sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Tem uma pedra no caminho


Tem uma pedra no caminho

Péricles Capanema

Tem uma pedra no meio do caminho. Drummond ▬ que aliás qualificou o verso famoso de “texto insignificante, um jogo monótono” ▬ na verdade escreveu “tinha uma pedra no meio do caminho”. Podia ser que já não mais lá estivesse. Eu, por meu lado, não estou tratando do passado, refiro-me a presente candente, agora tem uma pedra grande no meio do caminho. Trata-se de tirá-la da frente.

Vamos aos fatos. O dr. Salim Mattar, secretário-especial de Desestatização e Desinvestimento, em 14 de janeiro afirmou, ao longo de 2020 o governo pretende arrecadar com privatizações, vendendo uns 300 ativos, em torno de R$150 bilhões. Aplausos, o caminho para a prosperidade passa pela desestatização; de outro modo, pela privatização.

Informou a mais o dirigente, a Caixa, o Banco do Brasil e a Petrobrás não serão tocados. Os Correios ficaram para fins de 2021. Anunciou ainda, a maior parte do dinheiro arrecadado virá de desinvestimento (vendas) no sistema Eletrobrás. Em suma, enorme programa de privatização em curso; para torná-lo mais ágil serão encaminhados projetos de lei à Câmara dos Deputados, asseverou o dr. Salim.

Repito o que escrevi, para mim, em princípio, quanto mais ampla a privatização, melhor. O particular tem mais eficácia que o burocrata quando o assunto é contratar, comprar, vender e produzir. No fim, com a economia na mão de particulares e não do Estado, teremos produtividade maior; enfim, mais emprego e renda, o que favorece o bem comum. E que o Estado execute bem o que lhe é próprio, regulações, defesa, segurança, proteção da moeda, atenção especial aos mais carentes, alguma coisa mais, tem valioso e insubstituível papel. É a aplicação do princípio da subsidiariedade nas relações entre a sociedade e o Estado, entre o particular e o estatal. Paro, e até peço desculpas, estou me sentido um pouco o conselheiro Acácio.

Agora, com licença do Eça, dou as costas ao conselheiro, e trato de assuntos que não são (ou não parecem) óbvios, ênfase em matéria constitucional.

Ao longo de 2020, aposta minha, o leitor escutará até o fastio as seguintes expressões: empresários chineses, empresas chinesas, investimentos chineses, investidores chineses. Não acredite. É mentira deslavada. Melhor, fraude escandalosa para esconder a realidade (conhecida, aliás, do Brasil inteiro, mas misteriosamente silenciada). Vou explicar.

Dizia Talleyrand, “boutade” dele, uma a mais, a palavra nos foi dada para dissimular o pensamento (há variadas versões do que ele teria de fato afirmado, todas em torno da ideia de que a palavra mais serviu para disfarçar do que para exprimi-lo). É o nosso caso, a dissimulação. Mais no ponto, dissimular para ocultar a verdade inteira.

Volto ao que dizia e explico. À vera, as empresas chinesas que investem no Brasil são na maioria esmagadora dos casos, para ser prudente, estatais chinesas ▬ dirigidas dos pés à cabeça, por dentro e por fora ▬ pelo governo chinês, o qual, por sua vez, não nos esqueçamos temos lá governo de partido único, é dirigido pelo Partido Comunista Chinês (PCC). Os empresários chineses que transitam no Brasil (conto da carochinha) são na verdade burocratas, membros bem vistos e bem vestidos do PCC, com cargos de direção nas estatais. Os tais investidores chineses que aplicam no Brasil, outro recurso ardiloso, na verdade não existem; é dinheiro posto aqui pelo governo chinês, dono das estatais.

Então, a bem da transparência, fica aqui a errata. Quando você ler empresas chinesas, leia empresas estatais chinesas. Quando ler, empresários chineses, leia burocratas chineses. Quando ler investidores chineses, leia aplicações do governo comunista chinês via estatais. Quando ler investimentos chineses, leia aplicações do governo chinês, dirigido pelo PCC. Não vai errar em, por baixo, 99,9% dos casos.

O que que estou bradando em cima dos tetos ▬ proclamai-o do alto dos telhados, obrigação evangélica (Mt 10, 27) ▬ é proibido divulgar desse jeito (mas todo mundo sabe que é assim). Todo mundo vai continuar a falar de empresários chineses, de investidores chineses, de capitais chineses, de empresas chinesas. Você, minha dica, aplique a errata, pois na prática está proibido mudar tal linguagem. De onde vem a proibição, que apunhala a realidade? Não sei. Mais, pedaço grande do programa de privatização brasileiro corre o risco de cair nas mãos de estatais chinesas (parte já caiu). Um exemplo entre dezenas, a imprensa nos últimos dias noticiou que a SABESP, 28 milhões de clientes, onde o governo tem 50,3% do capital votante, poderá ser vendida. A quem? Repito o que li: a empresários chineses, a empresas chinesas, a grupos chineses. Dissimulação. Qual a empresa interessada num negócio que pode chegar a R$40 bilhões ou mais? Só um nome, China Railway Construction Corporation, estatal chinesa. Privatização à brasileira.

