segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O óbvio que estava faltando

 

O óbvio que estava faltando

 

Péricles Capanema

 

Verdades simples. Vou tratar do Afeganistão, à vera, repetir informações e análises, parte delas roçando no óbvio. Objetivo, colocar na prateleira verdades simples, o óbvio ululante, o arroz com feijão. É comum, a ênfase nos primeiros princípios e nas primeiras constatações esclarece panoramas embaçados por excesso de análises entufadas. De onde virá o arroz com feijão? Em boa parte de fornecedor sabido, Henry Kissinger; a mercadoria está em artigo dele no “The Economist”, reproduzido no Estadão. Meu papel de momento é respigar ali; uma ou outra vez acrescentar pequenas observações. É pouco? Veremos. O leitor julgará.

 

Diplomata celebrado. Sei, Henry Kissinger será hoje desconhecido de muitos. Apresento-o. Nasceu na Alemanha (Fürth, na Baviera) em 1923 no seio de família judia da burguesia culta e remediada. Seu pai foi professor, sua mãe, mulher rica. Com o nazismo triunfante, a família fugiu para os Estados Unidos. Em 1943, aos 20 anos, obteve a cidadania norte-americana. Formou-se em Harvard, ali foi professor de destaque e já no governo Dwight Eisenhower (1953-1961) estava em Washington como conselheiro prestigiado de política exterior. No governo Richard Nixon (1969-1974) foi conselheiro de Segurança Nacional (1969-1974) e secretário de Estado (1973-1974). Continuou conselheiro de Segurança Nacional até 1975 e secretário de Estado até 1977 no governo Gerald Ford (1974-1977). Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1973. Embora com muitas posições controversas, sempre foi considerado dos maiores diplomatas dos Estados Unidos no século XX. Mais que diplomata, homem de Estado. Fora do governo se tornou intelectual público famanaz. Passo a uma segunda apresentação, também necessária, mas de gente daqui. Nelson Rodrigues (1912-1980), jornalista e escritor, foi frasista célebre. Duas delas cabem bem no texto: “óbvio ululante”; a outra, “só os profetas enxergam o óbvio”. É paradoxo de Nelson Rodrigues, mas evidencia como por vezes é difícil perceber o óbvio. O antigo professor de Harvard constatou o óbvio.

 

Não fugir das responsabilidades. Kissinger condena o isolacionismo e a recusa de agir segundo a missão natural de liderar o Ocidente, que os fatos, sempre guiados pela Providência, colocaram nas costas dos Estados Unidos. E assim vergasta o fracasso culposo: “não haverá no futuro imediato nenhum movimento estratégico dramático para compensar esse revés auto-infligido”. Aponta para a fuga do dever como um dos motivos determinantes da derrota: “A retirada incondicional dos Estados Unidos não elimina a insensibilidade e, sobretudo, a intempestividade da decisão de retirada. Por causa de suas capacidades e valores históricos, os Estados Unidos não podem escapar de serem omponente-chave da ordem internacional. Não pode evitá-lo apenas retirando-se”.

 

Razões do fracasso. O antigo secretário de Estado põe a nu ponto essencial. Foram aplicadas pelo governo dos Estados Unidos receitas políticas “prêt-à-porter” com inteiro descaso para enraizadas realidades sociais, o que trouxe resultados desastrosos: “Os americanos se convenceram de que, em última análise, o restabelecimento de bases terroristas só poderia ser evitado transformando o Afeganistão em Estado moderno com instituições democráticas e governo constitucional. Tal empreendimento jamais poderia ter um cronograma compatível com os processos políticos americanos. O Afeganistão nunca foi um Estado moderno. A construção de um Estado democrático moderno no Afeganistão implicaria décadas”. As análises apressadas e superficiais, prejudicadas tantas vezes por preconceitos, que não evitou fórmulas prontas, aplicadas a bemdizer emt odos os lugares, levaram ao fracasso estrondoso. Apesar da boa-vontade e da dinheirama.

 

Regionalismo, clãs, tribos. Kissinger propugna como medida prévia o estudo e reconhecimento das famílias, dos clãs, das etnias, das regiões, como realidades inafastáveis; mais ainda, naturais e em boa medida legítimas. Não aceita discutir com fatos, trabalhar dando as costas a eles. Deu exemplo. Preferiria que seu país imitasse a Inglaterra que reconheceu a existência de estruturas de poder baseadas no sangue, na família, na região. Daí decorreu uma política que deu certo na Índia e no Oriente Médio; “por um século, defender seus interesses, junto com apoiadores regionais”. Enfim, trabalhar lucidamente sem agredir realidades multisseculares, mas, pelo contrário, nelas se apoiar. “Essa alternativa nunca foi explorada”.

 

Exemplo dilacerante. Está atrás, Kissinger fez análise próxima aos fatos. Defendeu medidas de bom senso, infelizmente nunca aplicadas ao longo de vinte anos. E apenas respiguei parte pequena, o artigo é mais amplo. Dois pontos em especial que são o óbvio ululante, para lembrar Nelson Rodrigues. Apanhei ali, a bem dizer, (1) a fuga do dever e (2) a sujeição a fórmulas artificiais, de costas para a realidade. Deram em fracasso espantoso. Hoje, fatos passados, parecem óbvias as reflexões do antigo secretário de Estado. Não foram ▬ está nas palavras dele ▬ por vinte anos para sucessivas equipes que dirigiam a política exterior da maior potência da Terra. Na prática, desencadearam desacertos demolidores, falta de apoio das populações, generalização da corrupção, fortalecimento dos inimigos e, finalmente, a retirada humilhante. O impacto da retirada vexaminosa, cenas dilacerantes, trazem ao espírito a boutade de Nelson Rodrigues: “Só os profetas enxergam o óbvio”. Que a lição inarredável dos fatos sirva de exemplo.

domingo, 29 de agosto de 2021

Quem não deve, não teme

 

Quem não deve, não teme

 

Péricles Capanema

 

Uma pedra no caminho. Desde que assumiu a primeira magistratura, o presidente Joe Biden tem comandado intensa campanha contra a disseminação da COVID-19. Um dos aspectos desse empenho é estimular os esforços da comunidade científica para conhecer a origem dela. Duas linhas de suposições de momento presentam probabilidade: a variante que contaminou a humanidade veio de um animal, quem sabe o morcego, hospedeiro do coronavírus; ou, o vírus contaminador teve origem em um laboratório de onde terá escapado advertida ou inadvertidamente.

