terça-feira, 21 de setembro de 2010

Luzes do passado

Um aspecto da pietas austriaca pouco considerado


Péricles Capanema

(publicado em Radici Cristiane nº 35, Roma, junho de 2008)

Por que, quando se fala em um tipo de piedade especial praticado na Áustria, não se emprega a expressão normal österreichische Frömmigkeit? Fala-se em pietas austriaca. É simples. Ela se distingue da piedade comum.

Tem características que se expressam melhor às pessoas com senso histórico, diria eu, por meio do bronze do latim. No caso, o latim evoca com mais energia uma realidade que outrora teve vida e foi influente.

De fato, é um tempo antigo, as características são antigas e quase não existem mais. Mas são atuais. Em especial pela consolidação da União Européia. Vamos ver.

Europeus de todas as épocas sempre perceberam a necessidade de alguma forma de unidade de seu continente. Nem só europeus percebem isso. Muita gente de outros continentes também percebe. E, como disse, é fenômeno antigo. Vem desde a Antiguidade pagã. O grande problema tem sido o como fazer.

Os romanos da Antiguidade, primeiro na República e depois no Império, viam a necessidade de congregar os europeus (mais ainda, os povos em torno de Roma) num grande espaço de convivência, sob a égide do Direito. A ameaça da avalanche bárbara era muito grande. Não foi só fogo de conquista e ambição de poder o que moveu os romanos. Havia um programa subjacente, com traços muito positivos.

Roma congregou, civilizou, procurou a unidade, deu aos povos o Direito, suas instituições políticas, assim como sua cultura e seus hábitos de governo. Foram grandes instrumentos de convivência. De outro modo, criaram grandes espaços de convivência. No meio da desorientação do mundo bárbaro, o Império aparecia como barca de salvação. Tudo isso lhe deu um prestígio imenso.

A destruição do Império Romano significava a ruína e o caos para os povos que Roma mantinha em sua área de poder. Eles, mesmo sofrendo, tantas vezes injustamente, a garra da águia romana, sentiam bem o que lhes era proporcionado por aquela grande união política. Em certo sentido, seus piores temores se realizaram quando o Império Romano ruiu em fins do século V.

Nunca mais a Europa esqueceu essa primeira grande tentativa. Ela viveu no imaginário dos povos saudosos e era até idealizada por eles. E, por isso, ansiavam por sua volta.

No ano 800, o Papa Leão III tentou, ao coroar Carlos Magno imperador do Ocidente, instaurar (de certa forma, restaurar), em condições novas, um ordem política que promovesse a convivência profícua de todos os povos europeus.

Mais uma vez, em boa parte o ideal foi destruído pela incompreensão e maldade dos homens. O império carolíngio se desfez e a Europa sofreu a anarquia como flagelo social. Este ideal, porém, continuou a pulsar no coração de incontáveis europeus. Deu vida à marcha atribulada do Sacro Império Romano Alemão. Persistiu nas instituições até 6 de agosto de 1806, quando Francisco II o extinguiu.

Em todos estes séculos, uma dinastia, entre todas, se destacou como herdeira do ideal romano, continuado e aperfeiçoado nas aspirações carolíngias. Nem precisaria nomeá-la.

A política dos Habsburgos, por séculos, foi a procura de alguma forma de unidade européia. Os Habsburgos, de fato, patrocinaram uma política mais que milenar, a busca deste grande espaço de convivência, onde os povos europeus pudessem desabrochar com segurança.

A própria noção de Cristandade se insere aqui, é a convivência dos povos cristãos sob o bafejo dos Soberanos Pontífices.

Convém agora lembrar uma realidade diferente. Outras dinastias e outros grandes políticos se afastaram dessa rota, diríamos, romana, e procuraram com pertinácia o fortalecimento dos respectivos Estados nacionais, o que provocou, necessariamente, choques sem solução.

Lembro apenas, para não me alongar, Richelieu, Bismarck, Cavour. Surgiu, então, como solução precária e instável a política do equilíbrio europeu. Era a política “sensata”, um jeito de impedir o desastre contínuo, dos que se reconhecem adversários inevitáveis.

Séculos de nacionalismos bestas trouxeram guerras, destruições pavorosas de vidas, de riquezas, de bens da cultura. Gerações e gerações de revanchards remoeram ressentimentos e ódios desnecessários. Que depois desaguavam na sangueira. Era uma situação anômala que urrava por seu fim.