Não sou constitucionalista e, por isso, solicito auxílio deles. Mas me surpreenderia se não estivéssemos diante da maior agressão à Constituição da história brasileira ▬ monstruosa, aberrante, silenciada e silenciosa.

Adiante, escrevendo preto sobre o branco. Comanda o artigo 173 da Constituição: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.

A exploração direta da atividade econômica pelo Estado se dá por meio de empresas públicas e empresas de economia mista (estatais). O Estado brasileiro está proibido de agir diretamente na esfera econômica salvo nos dois casos acima. Logo, seria aberrantemente ilegal que o Banco do Brasil, a Caixa, a Petrobrás, entre outros agentes econômicos, via de regra (sempre se pode pensar em pequenas exceções), participassem do processo de privatização. Seriam atos inconstitucionais, nulos.

Se ao Estado brasileiro é vedado participar do processo de privatização no Brasil, “a fortiori” os Estados estrangeiros estão impedidos de fazê-lo por meio de suas estatais. É absurdo, de fato, entre nós, muitas vezes, para privatizar, a propriedade sai das mãos do Estado brasileiro e vai para as mãos de Estado estrangeiro. Na prática, contudo, estamos tendo a presença gigantesca de estatais de outros países no processo de privatização do Brasil. E não só de estatais chinesas. Tais atos não foram nulos por inconstitucionais?

Quando você ler fundo soberano de tal país, entenda estatal de tal país, outra expressão para a errata. Vários fundos soberanos (estatais) estão ativos no Brasil, tentando aproveitar as oportunidades do processo de privatização. Um exemplo, poucos dias atrás, foi feita a concessão (uma forma de entrega à iniciativa privada) do trecho Piracicaba- Panorama. O consórcio vencedor, Consórcio Infraestrutura Brasil, é formado pelo fundo Pátria e pelo fundo soberano GIC (fundo soberano de Singapura). Foi a maior concessão até hoje feita. O GIC é uma estatal de Singapura. Vedado ao Estado brasileiro, mas permitido a Singapura, um Estado soberano? Pode?

Aqui está, tudo o indica, o argumento falacioso por trás dos investimentos de governos estrangeiros no Brasil: todas essas aplicações de capitais estão sendo abrigadas, por desídia e velhacaria (é impostura, e ela continua intacta) no artigo 172 da Constituição: “A lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos”.

Capital estrangeiro, o ponto. Mas não estamos diante apenas de capital estrangeiro, não estamos tratando apenas de investimentos estrangeiros. É falsidade ululante parar por aí. Vamos colar nos fatos. Estamos diante de capital estrangeiro estatal, óbvio ululante, para uma vez mais lembrar Nelson Rodrigues. São governos os seus proprietários. E nesse caso, vale o artigo 173: se há vedação constitucional para o Estado brasileiro estar presente, muito menos poderá o Estado estrangeiro investir por meio de empresas públicas, sociedades de economia mista ou fundos soberanos. Claro como água de pote.

Se assim não fosse, o Estado brasileiro na obediência ao artigo 172 não poderia ser proprietário por vedação constitucional, mas, por absurdo, a Constituição estimularia que, nas mesmas circunstâncias, Estados estrangeiros abocanhassem tais propriedades.

Não adianta chiar, estamos diante de problema constitucional grave, nulidade de atos há anos sucedendo no ordenamento jurídico nacional. Martelo, não estamos tratando de investimentos estrangeiros, é falsa a afirmação, estamos falando de investimentos estatais de Estados estrangeiros. Aqui está o problema.

O problema está aqui, mas não está só aqui. Vai mais longe. A atividade econômica no Brasil obedece a princípios, comanda o artigo 172, o primeiro dos quais (inciso I) é que não pode lesar a soberania nacional. Nem real, nem potencialmente. Pergunto, os investimentos maciços de estatais chinesas no Brasil que em nada, só por chacota, poderiam ser “imperativos de nossa segurança nacional” não ameaçam a segurança nacional? A presença crescente deles na infraestrutura tem “relevante interesse coletivo”? Ligarmos nossa economia, que passará a ter um de seus pontos nevrálgicos em Pequim, na sede do PCC, tão íntima e fortemente a um poder mundial imperialista e ditatorial em nada arranha a soberania? Poder que hoje, visto com simpatia pela esquerda interna entreguista, apoia ditaduras como Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Cuba. É nosso futuro, sem dúvida de retrocesso e atraso, adversário dos direitos humanos?

Um último ponto, a Constituição determina, artigo 172, a lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro. Fala em capitais privados, é claro; refere-se também a capitais públicos. É do interesse nacional termos gigantescas presenças na economia de Estados estrangeiros, em especial da China comunista?