 

A busca da origem. A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem peritos pesquisando a origem da pandemia. O governo dos Estados Unidos também designou especialistas para tal trabalho e ainda direcionou esforços de sua comunidade de inteligência. É natural que os trabalhos tenham como foco a China, país de onde proveio a doença. Surge o problema, como a China é país de partido único, tem ditadura totalitária exercida com mão de ferro pelo Partido Comunista Chinês (PCC), tudo irá depender da boa vontade e cooperação do PCC. E, desde o início da pesquisa, o PCC [ou o governo chinês, a mesma coisa] não coopera, põe obstáculos às investigações a toda hora.

 

Quem não deve, não teme. Semanas atrás, o dr. Gauden Galea, representante da Organização Mundial de Saúde na China informou à imprensa que a OMS não havia sido convidada para participar da investigação nacional chinesa sobre as origens da COVID-19. De outro modo, o governo chinês excluiu a OMS da pesquisa. Por seu lado, meses atrás, o presidente Joe Biden concedeu 90 dias de prazo à comunidade de inteligência norte-americana para pesquisar as origens da COVID-19, com ou sem a cooperação do governo chinês. As autoridades em Pequim reagiram acidamente, afirmando que o governo dos Estados Unidos queria politizar o assunto. Zhao Lijian, porta-voz do ministério do Exterior da China declarou: “A procura das origens do COVID-19 é assunto científico sério e entretanto o governo dos Estados Unidos determinou aos serviços de inteligência que tenham papel determinante na pesquisa. Tal atitude prova que os fatos e a verdade são a última coisa com os quais se preocupam os Estados Unidos. Eles têm interesse zero na pesquisa científica, procuram apenas manipular politicamente o tema, procuram bodes expiatórios”. O bode expiatório, no caso, é claro, seria o governo chinês.

 

O relatório inconclusivo. O fato é que na última semana de agosto o presidente Joe Biden recebeu o relatório solicitado aos serviços de informação. O texto não é conclusivo sobre a origem do vírus; reitera ainda, o governo chinês não aceita cooperar com a pesquisa. E Pequim, para não deixar dúvida, reafirmou em 25 de agosto último que não permitirá pesquisas independentes e com total liberdade a respeito. Washington está certo que o governo chinês esconde dados. Um alto funcionário declarou à Newsweek: “O vírus teve origem na China e a China tem informações que não compartilha com o mundo o que conhece sobre sua origem e são dados de que necessitamos para evitar a próxima pandemia”.

 

Inconformidade de Joe Biden. Em 27 de agosto a Casa Branca divulgou comunicado a respeito do presidente dos Estados Unidos: “Recebi o relatório da comunidade de inteligência sobre as origens do COVID-19. Existe informação fundamental sobre as origens da pandemia na República Popular da China e desde o começo funcionários do governo têm trabalhado para evitar que investigadores internacionais e membros da comunidade mundial da saúde os conheçam. Até agora o governo chinês mantém a política de segurar informações e evitar a transparência. O mundo merece respostas e não descansarei até obtê-las. Os Estados Unidos continuarão trabalhando com parceiros de igual opinião no mundo inteiro e pressionarão o governo chinês para compartilhar informações e cooperar com os esforços da fase 2 da OMS. Precisamos ter em mãos total e transparente balanço da tragédia. Nada fora disso é aceitável”

 

Tensão Estados Unidos versus China. A posição firme do governo dos Estados Unidos prenuncia aumento de tensões entre os dois países, pois na presente situação é improvável o recuo do governo chinês. Firmeza aqui representa avanço, perspectivas menos sombrias, combate à pandemia casado coma defesa das liberdades. Abre esperanças.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Começou mais cedo que esperava

 

Começou mais cedo que esperava

 

Péricles Capanema

 

Os norte-americanos não fugirão da dor. Em 17 de agosto último postei no blog artigo intitulado “Saturação funesta”, análise primeira, no calor dos fatos, da retirada norte-americana do Afeganistão (está na rede). Nele afirmava eu no primeiro parágrafo para deixar bem claro: “Provocada pelo cansaço, a retirada vergonhosa dos Estados Unidos do Afeganistão significou a derrota do forte sonhador pelo fraco fanatizado. Um calafrio de insegurança percorreu de alto a baixo a coluna vertebral de todos os aliados dos Estados Unidos na região. A opinião pública dos Estados Unidos, no geral, cansou-se da guerra do Afeganistão. Bateu o desalento. Não aceita mais sacrifícios. Em especial, os contribuintes, que lá enterraram cerca de 2 trilhões de dólares. Tudo isso estrila nos ouvidos da classe política. Lamento supor, desejaria que acontecesse o contrário, mas os norte-americanos não fugirão da dor. Não vai demorar, despencarão multiplicados os sacrifícios sobre o povo dos Estados Unidos em decorrência da presente atitude do governo de Washington. De passagem, o maior e mais importante campo de batalha de momento e nos meses futuros não estará no Afeganistão, mas no interior da opinião pública norte-americana. Ali se estará decidindo em larga medida o futuro próximo do povo afegão. E até dos aliados dos Estados Unidos, se não da própria nação do norte.”

 

Despencarão multiplicados os sacrifícios. Errei feio no prazo que estimava, em parte por otimismo, acho. E teve gente achou meu texto um pouco pessimista. É, a vida ensina. Imaginava, os sacrifícios prenunciados viriam, mas pensava que não eram iminentes. Precisavam ser imediatos? Foram e o fato soa como aviso. Em 26 de agosto, antes da evacuação completa das tropas, marcada para cinco dias depois, atentado monstruoso próximo ao aeroporto esbofeteou os Estados Unidos.

