Luzes na estrada
embaçada
Péricles Capanema
Leituras três estrelas. O guia Michelin confere aos melhores
restaurantes três estrelas. Vale para a gastronomia, valeria, aplicação
análoga, igualmente para as leituras. Fiz leituras três estrelas. Comunico-as. Semanas
atrás, com enorme proveito, terminei livro que consagra um autor: “Lições da História
da Cultura Jurídica” do professor Ibsen Noronha, lente na Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra. Ainda sob seu impacto benfazejo, perquiri, faz poucos dias, entre os numerosos
livros que um dia espero ler, para ver se ali encontrava alguma outra produção do
professor Noronha. Encontrei trabalho dele, igualmente valioso e atraente: “Da Contrarrevolução
e seus inimigos”. Aliás, com dedicatória do autor, por mim justificadamente muito
valorizada. Estou pelo meio do texto.
Atualidade candente de reflexões antigas. Adiante. Como chave esclarecedora de suas reflexões,
Noronha recorre a texto de 1946, autoria do professor Plinio Corrêa de Oliveira,
publicado no semanário “Legionário” em 1º de setembro. É atualíssimo para o Brasil
de hoje e assim dele respigo extratos (na íntegra, o texto está na rede).
Quem e o que governa os homens. “Todos os homens são governados: poucos sabem
precisamente quem os governa. Para o analfabeto, o governo se encarna inteiramente
nos agentes mais subalternos do Poder. São símbolos vivos do Estado, por cima ou
por detrás dos quais se confundem numa auréola imprecisa e quase irreal as figuras
demiúrgicas dos altos governantes. O homem de instrução
primária fita essa auréola sem se deslumbrar e discerne melhor os personagens de
categoria, nos quais a ideia de Estado e de Governo se encarna. Só o súdito de horizontes
um pouco mais largos chega a perceber que, por detrás dos governantes, existe a
lei, o Direito, a ordem natural, forças invisíveis e imponderáveis, às quais toca,
entretanto, a mais alta parcela do verdadeiro poder.”
Influência do dinheiro e da força. “Mas, é forçoso dizer, poucos são os que transcendem
desta esfera comum, para discernir a influência das várias forças sociais no governo
dos homens. Sabe-se, por exemplo, de modo impreciso, que o dinheiro é o nervo de
muitos acontecimentos. Poucos, porém, seriam os que lhe poderiam apontar concretamente
as artimanhas e manejos. À medida que se sobe na escala de cultura, as noções sobre
o governo vão ▬ é óbvio ▬ tornando-se menos pessoais, mais genéricas, ricas e precisas.”
A força determinante; no caso, verdade fundamental. “Mas
serão pouquíssimos os que possam atinar com a verdade fundamental. Para a descobrir,
não basta inteligência nem cultura. É preciso algo incomparavelmente mais precioso:
bom senso, e o que o bom senso ensina é que os homens são governados por forças
mais ativas e subtis do que a espada ou mesmo o ouro.”
O mundo é governado pelas ideias. “Diga-se
o que se disser, o mundo sempre foi e será sempre governado pelas ideias. Enganam-se os observadores superficiais que julgam
que o mundo de hoje escapou ao domínio dos pensadores profundos, porque os infólios
destes se cobrem por vezes de poeira, ignorados e obscuros, nas prateleiras de certas
bibliotecas. A glória do intelectual é que ele domina até quando parece não dominar.
Obedecem-lhe os que nunca o leram. É que as ideias passam das altas paragens da
vida intelectual para a massa da sociedade, não só pela aula ou pelo livro, mas
por uma osmose multiforme e obscura, em que está sua maior capacidade de expansão.
Elas filtram da Filosofia ou da Teologia para as outras ciências, invadem muito
de manso o terreno das artes, fornecem à grande feira de ideias, que é a imprensa,
a matéria-prima para o varejo quotidiano, propagam-se pelos resumos, pelas repetições
e pelo plágio, e, assim repetidas de mil modos, correm cidades e campos, transpõem
montes e mares, espreitam o momento mais oportuno para tomar de assalto as mentalidades,
e acabam dirigindo o modo de sentir e de agir, de viver, de trabalhar, de descansar
e até de morrer de milhares de seres, com uma precisão e uma segurança que o decreto
policial mais tirânico jamais lograria alcançar.”
A sala universitária, a grande sede do poder. “Não espanta, pois, que vejamos a sede do verdadeiro
governo do mundo, não nas assembleias legislativas ou diplomáticas ruidosas e inúteis,
de que tanto se ocupa a imprensa, mas nas universidades onde silenciosamente se
elabora o futuro das almas e das nações.” De outro modo, fonte, meio nutritivo,
foco de irradiação.
* * *
Enriquecimento posterior. Até aqui a citação. Nem o ouro (o dinheiro),
nem a espada (a força) são decisivos, foi o acima afirmado. Verdade que vale para
todas as épocas, para todos os países. Em 1959, o professor Plinio Corrêa de
Oliveira, no ensaio “Revolução e Contrarrevolução” enriqueceu a noção acima,
acrescentando a importância das tendências para a formação das ideias que
depois desembocarão nos fatos. Disto não tratarei, é assunto que transcende os
limites estreitos do presente artigo.
Exemplo instrutivo. Ilustro com exemplo importante e concluo. Durante
todo o período do governo militar (1964-1985), com notáveis exceções, a
universidade no Brasil foi couto e caldo de cultura para toda forma de
esquerda. À vera, continuou a marcha já existente e até preponderante. Ou seja,
agravou fenômeno que já vinha de longe, permitiu displicentemente que se
formassem gerações que, anos depois, para desgraça nossa, imprimiram enérgico rumo
de retrocesso ao Brasil. Já em 1961, Nelson Rodrigues podia escrever: “Hoje em
dia, chamar um brasileiro de reacionário é pior do que xingar a mãe. Não há
mais direita, nem centro. O brasileiro só é direitista entre quatro paredes e
de luz apagada”. O clima ficou mais pesado com o correr dos anos. Inexistiu quase
por inteiro a pugna das ideias. Imaginava-se, ▬ Deus meu, tanta inconsequência
e superficialidade! ▬, a formação doutrinária seria perda de tempo. Com isso, o
pragmatismo mais rasteiro levou a melhor décadas a fio. Com efeito, em muitos
círculos predominava a convicção simplista de que seria suficiente a propaganda
da eficiência e da honestidade, virtudes tidas por apanágio dos que então
governavam o Brasil ▬ tivemos os anos da tecnocracia. Resultado, entre outros
males, o público, mesmo o letrado, afundou ainda mais na imaturidade
intelectual, superficialidade, otimismo, adubando campo propício para a
demagogia que vem avassalando o país desde há muito. Outro resultado, generalizou-se
a ineficiência, desperdício e ladroagem.
Luzes que dissipam a neblina. Fulgurações do alto iluminaria a estrada,
contribuiriam para dissipar a neblina ▬ a supremacia inafastável do leal e
firme combate doutrinário. Em miúdo, ênfase em princípios, bom senso, fuga de
soluções mágicas e formação de hábitos que moldam mentalidades. É a via real, a
única de fato, para aperfeiçoar as personalidades, caminho para futuro exitoso.
Em suma, temos pela frente enorme tarefa, de esteio doutrinário, que requer esforço
sistematizado, clareza de vistas e concepções, convém lembrar, ligadas às
origens do Brasil, a busca efetiva, ainda que tateante no início, da ordem
temporal cristã. Sem caminhada por aí, clareada de cima pela graça divina, desnorteados
vagaremos sem fim na estrada embaçada, permanecendo presa fácil de demagogos. Ponto
final.