Paro por aqui e faço convites cordiais. Os constitucionalistas precisam se pronunciar, também é imprescindível que falem os setores que por missão institucional ou presença na vida pública estão especialmente ligados à preservação e defesa da independência nacional, assim como de nossos interesses estratégicos. Tem uma pedra no meio do caminho. Uma, não; várias, grandes e cortantes.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A impostura continua intacta


A impostura continua intacta

Péricles Capanema

O Estadão, reportagem assinada por Fernanda Guimarães, noticiou com destaque em 6 de janeiro “Gigante chinesa XCMG abre banco no Brasil”. (A notícia de forma resumida voltou no dia seguinte). Colocou ainda no lead, enfatizando a importância do fato “esse é o primeiro banco do grupo XCMG em todo o mundo – nem mesmo na China o grupo possui uma instituição financeira”.

A informação minuciosa explica ainda que a XCMG (Xuzhou Construction Machinery Group) é um gigante de construção de máquinas para a engenharia civil. De fato, vendeu em torno de R$100 bilhões em 2019, verifiquei. Pelo volume anual, cerca de R$100 bilhões, fica claro, é um mastodonte econômico e terá condições de expandir rapidamente o banco que acaba de inaugurar no Brasil.

Wang Min, presidente da XCMG declarou em São Paulo que o objetivo de abrir um banco no Brasil é em especial ajudar as relações econômicas com a China e facilitar a aplicação de capitais chineses no Brasil. A XCMG, que já é proprietária de fábrica de máquinas no sul de Minas, capacidade de 7 mil máquinas anuais, entre as quais caminhões-guindaste, motoniveladoras, escavadeiras.

Roberto Carlos Pontes, contratado para vice-presidente do banco, declarou na mesma entrevista que o novo banco irá procurar clientes e revendedores da XCMG no Brasil. Também irá atrás de empresas chinesas que operam no Brasil e as que aqui irão se instalar. Observou: “Por conta do ciclo econômico no País e o programa de concessões e privatizações, novos entrantes chineses devem chegar ao Brasil". Fica a nota, vão colocar foco especial no programa de concessões (que tem muito de privatização) e no programa de privatizações.

Sobre a atuação do novo banco chinês, Davi Wu, sócio-diretor da prática Chinesa da KPMG no Brasil, crê que o ciclo dos investimentos chineses no Brasil deverá continuar intenso, por volta de R$1 trilhão nos próximos 20 anos.

A reportagem nota que o banco da XCMG não é o primeiro banco chinês no Brasil. O China Construction Bank (CCB) em 2013 comprou o controle do então BicBanco. E em 2015 o Bank of Communications comprou 80% do BBM S. A.

Agora, complementarei com informações que não constam da reportagem (nenhuma alusão, espantoso) e nem do que vem sendo noticiado e pude compulsar. A XCMG é estatal chinesa. O banco a ser aberto no Brasil será um banco estatal chinês. O China Construction Bank, o segundo banco citado é estatal chinesa. O Bank of Communications é estatal chinesa. Provavelmente o dinheiro aplicado aqui por meio de tais instituições financeiras em programas de concessões e privatização será de propriedade de estatais chinesas. Vou repetir o óbvio: uma estatal chinesa é dirigida pelo governo. O governo é dirigido pelo Partido Comunista Chinês. E vou repetir também, o que para muitos ainda não é óbvio: no Brasil é virtualmente proibido informar o óbvio a respeito. A casa cai.

Volto-me agora para a Constituição Federal. O artigo 170 (consta do Título VII e trata dos princípios gerais da ordem econômica) enumera como primeiro deles a soberania nacional. Não ameaça a soberania nacional pelo menos potencialmente que um naco grande da economia brasileira seja de propriedade e dirigido por um governo estrangeiro imperialista e ditatorial? Não nos encheram os ouvidos com os tais setores estratégicos? Falamos aqui em especial de infraestrutura e área financeira. Deixaram de valer? Era pura balela de desocupados meio abitolados, que é preciso agora fingir que nunca foram divulgados como grandes achados?

Vou para o artigo 171: “A lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro”. Está conforme o interesse nacional que boa parte do capital estrangeiro aqui aplicado (somas gigantescas) seja de governos estrangeiros imperialistas e ditatoriais? Dirigido por potência estrangeira suas ações favorecerão a ela ou ao interesse do Brasil? Ficou proibido tocar no tema e pedir que seja debatido?

Pulo para o artigo 173: “A exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. O artigo, em Constituição estatizante, reflete a doutrina de que, via de regra, o Estado, no âmbito econômico, deve se limitar a papel regulador e suplementar. Vamos tratar de sua função suplementar: o Estado só pode agir diretamente no âmbito econômico por razões de segurança nacional ou relevante interesse coletivo. Se vale para o Estado brasileiro, com maior razão, vale para Estado estrangeiro. Quais as razões de segurança nacional para o Estado chinês aplicar tanto dinheiro no Brasil, tornando-se dono de parte da economia? Qual o interesse coletivo relevante que justifica o controle pelo Estado chinês, mediante compra e vencimento de concorrências (investimentos maciços), de parte da infraestrutura e, no caso, da área financeira? Obrigações de reciprocidade e isonomia? Haveria no caso paralelismo efetivo?