 

Valhacouto de celerados. Adiante. No artigo citado, escrevi: “O Afeganistão será de novo santuário de organizações terroristas que ali se prepararão para atacar países do Ocidente”. Santuário é palavra adequada, digamos, quase um eufemismo, ainda que seja corrente a palavra entre jornalistas com a acepção de lugar de refúgio onde o fugitivo não pode ser alcançado. Para o caso afegão seria melhor, pois mais próximo do real, empregar valhacouto de celerados. O Afeganistão está hoje lotado de organizações terroristas que se aliam, brigam entre si, preparam atentados, roubam, sequestram, vendem ópio, cobram “pedágios”, enganam e despertam ilusões lá e fora de lá. Parte delas, motivos religiosos e étnicos, ainda recebe doações provenientes de países do Golfo. É o para nós misterioso mundo das seitas muçulmanas. Entre tais organizações terroristas se alteia o ISIS-K (Estado Islâmico no Khorasan, braço do antigo Estado Islâmico, mais precisamente, em inglês, Islamic State of Iraq and Syria – Khorasan). Tem, e é natural, as doutrinas e métodos do Estado Islâmico que anos atrás atormentou populações enormes em parte da Síria e do Iraque e que hoje, derrotado militarmente, militantes seus se abrigam no Afeganistão. Ninguém sabe à vera, com objetividade, como estão as relações do ISIS-K com os talibãs ▬ se boas, ruins, aliados de ocasião, se o grupo tem permissão ou não dos talibãs para perpetrar atentados. Quando muito, suposições plausíveis é do que se dispõe. E agora o fato novo, o atentado.

 

Atentado nas imediações do aeroporto. O ISIS-K por meio de um homem-bomba realizou atentado nas proximidades do aeroporto de Cabul, matando (até o momento em que escrevo), 14 militares norte-americanos, ferindo 18, assassinando no total mais de 170 pessoas, entre as quais crianças e mulheres. O atentado provocou o maior número de baixas para as forças dos Estados Unidos desde 2011, quando 31 militares morreram em queda de helicóptero. O crime pavoroso, pelo caráter prenunciativo e desafiante, caracterizando nova derrota na política exterior do governo Biden, abriu feridas. Deixou claro, uma vez mais, a evacuação se dá em ambiente convulsionado, inseguro e de provocação acintosa à maior potência militar do planeta, que parece não ter condições de proteger nem seus próprios homens. O norte-americano médio, empurrado pela lógica, fica diante da encruzilhada: derrotismo ou reação. Cabeça erguida ou cabeça abaixada e envergonhada.

 

Palavras melancólicas.  O presidente Joe Biden reagiu com discurso duro, embora melancólico. Não prometeu contra-atacar e vencer, não acenou com vitória, não mostrou determinação de acabar com o terrorismo no Afeganistão. Assegurou uma coisa, continuar fazendo a retirada em curso de maneira ordeira e segura: “Estes membros das forças armadas entregaram suas vidas. Foram heróis. Heróis que se engajaram em uma missão perigosa e altruísta para salvar a vida de outros. São parte de um esforço de transporte aéreo e de evacuação. As vidas que perdemos hoje são vidas entregues para o serviço da liberdade, dos outros e dos Estados Unidos. Aviso aos que perpetraram este ataque: não perdoaremos, não esqueceremos, vamos caçá-los e pagarão. Os terroristas não nos deterão. Não interromperão nossa missão. Continuaremos a evacuação.” Soou aquém do necessário.

 

Impacto na opinião pública dos Estados Unidos. Dizia acima, o cenário mais importante da crise afegã não está no Afeganistão, é a opinião pública nos Estados Unidos. Ali se decidirá o caso. Pela primeira vez na administração Biden, o número dos que aprovavam o presidente (46,9%) passou a ser menor do que a porcentagem dos que o reprovavam (49,1%). Prestígio caindo. Pode ser que os norte-americanos estejam em número crescente desagradados com os rumos da política externa. Não há como negar, foram chocantes a fraqueza, indecisão e desorientação manifestadas pelo governo nos últimos acontecimentos. A saudável reação do público, talvez já se expressando nos índices de reprovação, é um raio de esperança. Para os afegãos. Para os Estados Unidos. Para nós.

O governo do bom exemplo

 

Governo do bom exemplo

 

Péricles Capanema

 

Honra, dignidade, decoro. Na 6ª feira, 20 de agosto último, funcionário do Palácio do Planalto, protocolou no Senado Federal uma representação do presidente Jair Bolsonaro, baseada no direito de petição, que requeria a abertura de processo de impeachment contra Alexandre de Moraes, ministro do STF. O referido texto tinha como fundamento legal o artigo 39 da lei 1079 de 10 de abril de 1950, recepcionada pela Constituição de 1988, que regulamente, entre outras assuntos, o rito do processo de impeachment de ministros do Supremo. Reza o artigo 39:

 

“São crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal:

1- alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal;

2 - proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa;

3 - exercer atividade político-partidária;

4 - ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo;

5 - proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decoro de suas funções.”

 

Mais especificamente, a petição do presidente da República buscava fundamento nos itens 2 e 5. Vou deixar de lado o item 2 (suspeição), fixar-me no 5. A peça presidencial afirma que o ministro Alexandre de Moraes tem “conduta atentatória ao decoro, o que atrai a incidência do artigo 39, 5, da lei 1079 de 1950”.

 

Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, como providência prévia ao juízo de admissibilidade, encaminhou a peça, para estudo e opinião ao Núcleo de Assessoramento e Estudos Técnicos – NASSET, que em 24 de agosto emitiu o parecer nº 659/2021, assinado pelo advogado Octávio Augusto da Silva Orzari. O documento recomendou arquivamento da peça presidencial por nela inexistir requisito essencial para o conhecimento: “lastro probatório mínimo e firme indicação da autoria e da materialidade da matéria imputada”. O parecer, congruentemente, sustentava que qualquer alta função estatal precisa ser exercida com “honra, dignidade e decoro”. Nas pegadas da posição do órgão competente do Senado, o presidente Rodrigo Pacheco afirmou: “Determinei a rejeição da denúncia por falta de justa causa, por falta de tipicidade". Arquivou-a.

 

Exemplaridade. Não entro aqui na análise da peça presidencial; também não me detenho em considerações sobre o parecer do jurídico do Senado. E nem emito juízo sobre a decisão de Rodrigo Pacheco. Meu foco é outro: o dever do bom exemplo. Temos em vigor lei de abril de 1950, 70 anos atrás, recepcionada pela Constituição de 1988, e que já naquela ocasião representava o consenso do meio jurídico brasileiro; expressa ainda hoje. Em resumidas contas, português simples, o que diz a lei? Quem não dá bom exemplo, não pode ocupar cargo de expressão. No caso, como se manifesta o bom exemplo? Sobretudo pela conduta honrada, digna e decorosa. Faltando, está prejudicado gravemente o bem comum e o titular deve perder o cargo.