Essa necessidade de pôr fim a uma situação destrutiva esteve no nascedouro da União Européia. Contudo, a nova iniciativa não mais foi bafejada pelo Direito Romano. Nem pelos princípios que manaram do Gólgota.

Veio enfunada por um espírito igualitário, coletivista e libertário. Ateu. É um espírito de maldição. Traz no bojo tragédias mais devastadoras que as que vieram com o fim do Império Romano, do Império de Carlos Magno e depois da política multissecular dos Habsburgos (aqui, bastaria observar o que penaram os povos da antiga Iugoslávia; e ainda penam).

Todas essas iniciativas vitoriosas viveram de um espírito, uma espécie de mística as animava. Refletiam-se nos fulgores da águia romana, no som evocativo da Chanson de Roland, na presença imperial e acolhedora de Maria Teresa. E em infinitas coisas mais. Por isso marcaram tanto a História. Quando sucumbiram, foi, sobretudo, porque já brilhavam pouco aos olhos dos seus participantes as luzes que as animavam.

* * *

Volto à pietas austriaca. Quem participava autenticamente do ambiente impregnado da pietas austriaca, no que ela tinha de mais sadio (não vou falar de contrafações, nem de deformações; esta parte, deixo de bom grado aos apressados detratores) também esteve embebido de um espírito.

Era um espírito de harmonia. Mesmo que iniciante, bruxuleante. A pietas austriaca destacou-se, sob aspecto fundamental, por sentir com nitidez muito própria as incontáveis inter-relações da ordem espiritual e da ordem temporal. Tinha em si potencial para uma grande visão que tendia a abarcar, num lance só, as duas ordens em que concomitantemente se movem os homens. Nesse sentido, não se limitava aos essenciais e prioritários problemas da vida espiritual pessoal.

Quem respirava seus ares, preocupava-se mais facilmente com as realidades da ordem temporal, na sociedade e no Estado. Com isso, analisava com mais naturalidade, sub species aeternitatis, aspectos relevantes da ordem temporal. Este olhar interessado (sob outro prisma, distante) estimulava a temperança e isenção na consideração, e até na defesa, dos interesses, fossem eles pessoais, familiares, regionais ou nacionais. Era uma visão que fazia mais fácil a aceitação nos fatos de um princípio essencial à ordem temporal cristã, o de subsidiariedade.

Em resumo, insinuei acima, existe uma solução para quem anseia ver os povos europeus trabalhando em uníssono. Distantes da brigaria insensata de séculos passados. Esta saída não lesa direitos, reconhece diferenças, trará proveito a todos. Mas é inesperada e, além disso, agora inaplicável nas instituições. Mas pode bem fazer seu caminho no interior das almas. É, no longo prazo, o mais importante.

Qual é? Está na Igreja Católica. Afunda suas raízes no mesmo solo em que medrou a pietas austriaca. Trará a difusão muito ampla de um espírito de harmonia. Preserva, une, melhora.

Tem mais, representa continuidade: continua a política romana, continua a política carolíngia, continua a política habsburguiana. Todavia, acrescenta, traz atualizações e aperfeiçoamentos.

Pela natureza do espírito que estimula, contém antídotos eficazes contra nacionalismos perigosos, coletivismos tirânicos e anarquismos desagregadores. A pietas austriaca abre uma porta extraordinária. Vamos entrar por ela.

A Europa em compasso de espera

Lições espanholas


Péricles Capanema
(publicado em Polonia Christiana, nº 14, maio de 2010)

Espanha e Polônia, para fúria de incontáveis sociodemolidores e alegria da gente direita, compartilham várias características, que são sintomas reveladores de sanidade social.

Em importantes aspectos são as nações mais parecidas da Europa. O mais notável traço comum, de enorme significado histórico, é seu Catolicismo ardente, que hoje infelizmente esfria. E o Catolicismo frio vai enregelar o sangue das duas.

Com o tempo, matará a religiosidade e a cultura. Como evitar que se chegue até lá? Na prática, é difícil parar e reverter o processo. Na teoria, contudo, por ser óbvio, é fácil enunciar o caminho em rapidíssimas palavras: pela oração e luta, com muita energia e grande discernimento.

Uma é a nação mais católica da Europa Oriental (ou Central, se preferirem). Outra, a nação mais católica da Europa Ocidental. De outro jeito, a Polônia é a Espanha da Europa do Leste, a Espanha é a Polônia da Europa do Oeste.

Nem vale a pena se estender aqui sobre alguns outros pontos de comum, como temperamento, sociedades em rápida mutação, nível econômico parecido, educação popular em patamares próximos. O mais importante já está realçado, a Fé ardente de ambas.