Sei, levantei questões pela rama, não as estou solucionando. A resolução demandaria rios de tinta. Mas o mero fato de levantá-las, passo inicial da caminhada, já aponta para começo de solução. E as suscitei porque creio, ou estou muito errado ou estamos diante de graves ofensas à Constituição.

Sei, ninguém tratou delas antes (pelo menos não vi). Sempre tem a primeira vez. Convido então os constitucionalistas: estudem por inteiro a questão, reflitam, discutam. É depois, para esclarecimento da opinião pública, o caso é delicado, opinem com prudência e doigté, que sejam palavras embebidas do senso agudo dos interesses brasileiros. Quem sabe, avanço, caberia aqui uma como que, por analogia, modulação de efeitos nas soluções aventadas.

Só peço uma coisa: objetividade, nunca esbofetear a lei maior. E já aviso, a patrulha sairá dos gonzos, já que é tema proibido. Vai atacar furiosamente. Em resumo, continua intacta a impostura. Em espantoso retrocesso, o garrote vil afoga na garganta, mesmo dos mais lúcidos e informados, as palavras de previsão e alarma.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

A última moda


A última moda

Péricles Capanema

Recebi de amigo próximo, vive há décadas em Paris, artigo publicado pelo Figaro em 30 de dezembro último. É espantoso o que relata. O autor, Olivier Babeau, intelectual público, tem intensa atuação na França, preside instituição lá ativa, a Sapiens. Título do chocante artigo: “O novo projeto coletivo dos ocidentais: desaparecer sem deixar traços.”

O articulista comenta de início características do que chama o novo mobiliário urbano de Paris. Mais precisamente, alude a bancos, em geral bancos de praça, que estão sendo colocados na que outrora foi chamada “Cidade Luz”, ou seja, cidade da inteligência e da cultura. Chama a atenção, não são sendo fixados os tradicionais bancos de praças e de outros lugares públicos que procuravam aliar conforto, durabilidade, economicidade e beleza. Não são duráveis, não são confortáveis, são feios, não sei se caros ou baratos. O novo: troncos de árvores (pior ainda, o francês é laids bouts de bois ▬ pedaços de madeira feios). Babeau julga que durarão dois ou três anos, quando muito; apodrecerão.

Erro do projetista? Disparate de administrador? Nada disso, é de caso pensado, decorrem da filosofia ecológica (ou ambientalista) tinindo de nova na divulgação propagandística (de fato, em círculos da intelligentsia já é velhota), afirma o autor ▬ demonstra. Ele lembra realidades conhecidas de todos nós. Foi até agora característica do homem civilizado o desejo de se perpetuar. A perenidade se dava nos descendentes ou nas obras deixadas. Dante se perpetuou com a “Divina Comédia”, Luiz XIV com Versalhes, são Bento pela fundação dos beneditinos, Vasco da Gama por ter encontrado o caminho marítimo para as Índias. E assim vai, em enumeração sem fim. O homem quer deixar sua marca, traços, que perenizem sua lembrança depois do falecimento.

Agora, alguns pontos da doutrina ambientalista denunciada pelo articulista. Somos seres da natureza, devemos agir como tais. O animal não deixa traços. A árvore quando tomba, não deixa traços. Todos se transformam em nutrientes de novos seres. O homem precisa agir de forma a não deixar traços, abolir até o fim as marcas de civilização que vem construindo há milênios. Tal doutrina leva adiante, até seu extremo, a tese de Rousseau: “o homem é bom, a sociedade o corrompe”. A natureza é boa, o homem a agride, corrompe e ameaça. É como um vírus. Trata-se de “tornar selvagem o mundo que o homem teve tanto trabalho em civilizar”.

O cidadão do século XXI, o bom, não quer conquistar nada. Quer fazer desaparecer os traços do homem. O melhor, o vírus ser extinto. A última moda (em francês, no texto, la dernière trouvaille, a última descoberta, o último achado) é acabar com a cremação de cadáveres, que vem substituindo o enterro há anos. O túmulo, o monumento no túmulo, palavras gravadas, representam formas de perenização. A cremação acaba com tudo isso, resta uma urna de cinzas.

Para os ambientalistas dessa última nouvelle vague ainda é um último respiro da ideia abjeta da perenização. Fora com a cremação, não podemos deixar traços, a última moda é a compostagem. Como se faz com os animais e as plantas, transformam-se em nutrientes para a natureza, a nova divindade, Gaia. Então, por coerência, o cadáver também deve ser destinado à compostagem. Nada de enterro, nada de cremação. Compostagem.

Olivier Babeau reduz a questão a “projeto coletivo dos ocidentais”, “cansados da prosperidade e da paz”. Ainda não seria universal. E conclui lembrando que existem povos “menos depressivos” que querem deixar sua marca na terra. É alusão em especial aos chineses. A conquista por eles do Ocidente se tornará mais fácil se tais doutrinas continuam a prosperar.