 

Conduta decorosa. Sob algum aspecto, o item 5 é o mais importante do artigo 39; resume-os. Temos escadinha, posta pelo legislador ▬ honra, dignidade, decoro. Não basta que a conduta seja honrada. É preciso subir um degrau, que seja digna. Outro ainda, decorosa, isto é, cheia de decoro. O que é a conduta decorosa? Vou ao dicionário. Na linguagem corrente, fonte primeira e mais pura do significado jurídico, é a conduta recatada, decente, séria, nas maneiras, no vestir, no agir e no falar. que exale compostura, que nada apresente de torpe. Que tenha gravidade segundo a condição social, idade e funções. Apresenta alinho, nada de decomposto. Seja exemplo de inteireza e lisura. Que adorne, embeleze e decore o convívio social, sob outro ângulo.

 

Os costumes dominantes das épocas em que era existia generalizada, mesmo que apenas em esboço e com muitas lacunas, a ordem temporal cristã, exigiam tal desenho moral em qualquer superior. De todos, do bispo, do vigário, do pai, da mãe, do avô, do rei, do juiz, do general. Enfim, o que temos hoje em nossa legislação é eco de convicção enraizada nas épocas de civilização cristã. Num ambiente de deboche generalizado, mesmo agora, são os pressupostos que a legislação pátria vigente coloca como condição para o exercício do cargo público. A experiência e a competência técnica aparecem logicamente depois.

 

Fica a pergunta, alguém ainda obedece ou pelo menos tem em vista tais disposições legais? Fiapos ainda persistem, reconheço. No geral, contudo, generalizam-se as maneiras grosseiras, a linguagem chula, a ostentação satisfeita do achavascado, os palavrões, a corrupção praticada impunemente; mais ainda, costumes debochados e libertários estadeados como ornamento. Cada vez mais, é o espetáculo de nossa vida pública. Pior, desenrola-se sob o olhar complacente e divertido de parte do público.

 

Ensinamentos esbofeteados, mas perenes. Recorro a são Bernardo de Claraval que assim vergastava os grandes: “Uma alta posição e uma alma abjeta. O primeiro posto e uma vida indigna, uma língua eloquente e mãos ociosas, muitas palavras e nenhum fruto, um rosto grave e uma ação ligeira, uma grande autoridade e um espírito inconstante, um rosto severo e uma língua frívola, são coisas verdadeiramente monstruosas. Devemos dar bom exemplo ao próximo”. Ecoava santo Isidoro: “Aquele que está diante dos demais pela autoridade, deve estar à frente deles por suas virtudes; é necessário que lhe sirva de modelo”.

 

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Voto facultativo, o grande esquecido

 

Voto facultativo, o grande esquecido

 

Péricles Capanema

 

Voto facultativo, o injustamente excluído dos debates. Um dos problemas lancinantes ▬ e de solução para lá de complicada ▬ da vida pública brasileira é a degradação paulatina, para alguns inexorável, da qualidade da representação política. Em verdade, encosta abaixo, piora cada quatro anos. É geral, pouca ou nenhuma noção de decoro, experiência escassa de vida pública, tosca noção de bem comum, escrúpulos só de superfície, demagogia, e vai por aí afora.

 

Governo do bom exemplo. Evaporou-se a convicção, antes bem difundida, de que, por vários aspectos, a exemplaridade é a mais importante função do homem público. Dar bom exemplo. Está aí 2022, é grande a chance de outro tombo rumo ao fundo do poço. A propósito, lembrete útil. Os candidatos podem abusar do poder econômico, enganar, ludibriar a esperança dos votantes. Mas quem sempre os escolheu foi o eleitor. Por que não colocar aqui também a razão das sucessivas decepções?

 

Costumes benéficos jogados no lixo. Tempo houve, vai longe, sobretudo no Império e em certo período da República Velha, a carreira política atraiu as melhores inteligências. Poderíamos citar o barão do Rio Branco (1845-1912) [e o pai, o visconde do Rio Branco (1819-1880)], Joaquim Nabuco (1849-1910), Epitácio Pessoa (1865-1942), Ruy Barbosa (1849-1923), tantos outros mais. Ornava, conferia nomeada, dava respeitabilidade às famílias de onde provinham. De modo geral, dito costume social, bem difuso, favorecia o bem comum. É compreensível, as soluções encontradas por gente inteligente têm maior probabilidade de atender aos reais interesses populares que as caraminholas imaginadas por cacholas lorpas. Em outros países, mais que aqui, temos restos de tal hábito social. Winston Churchill foi dele grande exemplo na Inglaterra, alunos e professores (carradas) de grandes universidades buscam frequentemente a vida pública nos Estados Unidos.

 

Pelé no futebol, Usain Bolt no atletismo. Via de regra, os homens públicos devem ter a bagagem do talento, da educação, do saber e da experiência. Ninguém desejaria escolher para a seleção jogador bisonho da 4ª divisão do Campeonato Paulista. Nem para correr numa olimpíada um corredor de fim de semana no Parque Ibirapuera. É preciso ter nas ocasiões de topo atletas que lembrem Pelé ou Usain Bolt.  Elitismo? Nem de longe, apenas bom senso. Aliás, com utilização sensata, é uma forma de ajudar os menos dotados. O pelé das vendas em geral é responsável pela equipe. O pelé na sala de aula muitas vezes se transforma em professor de destaque ou profissional renomado. E assim por diante. Não deveria ser do mesmo modo na vida pública, hoje valhacouto de desonestos, arruaceiros, demagogos e cafajestes? Infelizmente a palavra elite (e o próprio conceito) adquiriu em certos ambientes preconceituosos conotação pejorativa, que dela é necessário se afastar. No seu lugar apropriado na vida social, boas elites favorecem avanços e dificultam retrocessos; são fatores de progresso, renda e emprego.

 

Reforma eleitoral no topo da agenda. Vira e mexe a reforma eleitoral toma o noticiário dos jornais, das tevês e pipoca nas redes. Fica urgente o assunto. Voto impresso versus voto eletrônico. Parlamentarismo versus presidencialismo. Distritão versus distritão misto. Financiamento das campanhas eleitorais privado ou público? Fundão. Propaganda gratuita na televisão (que não é gratuita, arranca bilhões do contribuinte). Coligações para eleições proporcionais. Número excessivo de partido. Cláusula de barreira. Paro por aqui com uma constatação. Um tema parece proibido, está excluído, quase ninguém a ele se refere: o voto facultativo. Os políticos da direita calam a respeito. Os políticos do centro calam a respeito. Os políticos da esquerda calam a respeito. Com louváveis exceções em todos os quadrantes, claro. Então é meu dever gritar: faltou o voto facultativo, falem dele. Reivindico a inclusão. Já. Razão do silêncio contrafeito? À primeira vista, nenhuma. As eleições ficariam mais baratas, votaria só quem quisesse, nenhuma amolação para quem não quisesse ir até as seções eleitorais. Imagino, como regra geral votariam entre 20% e 30%; por vezes, bem menos.

