.

Joe Biden, esperança revolucionária. A vitória de Biden animará as esquerdas no mundo inteiro. Aconteceu com Jimmy Carter, aconteceu com Bill Clinton, aconteceu com Barack Obama. É conjeturável, entre outros pontos, a China terá mais facilidade de aumentar sua influência e poder. E não é de excluir que a pandemia forneça ocasião para a China mostrar uma face humanitária e protetora; seria o caso se lá fosse descoberta a vacina e depois distribuída mundo afora (ou vendida barata).

Chininha paz e amor. Será difícil, mas a China pode se lançar em bem-sucedida operação de simpatia. Assistiríamos a golpe publicitário que aplaine o caminho para o avanço chinês, torne ainda mais penosa e impopular a oposição a seus objetivos. É congruente com o quadro geral. Uns dois anos atrás escrevi um conto “Brigo pelos homens atrofiados” sob o pseudônimo Zeca Patafufo, no qual o personagem Adamastor Ferrão Bravo adverte: “Vão agigantar tudo pela propaganda. Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imanta­da, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista; via nos inten­tos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza apavo­rante, a construção da utopia socialista dos “amanhãs que cantam”; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores”. Aconteceu lá atrás, poderá suceder de novo lá na frente.

Boicote a governos conservadores. Não apenas a governos, também a movimentos que procurem fazer frente à investida revolucionária haveria oposição da administração Joe Biden. Governos de direita serão boicotados, em especial na Europa e na América Latina, com bafejo à oposição interna de esquerda. Outro ponto provável, a agenda chamada “social” terá mais virulenta aplicação. Social aqui significa estimular a desagregação da sociedade com fortalecimento de movimentos LGBT, ideologia do gênero, liberalização ainda maior do aborto, entre outros. Pois Joe Biden vencerá à frente de uma coligação que incluirá radicais como os que agora estão derrubando estátuas ▬ a de são Junípero Serra (1713-784) foi derrubada, arrastada, chutada, cuspida, a face pintada de vermelho. Odiaram o missionário franciscano, contas feitas, por pregar religião e trazer civilização à Califórnia. Sintoma gritante de que programas destruidores serão impostos de forma intolerante. Biden, no primeiro mandato provavelmente poderá indicar dois juízes para a Corte Suprema, tingindo de maior coloração revolucionária a hermenêutica constitucional nos Estados Unidos. Gravíssimo.

Resistência, reação, reconstrução. Para as forças conservadoras, se as perspectivas aqui rabiscadas se realizarem no todo ou em parte, serão anos de resistência, reação (contra o “reset”) e reconstrução. Importa lembrar, para um movimento muitas vezes mais vale a legenda que dele evola que a realidade que expressa. Para o retorno triunfante (ou, pelo menos, exitoso) preservar a aura, a legenda, mais caseiramente, o bom nome, é fundamental. A reconstrução será favorecida se ao conservadorismo estiverem ligadas as noções de ordem, razoabilidade, senso de proporção, limpeza ética, religiosidade. Tudo será mais difícil se no espírito público aos grupos conservadores, no poder ou fora dele, por meio de campanhas conduzidas de forma eficaz ficarem correntemente associadas as pechas da irreflexão, irresponsabilidade e insensibilidade no enfrentamento da pandemia, para dar um exemplo. Mais ainda, corrupção e falta de escrúpulos. Como infelizmente se deu após o caso Dreyfus, parte da reconstrução poderia trabalhar sobre alicerces corroídos. Em resumo, o que acontecer agora poderá determinar ou limitar condutas nos previsíveis períodos de resistência, reação e reconstrução. E será utilizado implacavelmente por forças revolucionárias para sufocar quaisquer movimentos que se oponham a seus objetivos. Será como agora: hoje é comum líderes da esquerda de forma inescrupulosa utilizarem os labéus fascista, nazista, neonazista, neofacista para manchar reputações de oposicionistas, não importa a doutrina que esposem e a conduta que tenham.

Circunspecção. Fui pessimista? Espero que não. Olhemos ao redor. Foram simples conjeturas, feitas com intenção de ajudar a lutar num futuro que pode ser difícil. Dizia o professor Plinio Corrêa de Oliveira, não sou otimista, não me vejo como pessimista. Considerava-se um pessimólogo. Alguns de seus comentários: “[Sou] consciente de que o péssimo, em nossos dias, acontece com relativa frequência. É a atitude de quem se coloca diante do pior, para construir sua previsão, para poder enfrentá-lo”

Para poder enfrentá-lo, se acontecer. E aí sem ilusões, nem a de ter avisado. Tenho presente a “boutade” de Agripino Grieco: “O pior dos erros é acertar sozinho contra muita gente”.


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