Agora, a minha conclusão. Faz tempo que repito, um dos direitos fundamentais do homem, para ser colocado em paralelo com o direito à dignidade e à liberdade (entre outros), é o direito à plenitude. Ninguém trata dele. Em sentido contrário, todos falam no direito à igualdade, e está correto, desde que entendida no sentido aristoteliano, de igualdade proporcional; ou, em outra formulação, desigualdades harmônicas.

Volto ao direito à plenitude. O homem nasce com potencialidades as mais variadas, infelizmente pouquíssimos as desenvolvem de forma adequada. De longe, mas muito de longe, é o maior desperdício de todas as civilizações. À vera, em geral temos quadro melancólicos: desenvolvimento raquítico das potencialidades de todos, o que causa infelicidades ao portador delas e prejuízos ao bem comum.

Adiante. É realidade silenciada, fácil conjeturar o motivo. As potencialidades humanas são as mais variadas. Afirmar que há um direito fundamental de cada um de desenvolvê-las amplamente equivale a afirmar que a igualdade (tal qual concebida pelas correntes revolucionárias) agride direito humano básico. De fato, promover o igualitarismo, inibidor da floração das diferentes potencialidades, é adotar a opção preferencial pela atrofia. Por isso publiquei há mais de ano historieta irônica, que buscava ser leve, mas de fato denúncia, sob o título “Brigo pelos homens atrofiados”, com pseudônimo, Zeca Patafufo. Um personagem do conto, Yusuf, em certo momento esclarece: “Seres humanos estiolados são o barro da sociedade igualitária. No choque da igualdade, amigada à atrofia, de uma banda, contra, da outra, a floração das mais variadas plenitudes ligadas às diferenciações, tenho lado: brigo feio pelos homens atrofiados”. Repito e grito dos tetos: existe um direito humano silenciado e perseguido: o direito à plenitude. E ele está irmanado de laços fortíssimos com o princípio da subsidiariedade, esteio de qualquer sociedade que o proteja.

O artigo “O novo projeto coletivo dos ocidentais: desaparecer sem deixar traços” mostra que já surgem com vigorosa força publicitária no centro do mundo civilizado correntes que levam a opção preferencial pela atrofia a seu último desenvolvimento lógico: desaparecer sem deixar traços; apagar e sumir. Daqui a pouco, sei lá eu quanto tempo, se não houver enérgico sobressalto do público, como efeito da maior influência de tais correntes, a cremação, ainda um restinho do desejo de perenização, vai ficar obsoleta. A compostagem dos cadáveres hoje já caminha para ser a última moda.


quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

O senso dos imponderáveis


O senso dos imponderáveis

Péricles Capanema

O evangelho do domingo 29 de dezembro relata a apresentação do Menino Jesus no Templo, levado por são José e Nossa Senhora para obedecer à lei de Moisés que determinava, o primogênito do sexo masculino devia ser consagrado à Deus. Chegando ao local da consagração, encontraram Simeão, homem virtuoso, já no ocaso da vida.

Simeão é o personagem menor do relato. O que é ele diante de Jesus Cristo, Nossa Senhora e são José? De outro lado, pela intervenção que ali teve, aparece em destaque na descrição e depois some para sempre.

À medida que o sacerdote lia o Evangelho, provocadas pelo texto carregado de significados, em cambulhada sugestivas miscelâneas de imagens e considerações, tendo como ponto de partida o velho Simeão, atropelavam-se no meu espírito. Confusões agradáveis à maneira de quarto de brinquedos de criança; quando tivesse tempo, eu as arrumaria no espírito ▬ ou nunca.

Imaginava o templo meio vazio, frescor, uma ou outra pessoa passando por ali, lá na frente um casal jovem, pobre (estavam oferecendo o par de rolinhas prescrito pela lei mosaica), certo desinteresse do sacerdote. Súbito, um ancião (“logo que viu o Menino e os Pais, foi tomado por uma graça”) segura Jesus nos braços (“seu pai e sua mãe estavam admirados”) e inicia uma espécie de proclamação, misto de ação de graças, louvor e adoração: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra. Porque os meus olhos viram a vossa salvação que preparastes diante de todos os povos, como luz para iluminar as nações, e para a glória de vosso povo de Israel”. Após falar da glória do Filho, dirigiu-se a Nossa Senhora, era normal reverberarem nela os esplendores previstos. Vieram, contudo, de natureza inesperada: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma.”. A grande surpresa: uma espada atravessará a alma da mãe. Outra: sinal de contradição. Mais uma: causa de queda e soerguimento para muitos. Outra ainda: sua conduta levaria à revelação de pensamentos ocultos.

Simeão se exprimia como profeta visitado por revelações e graças; inspirado, falava como preconizador do Messias. Mas ali havia também um homem de Deus com enorme senso dos imponderáveis sobrenaturais, pensava eu. Sentia a grandeza da cena que via e da qual participava, percebia realidades difíceis ou até impossíveis de definir. Não se caminha nas trilhas da graça sem o senso das realidades imponderáveis, sem saber sentir o dedo de Deus, o sorriso de Nossa Senhora, impossíveis tantas vezes de expor por palavras.