 

Amadurecimento ilusório. A razão do voto obrigatório, podem pesquisar, vão se afunilar para uma só: exercício da democracia, treino obrigatório para aprender a votar, trará amadurecimento. Quá-quá-quá, lero-lero do mais ordinário, como se vê. O motivo real é outro, em geral disfarçado ou encoberto: o voto facultativo colocaria a nu, sem disfarce, o amazônico desinteresse do povo pelo processo democrático, como ele existe entre nós. O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, mais claro, foi além e foi claro: “Temos preocupação que a facultatividade [do voto] possa produzir a deslegitimação dos eleitos na possibilidade de um elevadíssimo índice de abstenção”. As eleições deixariam de ser levadas a sério, é o temor confessado do ministro. Então, cabresto no povo. E assim, a maioria dos políticos teme que o voto facultativo possa trazer a desmoralização\o do processo eleitoral, ao tempo que evidenciaria o vazio das instituições republicanas, como foram impostas ao Brasil. Por isso, é preciso fingir, inventar artificialismos para manter a ficção de o povo está interessado na parafernália eleitoral, mesmo que isto custe uma nota preta para o contribuinte e prejudique o futuro do Brasil.

 

A realidade é a base sólida, não tem outra. O correto seria a verdade inteira, objetiva, colocada sem disfarces diante da opinião pública. “Veritas liberabit vos” (Jo, 8, 32). Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Precisamos ter clara a verdade a respeito, fugir dos subterfúgios, apenas sobre ela se poderá construir edifício promotor do bem comum. Com fundamentos na fraude, teremos sempre edificações lesivas ao interesse popular. Ficaria mais autenticamente democrático. Sabem que países têm voto facultativo? A maioria. Entre eles, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Japão, Alemanha, Espanha, Portugal. Ninguém lá teme deslegitimar eleições nem desvalorizar eleitos por causa da abstenção. Na minoria contrafeita, os repressores, pois punem a abstenção, tida como direito na maioria civilizada, além da presença obstinada do Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai e Egito.

 

Autenticidade e transparência. Para possibilitar avanços, no caso a melhoria do nível da representação e o barateamento das campanhas eleitorais, seria bom instituir logo o voto facultativo. É panaceia? Nem de longe. Mas tem potencial para impulsionar um pequeno avanço o que, no caso, já será muito. De passagem, poderíamos desmentir por vez primeira, o conhecido prognóstico de Ulysses Guimarães, desabusado e realista. Como se sabe, certa vez alguém se lamentou com o veterano político sobre a péssima qualidade dos representantes com mandatos em Brasília. Redarguiu ele mais ou menos assim, premonição de raposa sabida: “Está achando ruim essa composição do Congresso? Então espera a próxima: será pior. E pior, e pior. Temos algumas poucas cabeças boas aqui. É necessário juntá-las, onde quer que estejam, e fazê-las trabalhar num rumo só: para a frente. Sempre”. Alguém dirá: você já escreveu sobre o tema. Corretíssimo, faz parte de minha campanha por autenticidade e transparência no Brasil. Daqui a algum tempo, vou escrever de novo; é necessário relembrar.

 

domingo, 22 de agosto de 2021

Repetições necessárias

 

Repetições necessárias

 

Péricles Capanema

 

Advertência e apelo. O artigo trará o que tanta gente ▬ não tira delas a razão ▬ considera motivo de enfado: repetição e divagação. No fim, espero, a leitura não terá sido maçante. Repetirei, é certo; vou divagar (aparentemente). Foi necessário. Vamos à minha defesa prévia.

 

Repetir é sempre ruim? Duvido. Não está na base do aprendizado e da ciência?  Repetição de bons atos não é o fundamento da reputação? E ainda lembro Napoleão: “A repetição é a figura mais forte da retórica”. E a retórica, meio de convencimento, veste a lógica com a beleza da exposição. Divagar, vagar sem rumo, deambulação espiritual sem destino. Contudo, muitas vezes a divagação é apenas aparente, vem costurada por fio oculto; pretendo ser o caso presente. Ouso afirmá-lo, o fio foi enorme aspiração de ver meu país natal realizar sua vocação de grandeza cristã. Vejo-o cada vez mais distante dela. O eventual leitor julgará. Tanto mais que, no frigir dos ovos, o artigo, com pequenas divagações, repete advertência (ou aviso, pois quem avisa amigo é) e renova apelo pela continuidade.

 

Redigia meu último artigo “Remansos restauradores”. Precisei fazer um arquivo word e pus o mencionado título como nome. Na tela surgiu a pergunta: queria apagar arquivo com o mesmo nome? Santo Deus! Já existia um arquivo com tal nome? Nada registrava minha memória. Fui verificar, era de 2017, rascunho para um artigo que em 30 de outubro de 2017 foi colocado no blog com o título “Corredeiras e remanso” ▬ está na rede. Em números redondos, matéria de quatro anos atrás, pleno governo de Michel Temer.

 

Privatização tóxica. E o que dizia o texto? Em princípio, privatização, quanto mais, melhor. O problema era outro; o artigo analisava de início leilões do pré-sal, áreas destinadas à exploração. Quem ganhou a rodada? Entre os grandes ganhadores, a Petrobrás (estatal brasileira), uma estatal norueguesa e estatais chinesas. As áreas saiam da mão do Estado e, no processo de privatização brasileiro, iam para a mão do Estado. Comentei então: “Programa de privatização deveria significar entregar à iniciativa privada, a particulares, atividades econômicas antes levadas adiante pelo Estado. Mas aqui vou deixar de lado esse aspecto. Só sublinho agora um ponto: a China comunista, potência imperialista, continua a comprar planejada e avidamente fatias da economia brasileira, sob a indiferença cega ou a cumplicidade criminosa de decisivos setores da vida pública nacional. A geração atual está pondo em risco, insciente ou criminosamente, a independência e a soberania do Brasil de amanhã”. Se mudou alguma coisa de lá para cá, foi muito pouco. É preciso continuar bradando as mesmas coisas.

