sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

A última moda


A última moda

Péricles Capanema

Recebi de amigo próximo, vive há décadas em Paris, artigo publicado pelo Figaro em 30 de dezembro último. É espantoso o que relata. O autor, Olivier Babeau, intelectual público, tem intensa atuação na França, preside instituição lá ativa, a Sapiens. Título do chocante artigo: “O novo projeto coletivo dos ocidentais: desaparecer sem deixar traços.”

O articulista comenta de início características do que chama o novo mobiliário urbano de Paris. Mais precisamente, alude a bancos, em geral bancos de praça, que estão sendo colocados na que outrora foi chamada “Cidade Luz”, ou seja, cidade da inteligência e da cultura. Chama a atenção, não são sendo fixados os tradicionais bancos de praças e de outros lugares públicos que procuravam aliar conforto, durabilidade, economicidade e beleza. Não são duráveis, não são confortáveis, são feios, não sei se caros ou baratos. O novo: troncos de árvores (pior ainda, o francês é laids bouts de bois ▬ pedaços de madeira feios). Babeau julga que durarão dois ou três anos, quando muito; apodrecerão.

Erro do projetista? Disparate de administrador? Nada disso, é de caso pensado, decorrem da filosofia ecológica (ou ambientalista) tinindo de nova na divulgação propagandística (de fato, em círculos da intelligentsia já é velhota), afirma o autor ▬ demonstra. Ele lembra realidades conhecidas de todos nós. Foi até agora característica do homem civilizado o desejo de se perpetuar. A perenidade se dava nos descendentes ou nas obras deixadas. Dante se perpetuou com a “Divina Comédia”, Luiz XIV com Versalhes, são Bento pela fundação dos beneditinos, Vasco da Gama por ter encontrado o caminho marítimo para as Índias. E assim vai, em enumeração sem fim. O homem quer deixar sua marca, traços, que perenizem sua lembrança depois do falecimento.

Agora, alguns pontos da doutrina ambientalista denunciada pelo articulista. Somos seres da natureza, devemos agir como tais. O animal não deixa traços. A árvore quando tomba, não deixa traços. Todos se transformam em nutrientes de novos seres. O homem precisa agir de forma a não deixar traços, abolir até o fim as marcas de civilização que vem construindo há milênios. Tal doutrina leva adiante, até seu extremo, a tese de Rousseau: “o homem é bom, a sociedade o corrompe”. A natureza é boa, o homem a agride, corrompe e ameaça. É como um vírus. Trata-se de “tornar selvagem o mundo que o homem teve tanto trabalho em civilizar”.

O cidadão do século XXI, o bom, não quer conquistar nada. Quer fazer desaparecer os traços do homem. O melhor, o vírus ser extinto. A última moda (em francês, no texto, la dernière trouvaille, a última descoberta, o último achado) é acabar com a cremação de cadáveres, que vem substituindo o enterro há anos. O túmulo, o monumento no túmulo, palavras gravadas, representam formas de perenização. A cremação acaba com tudo isso, resta uma urna de cinzas.

Para os ambientalistas dessa última nouvelle vague ainda é um último respiro da ideia abjeta da perenização. Fora com a cremação, não podemos deixar traços, a última moda é a compostagem. Como se faz com os animais e as plantas, transformam-se em nutrientes para a natureza, a nova divindade, Gaia. Então, por coerência, o cadáver também deve ser destinado à compostagem. Nada de enterro, nada de cremação. Compostagem.

Olivier Babeau reduz a questão a “projeto coletivo dos ocidentais”, “cansados da prosperidade e da paz”. Ainda não seria universal. E conclui lembrando que existem povos “menos depressivos” que querem deixar sua marca na terra. É alusão em especial aos chineses. A conquista por eles do Ocidente se tornará mais fácil se tais doutrinas continuam a prosperar.

Agora, a minha conclusão. Faz tempo que repito, um dos direitos fundamentais do homem, para ser colocado em paralelo com o direito à dignidade e à liberdade (entre outros), é o direito à plenitude. Ninguém trata dele. Em sentido contrário, todos falam no direito à igualdade, e está correto, desde que entendida no sentido aristoteliano, de igualdade proporcional; ou, em outra formulação, desigualdades harmônicas.

Volto ao direito à plenitude. O homem nasce com potencialidades as mais variadas, infelizmente pouquíssimos as desenvolvem de forma adequada. De longe, mas muito de longe, é o maior desperdício de todas as civilizações. À vera, em geral temos quadro melancólicos: desenvolvimento raquítico das potencialidades de todos, o que causa infelicidades ao portador delas e prejuízos ao bem comum.

Adiante. É realidade silenciada, fácil conjeturar o motivo. As potencialidades humanas são as mais variadas. Afirmar que há um direito fundamental de cada um de desenvolvê-las amplamente equivale a afirmar que a igualdade (tal qual concebida pelas correntes revolucionárias) agride direito humano básico. De fato, promover o igualitarismo, inibidor da floração das diferentes potencialidades, é adotar a opção preferencial pela atrofia. Por isso publiquei há mais de ano historieta irônica, que buscava ser leve, mas de fato denúncia, sob o título “Brigo pelos homens atrofiados”, com pseudônimo, Zeca Patafufo. Um personagem do conto, Yusuf, em certo momento esclarece: “Seres humanos estiolados são o barro da sociedade igualitária. No choque da igualdade, amigada à atrofia, de uma banda, contra, da outra, a floração das mais variadas plenitudes ligadas às diferenciações, tenho lado: brigo feio pelos homens atrofiados”. Repito e grito dos tetos: existe um direito humano silenciado e perseguido: o direito à plenitude. E ele está irmanado de laços fortíssimos com o princípio da subsidiariedade, esteio de qualquer sociedade que o proteja.

O artigo “O novo projeto coletivo dos ocidentais: desaparecer sem deixar traços” mostra que já surgem com vigorosa força publicitária no centro do mundo civilizado correntes que levam a opção preferencial pela atrofia a seu último desenvolvimento lógico: desaparecer sem deixar traços; apagar e sumir. Daqui a pouco, sei lá eu quanto tempo, se não houver enérgico sobressalto do público, como efeito da maior influência de tais correntes, a cremação, ainda um restinho do desejo de perenização, vai ficar obsoleta. A compostagem dos cadáveres hoje já caminha para ser a última moda.


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