Adiante, não se caminha na vida sem o senso dos imponderáveis. E eles são das mais diversas naturezas. Há pessoas com senso dos imponderáveis artísticos. De outro lado, há dirigentes com finíssimo senso dos imponderáveis políticos. Um comentário, um gesto, um aceno de cabeça, e eles já sentem por onde os acontecimentos irão. É comum, esposas de políticos os orientam por meio de comentários passageiros, cuja raiz, funda no espírito delas, brota de inexplícitas associações de imagens, pequenos gestos de cabeças ou de mãos, elogios discretos ou comentários depreciativos leves, climas de reuniões e encontros fortuitos; até odores, cores e sabores, cada coisa registrada e associada a outras de forma subconsciente. É um gigantesco acervo de observações e impressões inexplícito, mas interrelacionado e ativo. Que a leva a sugerir caminhos vitoriosos e a impedir atalhos de derrota. Podíamos multiplicar, senso dos imponderáveis para negócios, para pesquisas, atitudes de mães de famílias na condução de seu mundo, tanta coisa mais.

Esburaquei a memória. Talvez a expressão senso dos imponderáveis, que hoje, julgo, pouco a pouco começa a entrar na linguagem comum, tenha sido criada ou pelo menos posta em ampla circulação nos círculos que frequentava e nos escritos pelo prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Nunca vi ninguém que a empregasse com mais talento e adequação. De fato, nunca vi ninguém senão ele a utilizar (também usada pelos que com ele conviviam). É representa, na esfera cultural, grande avanço civilizatório, à vera constitui uma de suas preciosas contribuições para o enriquecimento das almas. Quem não vê, amplia os espaços de conhecimento da realidade, chamando a atenção para desvãos dela, tanas vezes esquecidos e mesmo até então desconhecidos, ainda que determinantes.

Concluo. Matutava eu durante a leitura do Evangelho, o que acima vai e ainda outras coisas. A origem dos pensamentos, como disse, foi que Deus não teria escolhido Simeão para pregoeiro de tantas verdades, se aquele filho de Abraão não tivesse sido antes distinguido com forte senso dos imponderáveis sobrenaturais. Rezei a ele, obtivesse de Nossa Senhora para mim o fortalecimento de meus tísicos sensos dos imponderáveis; todos eles, são bússolas, não importa o campo. Rezem também.

Razoabilidade e proporcionalidade


Razoabilidade e proporcionalidade

Péricles Capanema

Ao aplicar a legislação, deve o juiz brasileiro ter em vista a razoabilidade e a proporcionalidade. Alguns autores identificam as duas exigências; outros, não. Para nossos objetivos, não importa a discussão. Existe ainda o bom senso, um pouco mais amplo, engloba as duas premissas da decisão do magistrado, acima referidas.

Não só o juiz precisa se guiar pela razoabilidade e proporcionalidade, também o administrador público; de fato, todas a conduta nossa deve ser embebida de razoabilidade e proporcionalidade. Em duas palavras, o ato humano, para contribuir para a perfeição pessoal ou social, necessita ser pautado pela razoabilidade e proporcionalidade.

De forma obsessiva essas duas premissas me assaltaram, enquanto lconhecia pela leitura da imprensa diária a história da elefanta Ramba. Para quem não sabe, e é a grossa maioria, a elefanta Ramba morreu em 26 de dezembro de 2019. Tinha entre 53 e 60 anos, pesava em torno de 3,6 toneladas, era de espécie asiática ▬ a espécie africana é maior. Ramba, que sofria há muitos anos, mais de sete, de problemas renais, viveu anos no Chile e Argentina, foi atração circense e terminou os dias no Santuário de Elefantes Brasil, onde chegou em outubro, localizado na Chapada dos Guimarães, próxima a Cuiabá. Comunicado divulgado pela tal instituição dizia: “Na Chapada dos Guimarães, Ramba conviveu nos últimos dois meses com as demais elefantas Guida, Lady, Maia e Rana. O santuário levou os animais para se despedirem da companheira.” Faz sentido, o santuário é grande, 1.100 hectares, Ramba morreu de repente e então foram juntadas as outras para a tal “despedida”. Divulgou ainda o santuário: “"Já sabíamos que cada dia de Ramba, no Santuário, seria uma dádiva, não apenas para ela, mas para todos que tiveram a oportunidade de conhecê-la. Todos foram, de alguma forma, tocados por ela". Como se pode ver, para as quatro outras elefantas e para os funcionários, o convívio com Ramba foi dádiva diária durante uns 60 dias.