 

Tratei ainda das observações sobre o Brasil de dois grandes intelectuais europeus, o primeiro escritor e dramaturgo consagrado, Stefan Zweig, o segundo, Fernand Braudel, dos maiores historiadores do século XX. Transcrevo abaixo o que escrevi quatro anos atrás. Só acrescento aqui uma parte da carta de despedida deixada por Stefan Zweig, pouco antes de se suicidar em Petrópolis: “Antes de deixar a vida por vontade própria e livre, com minha mente lúcida, imponho-me última obrigação; dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país que é o Brasil, que me propiciou, a mim e a meu trabalho, tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia aprendi a amar este país mais e mais e em parte alguma poderia eu reconstruir minha vida, agora que o mundo de minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído”. A seguir, o texto de 2017, com modificações mínimas. A presente situação caótica da vida pública brasileira o tornou ainda mais atual. Tem um convite implícito, vivifiquemos raízes, elas, mesmo escondidas, têm seiva preciosa, penhor de futuro no rumo certo.

 

Passo agora à riqueza espiritual de que queria tratar buscando testemunhos em passado ainda recente. Mesmo nos rios mais revoltos ▬ e o Brasil infelizmente rola correnteza abaixo ▬, aqui e ali aparecem remansos. A gente neles se detém, retempera forças, e logo depois volta a navegar.

 

Recusa da violência, brutalidade, sadismo. Vamos entrar em um deles. Stefan Zweig (1881-1942) foi escritor dos mais vendidos mundialmente. Intelectual reconhecido, como literato brilhou em quase tudo: poeta, romancista, dramaturgo, jornalista, biógrafo. Sem prática religiosa (“Minha mãe e meu pai eram judeus apenas por acidente de nascimento”), comodamente instalado na alta burguesia judaica, o pai industrial e a mãe filha de banqueiro, Stefan Zweig nasceu, viveu e formou mentalidade na Viena culta de Francisco José, continuador em boa medida da antiga política dos Habsburgos de harmonizar diferenças e estimular situações em que cada pessoa, cada família, cada região, sem lesar o bem comum, podia desenvolver suas qualidades. A convulsão da política europeia o expulsou de lá. Fugindo da guerra e do antissemitismo, o escritor morou na Inglaterra e nos Estados Unidos; terminou por fixar residência em Petrópolis, onde, deprimido, matou-se em 1942.

 

Em 1941 publicou livro de boa repercussão “Brasil, país do futuro”, edições simultâneas em vários idiomas; eram impressões sobre o País que o havia acolhido. Em certo momento, retrata o clima social generalizado do Brasil daquela época. Pôs em destaque uma forma de relações humanas, a maior riqueza percebido pelo escritor vienense. Por possui-la, Stefan Zweig acreditava, o Brasil merecia a admiração do mundo.

 

Benquerença. “O Brasil, por sua estrutura etnológica, se tivesse aceito o delírio europeu de nacionalidades e raças, seria o país mais desunido, menos pacífico e mais intranquilo do mundo”. Discorre a seguir sobre a imensa diversidade de raças e continua: “Da maneira mais simples o Brasil tornou absurdo o problema racial que perturba o mundo europeu, ignorando simplesmente o presumido valor de tal problema”. De outro modo, constatou benquerença tão enraizada, convívio benevolente que, a bem dizer, trazia em si, no bojo, a resolução do problema do racismo no Brasil. De outra maneira, está implícito no texto do intelectual vienense, a influência de ares assim tornaria mais fácil, rápida, proveitosa, eficiente e definitiva a resolução de problemas centrais para o destino nacional. Não deveria ter acontecido, mas aconteceu; ela se evolou.

 

Stefan Zweig passa a conjeturar sobre a origem de tal situação: “Certa brandura e uma suave melancolia”. Nos estudantes “inteligência unida a modéstia e polidez tranquilas”. No geral “essa forma mais suave e mais serena da vida é um benefício e uma felicidade”.

 

Em virtude do clima social predominante, “o indivíduo sente a alma aliviada logo que pisa esta terra. Primeiramente, pensa que este efeito calmante é apenas alegria dos olhos, e gozo dessa beleza sem par que, por assim dizer, de braços abertos chama a si o indivíduo que acaba de chegar”. Continua: “Em geral ao brasileiro é alheio tudo o que é violência, brutalidade e sadismo”.

 

Tal maneira de ser se refletia na política: “O Brasil não tem desejos de conquistar territórios, não possui tendências imperialistas. O princípio básico de sua ideia nacional [é] o desejo de conciliação e acordo, produto natural dum predicado do povo”.

 

Despreocupado com a segurança, Stefan Zweig pacificamente visitou favelas, então mais pobres que as atuais: “Tinha um mau pressentimento. Esperava receber um olhar raivoso ou uma palavra injuriosa. Mas para esses indivíduos de boa-fé um estrangeiro que se dá ao trabalho de subir aqueles morros, é um hóspede bem-vindo e quase um amigo”. Visitasse-as hoje sem a permissão do chefe da boca de fumo, para começo de conversa seria depenado. Facilmente sequestrado ou morto.

 

Não estou sobrevalorizando as impressões de Stefan Zweig. Tem seu ponto-de-vista de europeu educado na Belle Époque numa das capitais mais civilizadas da Europa. No seu olhar pode facilmente existir influência do romantismo do século 19. Nada disso excluo e ergo em posição de destaque. Mas também não quero subestimar suas opiniões. Dados os descontos, ele parece contemplar outro país, tragado pelo tempo, hoje sacudido por incompreensões, rasgado por divisões, com patrulhas com pouco ou nenhum escrúpulo moral cultivando o ódio. Pouco existiria daquele velho Pindorama (ou Terra de Santa Cruz) formado com dificuldade, missionado em especial por jesuítas, carmelitas e franciscanos. Dele ▬ recordo lenda bretã ▬, como uma catedral engolida por maremoto, só se ouviria o plangor longínquo dos sinos debaixo das águas revoltas.

 

Na mesma época, 1935 a 1937, professor na nascente USP, morou entre nós o professor francês Fernand Braudel (1902-1985). Muitos estudiosos o consideram o maior pensador social e historiador do século 20. Reveladoramente, percebeu no Brasil daquela quadra traços vislumbrados pelo olhar de Stefan Zweig: “Foi no Brasil que me tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida passei no Brasil”. O que significava para ele ter ficado inteligente? Foi pergunta que lhe fizeram. Deu várias respostas ao longo dos anos. Duas delas: “Fiquei menos banal”. A outra: “Lá eu aprendi a ser feliz”. O espetáculo de gentileza social lhe estimulou a inteligência. Tornou-a mais abarcadora. Nas fontes da gentileza social, o interesse desinteressado [paradoxo aparente] e o apreço pelo “outro”. O “outro” não é o inferno, como na frase de Jean-Paul Sartre [l’enfer, c’est les autres], o “outro”, nessa mentalidade, é estrada para o paraíso.