Razoável? Proporcional? Mais alguns dados para o juízo do leitor relativos à última parte da vida de Ramba. Em 15 de outubro por avião cargueiro, em contêiner de 6 toneladas, Ramba, já então gravemente doente, foi embarcada no aeroporto de Santiago rumo a Viracopos. A tal caixa (ou contêiner) tinha água, alimentação, temperatura controlada, câmeras internas de monitoramento. Scott Blais, presidente do santuário, e um veterinário viajaram junto. A operação de desembarque mobilizou 30 pessoas.

A elefanta foi então embarcada em um comboio rodoviário, percurso em torno de 1,5 mil quilômetros, 30 horas, até o santuário. Tal viagem foi acompanhada por equipe multidisciplinar (profissionais de várias áreas). Lá, o bicho teve oportunidade de escolher entre ficar isolada ou o convívio de duas outras elefantas ▬ Maia e Rana. As notícias que compulsei não informam qual foi a escolha de Ramba.

Razoável? Proporcional? Não eram apenas as duas palavras, razoabilidade e proporcionalidade, que me vinham à mente. Vinha-me também uma pergunta. Qual foi o custo da operação de trazer uma elefanta de uns 60 anos, doente, de Santiago até a Chapada dos Guimarães? De fato, ela estava em Rancagua, a 90 quilômetros da capital chilena e levá-la até o aeroporto representou gasto extra expressivo. Em Rancagua desde 2011, não fazia nada, só pastava.

A voluntária Valéria Mindel enumerou duas razões para justificar os gastos: em Rancagua a elefanta sofria com o rigor do inverno chileno e com a solidão. Solidão e frio foram as razões para o enorme traslado, parece. Santo Deus! Informam ainda as notícias, o dinheiro foi doado por empresas e particulares, obtido em especial nos Estados Unidos. “Houve grande aceitação”. De qualquer maneira, não foi barato.

Já pensaram quantas crianças brasileiras, abandonadas, fruto de lares destroçados, agora passando necessidades prementes de toda ordem, poderiam ter sido atendidas com o dinheiro consumido (ia dizer torrado, mas terminei escolhendo consumido para evitar críticas ácidas) nesse show despropositado de proteção da vida animal? Nem precisava sacrificar a elefanta doente, como se faz todos os dias em casos parecidos, milhares de vezes, mundo afora, até por organizações que promovem o bem-estar animal. Bastaria que o paquiderme continuasse onde estava desde 2011, Rancagua, pastando placidamente. E. de quando em vez, que fosse atendida por veterinário local.

Mesmo sem fazer pesquisas na rede, vou arriscar: ninguém criticou o disparate evidente de todo o caso. E acrescento, ficarei feliz se for desmentido. A mais importante razão do silêncio a respeito, noto, é que não é politicamente correto criticar iniciativas assim, mesmo as mais disparatadas. A patrulha não deixa, não tolera críticas, marca cerrado. Com efeito, não se pode criticar causas na moda (uma delas é igualar animais com humanos), tantas vezes infecionadas de espírito revolucionário, caras a movimentos mundiais de enorme força publicitária. O fato aqui relatado é exemplificativo, apenas um sintoma, ainda que revelador, do retrocesso que nos espera, se tais forças triunfarem. Outro título para este artigo: O rei está nu. O autor, claro, faz o papel do menino que exprimiu o óbvio, percebido por todos.


Fazer as coisas pela metade


Fazer as coisas pela metade

Péricles Capanema

Escrevo em 29 de dezembro, hora da retrospectiva e da prospectiva. Resolvi fazer as duas em uma, assunto único que possa permanecer lembrança útil, singela embora. E o que de imediato me veio à cabeça que poderia unir o olhar para o finado 2019 e a conjetura de 2020? Pulou na frente, de forma inesperada, um traço bem nosso: o gosto de fazer as coisas pela metade.

Os dois anos terão isso em comum, infelizmente. Um, já foi, 2019, agastou-me à beça o procedimento rotineiro de não ir até o fim; o outro está aí, 2020, só milagre para não acontecer o mesmo. E de antemão advirto, não o digo por pessimismo, mas por realismo, para tentar ajudar, é tentativa de diminuir efeitos de mau hábito. Todo mundo viu, fizemos as coisas (as boas) pela metade em 2019, vamos fazer pela metade as coisas (boas) em 2020. Alguém acha que vou errar? Deus queira.

Avanço. Fazer as coisas pela metade, vezo de séculos, é dos nossos numerosos tumores de estimação. Constituiria, aliás, importante avanço civilizatório do Brasil a convicção entranhada que é preciso acabar com tal hábito. Aqui deixo uma das razões da usança destruidora, quem sabe a de maior relevância. Gilberto Amado repetia, ficava animado nas raras ocasiões que encontrava um brasileiro capaz de ligar causa e efeito. Quando for generalizado comportamento social entre nós ligar causa e efeito, sumirão muitos de nossos problemas.

Vamos a 2019. Foi feita a reforma da previdência, trombeteada com boas razões como início do saneamento das contas públicas e um dos marcos, talvez o principal, de nossa eventual prosperidade futura. Economistas sérios advertem, falta muita coisa, é imprescindível já agora pensar nelas. De saída, falta a reforma previdenciária nos Estados e municípios (a tal PEC paralela). Seu efeito, por enquanto, será limitado, ainda que acenda esperanças justificadas. A Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão do Senado Federal, observa: “A reforma da previdência não resolve o problema fiscal do país, mas dá fôlego. No máximo, permite que a despesa previdenciária deixe de crescer em relação ao PIB nos próximos anos”. O que lamento, poucos falam em completar o trabalho. Já está bom ter feito as coisas pela metade. Se não for enfrentado o restante, lá na frente o mesmo problema explodirá de novo.

Privatização, outra política feita pela metade. Há pouco mais de ano, falava-se no trilhão que entraria no caixa do governo com a venda das estatais deficitárias. Sumiram os números, aqui e ali o dr. Salim Mattar faz discretas advertências, limitado pelo cargo oficial, sobre obstáculos que tem encontrado.

Outros baldes de água fria. Fontes do governo informam, a TV Brasil não vai mais ser privatizada. A VALEC, idem. Petrobrás, Caixa e Banco do Brasil, nem se fala, são totens que permanecerão imunes a qualquer privatização. A economista Elena Landau, de posições às vezes censuráveis em outros campos, é no âmbito econômico bom exemplo da angústia que se generaliza entre correntes contrárias ao enorme papel do Estado na economia brasileira (tumor de estimação é coisa séria, mesmo que pese feio no cangote do povo). Advertiu ela em artigo no Estadão, repetindo o que vem dizendo com eco crescente em outros órgãos de divulgação: “Trabalhadores continuam sem liberdade para escolher onde investir seu FGTS. A abertura do mercado de gás não veio. A Petrobrás segue monopolista em várias áreas, celebrou contrato de gás com distribuidoras para 2020 impondo aumento de quase 20% em lugar da prometida queda de 40%.  As estatais criadas pelo PT estão vivas. O trilhão de reais com a venda de estatais e mais outro trilhão com a venda de imóveis não aconteceram, nem virão. A prometida privatização ampla, geral e irrestrita se resumiu a uma política de desinvestimentos das estatais. Das 17 empresas listadas formalmente no programa, nenhuma está pronta para ser vendida, e a maioria delas já está incluída desde o governo Temer. As mais importantes são Telebrás, Casa da Moeda e Correios, de vendas e valores duvidosos, ao lado de mais de uma dezena de empresas que não vão gerar ganho algum. Deveriam ser fechadas. Nada de Petrobrás, Banco do Brasil ou Caixa. A empresa do trem-bala, a EPL, vai se juntar com Infraero e Valec e formar uma grande estatal de logística. Para facilitar a criação dessa nova e poderosa estatal, outra foi criada: a NAV. Se Bolsonaro não abraçar a privatização, serão mais três anos de vendas no varejo. Acreditou no liberalismo deste governo quem quis ser enganado”. Não custa recordar, boa parte dos ativos das estatais, vendidos em programa de privatização, caíram e estão caindo nas mãos de estatais chinesas (do Partido Comunista Chinês, para ser direto).

Falava de uma economista, lembro outro, Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central. Também no Estadão, ele constatou quadro preocupante, decorrência de nosso vezo de fazer as cosas pela metade. “Em 1980, o Brasil tinha renda per capita equivalente a cerca de 40% da renda per capita dos EUA. Hoje é 25%. A pergunta é: quanto é preciso crescer a cada ano, de 2020 a 2080, para chegar lá com os mesmos 40% de um século antes? Resposta: 2,5% ao ano mais ou menos, com hipóteses razoáveis sobre população, sobre os EUA e a produtividade. Ou seja, 2,5% até 2080 assegura que não vamos perder este século”. Em 2080, com tal crescimento anual chegaríamos a ter 40% da renda per capita do norte-americano, índice que tínhamos em 1980. E estamos crescendo 0,5%, 1% ao ano, quando muito.

O que aqui enfatizo? O estatismo faz parte dos nossos tumores de estimação, entranhou de alto a baixo. Outro, a reforma agrária. São enraizadas rotinas obscurantistas na sociedade e no Estado, pois fogem da luz da realidade, impedem o crescimento natural do Brasil ao sugar pelas décadas afora amazônicas potencialidades do organismo social. Hoje pus no pelourinho outra característica, o gosto de fazer as coisas pela metade. Tudo isso asfixia a inovação, intoxica a iniciativa, dificulta a criatividade, mina o trabalho, constituem fortes amarras no atraso.

Já falei disso, mas a repetição é necessária; reforma agrária e estatismo são componentes importantes da opção preferencial pela atrofia, vitoriosa em Cuba, na Venezuela, nos países em que a esquerda triunfou por muito tempo. Temos décadas de aplicação da função social às avessas e de consequente crueldade com os pobres. Estes, como reação louvável e explicável, fogem espavoridos de tais países e procuram entrar desesperadamente no país que, apesar de todos os defeitos que lhe possam ser apontados, nunca fez a opção preferencial pela atrofia: os Estados Unidos da América.