 

Regeneração de raízes. Volto à pergunta de fundo, o que restou do aroma evolado de árvore frondosa, que encantou Stefan Zweig e Fernand Braudel? Raízes, pelo menos, deverão restar. É riqueza imensa, ainda que potencial. Regá-las é fundamental. Sem seu cultivo, o Brasil nunca terá títulos para ser nação com grandeza cristã, mesmo que consiga romper os obstáculos que hoje o impedem de crescer, em bruto, quarenta anos patinando.

 

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Remansos restauradores

 

Remansos restauradores

 

Péricles Capanema

 

Truque do menino pescador. Quando menino, pesquei um pouco, ia em geral até o rio (ou ribeirão) com tio meu. Descobri logo um ardil: procurava os remansos, locais onde a água fica calma, corre menos, dá impressão de parada. Peixe gosta de remanso. Jogava o anzol, a pescaria rendia. Existem peixes em corredeiras; no entanto, a pesca ali é menor. Sempre preferi os remansos. Mais tarde, adulto já formado, ouvi seguidamente a palavra remanso associada a descanso e tranquilidade. “Aquilo é um remanso”; “Foi um remanso na vida dele”. Por aí afora. E me lembrava, remanso no rio sempre foi condição de pescaria de muitos peixes. Era promessa, fisgava muito quem conhecia suas vantagens.

 

Remansos promissores. Em ocasião inesperada, como um dourado fora d’água, pulou na memória a palavra. Ouvi, anos atrás, de amigo meu: “Fulano não sabe descansar, por isso produz pouco e mal”. O aparente paradoxo me impressionou. À primeira vista, o remanso, em perspectiva diferente, a inação ajudaria a produção. Mais precisamente, saber como descansar era condição da produtividade boa, com qualidade. Do pátio do recreio dependia em larga parte o êxito da sala de aula. Lembrei-me então, a pescaria depende também do remanso, da água em descanso. A coisa ficou por aí.

 

Forças novas. Contudo, resolvi tratar do tema hoje, por razão circunstancial. Tive debate com pessoa que sustenta, a tensão contínua é condição de produtividade alta; remanso atrapalha. Imagino, provavelmente haverá muita gente que pensa igual. Acho o contrário, remansos restauram forças, facilitam caminhadas de sucesso. Admito, podem existir remansos apenas de superfície, convulsionados por baixo, recreios neurastênicos; causam efeito contrário, debilitam. De outra maneira, existem formas de armazenar energia, gastando-as depois com utilidade. E existem formas de supostamente guardar energia, de fato desbaratá-las, que impedem utilização posterior.

 

Hábitos de observação. Arrisco-me a propor aqui remansos, um em especial, de fato. Espero, ajudarão eventuais leitores a agir com maior eficiência em vários âmbitos da vida ▬ familiar, profissional, educativo, etc. Serão hábitos que descansam e formam o espírito, a mais de preparar para a ação. Em resumo, é uma sugestão para criar o costume de observar pessoas e famílias, ter em relação a situações de perfeição social um olhar benevolente que entretém, distrai, descansa e forma. Será pátio de recreio com função de sala de aula. Caí sem querer na autoajuda. Não importa, adiante.

 

Presença de espírito. Esse hábito existiu, formou gerações. Proponho, a bem dizer, uma ressurreição. O mundo cultural francês sempre apreciou, e com razão, o “esprit”. Abria portas, criava oportunidades, permitia começar relações de valor. Era (e ainda o é, pelo menos em parte) diferencial enorme. Ter espírito (avoir de l’esprit) é sem dúvida ter presença de espírito, saber agir em situações inesperadas. Supõe agilidade mental que leva a encontrar a saída em ocasiões espinhosas. Para tanto, graça, humor, argúcia, conhecimentos. Dele faz parte também o dom da “repartie”, isto é, a capacidade habitual da resposta viva, espontânea, leve, fácil e brilhante. Nunca foi tempo perdido o esforço para aquisição da presença de espírito. Lá e cá.

 

Entretenimento cultural como motor da formação. Uns nascem com especial talento nesse campo, cumpre a eles desenvolver dons nativos. Outros têm necessidade de desenvolvê-los, com esforço, ao longo da vida. A eles, de forma particular, o presente texto talvez possa ajudar. A conquista de tal configuração, mesmo em doses modestas, supõe observar e admirar suas manifestações ▬ ganho, em boa parte por osmose, de conhecimentos e hábitos. Aqui estão duas etapas para sua obetnção: gostar de observar e de admirar.

 

Educação por osmose. Com efeito, a educação não acontece só pela instrução. O conhecimento, os hábitos e o jeito se transmitem também pela convivência. A frequentação, quer física, quer moral, de ambientes pode trazer assimilação de valores. São caldos de cultura psicológicos e morais, nutridos pela leitura, pela imaginação, pelo convívio. Haurindo tais ares, desenvolver o costume de observar, procurando explicitar o visto e de admirar. Tudo isso faz entender melhor a vida.

 

Exemplo de expressão histórica. Atrás me referi à atmosfera cultural francesa, em que houve hábitos de observar e de admirar. Quase se poderia afirmar, trata-se de ressuscitá-los e divulgá-los. Foram de enorme significado para a vida nacional ▬ rotinas recreativas embora, remansos de muito peixe. Desço a um exemplo, acho que é o melhor de todos. Houve ali, certamente por mais de século, uma família de expressão, Rochechouart-Mortemart, que, pela fulguração, a partir do século XVII, educou, e, em algum sentido, formou gerações inteiras, atraindo a atenção e entretendo. Seus membros de maior relevo eram, em certa proporção, “role models”. Era habitual em seus membros traços de personalidade que encantavam, seduziam, formavam. Nas palavras do historiador Ernest Lavisse “o espírito celebrado dos Mortemart, natural, fino, que sabia encontrar o inesperado, um espírito que tinha o dom de se comunicar aos outros”. Em resumo, uma forma de alta cultura, comunicativa e difusiva, admirada, observada. Grandes escritores como o duque de Saint-Simon, madame de Sévigné e Marcel Proust dele falaram. Talleyrand, celebrado não só na diplomacia, mas ainda na arte de conversar, notou nas memórias que parte de sua formação vinha da bisavó, uma Mortemart. De outro modo, estava no sangue, aquele estilo vivia nos ares que respirou em menino ▬ osmose. Hoje ainda, tantas vezes dispersas e despercebidas, temos entre nós pessoas em muitos aspectos parecidas com membros da família Mortemart. Merecem atenção. Cabe a nós notá-las, observá-las, admirá-las, mesmo que silenciosamente. É tarefa que aprimora o espírito, prepara para as tarefas cansativas do dia a dia.

 

O melhor é se preparar para o pior

 

O melhor é se preparar para o pior

 

Péricles Capanema

 

Montadoras chinesas no Brasil. Começo lembrando ditado antigo. O melhor é se preparar para o pior? Sim, desde que a atitude não seja fatalista, derrotista, mas animosa; que haja esforço estrênuo para evitar o pior. Os amigos apontam os perigos da caminhada. Acautelamento necessário. Os inimigos, para obter vitória rápida, procuram escondê-los. Velhacaria. O “Estado de S. Paulo” (19.8.2021) noticiou que montadora chinesa privada, a Great Wall Motors ▬ de outro modo, quase uma surpresa, não é estatal ▬ comprou a fábrica de automóveis de luxo da Mercedes-Benz em Iracemópolis (São Paulo). O negócio envolve a fábrica, área de 1,2 milhão de metros quadrados, prédios e equipamentos.  Não inclui transferência de pessoas; a Mercedes-Benz tem 370 empregados em Iracemópolis. Não foi divulgado o valor da operação. A Great Wall pretende aplicar 4 bilhões de reais no Brasil e proximamente (carros dela já circularão entre nós em 2022) fazer da montadora uma das grandes “players” do mercado brasileiro e sul-americano. A Great Wall divulgou, a fábrica em Iracemópolis sairá da produção atual de 20 mil veículos por ano e alcançará 100 mil anuais. Cinco vezes mais. No fim do processo, mil empregos novos diretos na região, além de irrigar a área de novos fornecedores.

 

Vitória onde outros fracassam. Tudo num contexto de dificuldades para as montadoras. O Brasil tem três fábricas de veículos automotores à venda. A fábrica de Camaçari (Bahia) e a de Taubaté (São Paulo) estão fechadas desde janeiro. A unidade de jipes Troller, localizada em Horizonte (Ceará), encerrará atividades em setembro. A mais, a Ford fechou sua unidade de São Bernardo do Campo em 2019. O novo “player” vem da China, os antigos são dos Estados Unidos e Europa. O melhor é se preparar para o pior (ditado da sabedoria antiga), repito desconsolado.

 

A Great Wall vende por ano mais de um milhão de veículos na China. Seis grandes estatais têm 75% do mercado chinês, cerca de 25 milhões de veículos novos por ano. A maior montadora privada é a Great Wall, agora em Iracemópolis. Sua presença no Brasil, embora já exista muita aplicação privada de capital chinês, tem especial significado. De um lado, foge do que tem sido usual: as aplicações de capital chinês no Brasil, via de regra, têm origem em estatais de lá, corporações dirigidas pelo governo, de outro modo, pelo Partido Comunista Chinês.

 

No caso em questão, empresa de propriedade particular. Tranquiliza? Em termos e, digamos, superficialmente. Melhor, não preocupa tanto. A China é uma ditadura de partido único, o Partido Comunista Chinês tem o controle inteiro e indisputado da economia e da sociedade. A Great Wall agirá no Brasil em consonância total com os interesses do Partido Comunista Chinês. Qualquer passo em falso, que não haverá, seria asfixiado na fonte.

 

Presença chinesa tida como normal. Agora o que pretendo destacar. O público brasileiro, é o previsível, se acostumará a ver com normalidade marcas da China comunista. Estarão no meio dos veículos Volkswagen, GM, Honda, mesmo padrão, talvez até superior. Compreensivelmente, diminuirá a resistência popular contra a inserção do Brasil na área de influência chinesa. Área de influência não apenas econômica; haverá repercussões na política. A mais, nossa economia terá mais um laço importante a ligá-la à China.

 

Continuidade na marcha para o abismo. Lembrei atrás dito da sabedoria popular, o melhor é se preparar para o pior. Não é pessimismo, é realismo, evita más surpresas. Vou continuar por aí. Desde o governo Itamar Franco, para marcar uma data, quando foi assinado em 1993 um acordo de cooperação estratégica, o país se insere paulatinamente na área de influência chinesa. Marcha batida. Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, desbancou liderança norte-americana de quase um século. Esse impulso contínuo só poderia ser enfraquecido ao longo de anos com o fortalecimento gradual dos laços com os Estados Unidos, União Europeia, Japão, entre outros parceiros, coisa que infelizmente fazemos pouco e mal, quando fazemos. não fazemos. Com petulância suicida altas figuras do governo brasileiro têm dado caneladas em representantes dos Estados Unidos. Tem mais, cuidamos pouco, tantas vezes com irresponsabilidades demolidoras, de nossas relações com os países da Europa. O final do processo será macabro, imersão inevitável na condição real e inconfessada de protetorado chinês. É preciso enxergar o óbvio, a coisa mais difícil de ver, lembrando Nelson Rodrigues.

 

Um ensinamento chinês oportuno. Recordo agora dito da sabedoria chinesa: espere o melhor, prepare-se para o pior, aceite o que vier. Apresenta algo de fatalista, discordo da aceitação passiva. Tem em comum um ponto com nosso ditado popular: prepare-se para o pior. E não só popular, e frase conhecida de Fernando Pessoa: esperar pelo melhor e preparar-se para o pior, eis a regra. Penso com meus botões, o melhor só virá se lutarmos para evitar o pior.

 

Marcha à ré urgente. Em tal situação, retrocesso seria continuar com o automóvel na mesma direção. Avanço é a marcha à ré. A presença de uma grande montadora chinesa, mesmo privada, entre os grandes fornecedores de veículos automotores, acelera nossa caminhada para o que, nesse quadro, é o pior: despencar para a condição de protetorado efetivo, mesmo que inconfessado. Ameaças e desafios vazios em ambiente de deboche e palavrões só piorarão as perspectivas, já sombrias. Minha sugestão: marcha à ré rumo aos Estados Unidos e à Europa.