No século 20, o comunismo, como chacal esfomeado, saltou sobre ambas. Dilacerou-as, mas não conseguiu matá-las espiritualmente. Depois de uma pavorosa guerra intestina, que em muitos de seus aspectos teve traços de cruzada, a Espanha livrou-se de suas garras.

A Polônia, jogada dentro da jaula comunista com a divisão das áreas de influência, combinada em Yalta pelas potências vencedoras da 2ª Guerra Mundial, só escapou das mandíbulas da fera décadas depois, com o desmoronamento dos regimes de obediência moscovita na Europa Oriental.

As duas nações ficaram com seqüelas doloridas e carregam cicatrizes honrosas da investida comunista. E ainda lições de políticas suicidas para evitar a todo custo.

Há outras semelhanças de grande significado. Sobre estas, uma palavra. A Espanha teve um inimigo potentíssimo, só expulso após oito séculos de lutas: o árabe muçulmano.

A Polônia tem ainda diante de si, vivo, ativo e também gigantesco, um inimigo histórico de sua independência, religião e cultura: a Rússia, antes dos czares, depois dos bolchevistas, agora presa de misteriosas e ainda indefinidas forças que ora parecem grã-russas, ora nacionalistas, ora coletivistas, ora libertárias; em geral, uma mistura confusa e indecifrável de todas elas.

Perto da fronteira oriental da Polônia, hostil, move-se nas sombras o urso agressor. Esgueira-se como uma assombração soturna, mas claramente poderosa e com delírios expansionistas.

No passado, a Polônia algumas vezes buscou proteção contra seu inimigo histórico na aliança com a França. Hoje busca proteção contra a nova autocracia moscovita em especial na amizade com os Estados Unidos e na inserção na Europa comunitária. Com isso, ela pôs uma focinheira nas ambições russas e pode viver com relativa segurança e tranqüilidade. Abriu para si possibilidades de progresso, de outra forma inexistentes.

Tais proteções supõem contrapartidas. Os Estados Unidos têm suas condições. Sobre elas, não vou me estender aqui. O preço exigido pela Europa de Bruxelas está sendo desvelado gradualmente. É bem maior, vai mais fundo, até as raízes. A Polônia tem de acertar o passo com um programa utópico e destrutivo, estar em sintonia com uma ainda bastante misteriosa Europa do futuro, moldada pelas correntes revolucionárias mais virulentas.

O que já está claro nesta Europa imaginada, alarma. A parte oculta, mas com doutrina inspiradora e propagandistas bem conhecidos, aterroriza.

Se a Polônia não ceder ─ abandonando princípios e costumes tradicionais emanados de seu passado cristão, é o enunciado da ameaça velada ─, não mais poderá pertencer à Comunidade Européia, que cada vez mais se afirma como um organismo político supranacional, fortemente intervencionista, cujo objetivo é dirigir a vida interna de seus membros.

De outro jeito, para não ser expulsa da Europa comunitária, a Polônia tem de por em prática, ainda que gradualmente, um programa libertário e coletivista. Na execução deste programa, por enquanto enquadrado numa moldura de democracia liberal, cada vez menos neutra e crescentemente intolerante, o laicismo agressivo, o aborto amplo e direitos homossexuais irrestritos, entre outros, são apresentados como irrenunciáveis conquistas da modernidade.

A Polônia vai sendo arrastada no rumo de um horizonte liberticida e anarquista.

* * *

Na Espanha não é diferente. É o mesmo programa para ser executado. E lá, do mesmo modo, promovido pelas correntes que tentam impô-lo à Polônia.

Aliás, o programa é de alcance mundial, com objetivos idênticos na Polônia, Espanha, Itália, Irlanda, Estados Unidos. Os católicos e as correntes com noção nítida do potencial demolidor de tais objetivos, com mais facilidade unirão seus esforços em frente comum se tiverem claro que a investida é inclemente e global.

 A única barreira efetiva a sua aplicação será a energia das reações. Com reação vigorosa, ninguém estará obrigado a pagar a extorsão, resumida na fórmula: ou paga ou é expulso e vai para o castigo, fica isolado. Com reação mole, todos terão de acertar o passo. É questão de tempo.

Aqui entra em especial a Espanha. Por vários meses, em 2009, a Espanha ocupou as manchetes por causa do projeto de lei de ampliação do aborto. O governo socialista trabalhou afincadamente para sua aprovação. Conseguiu que a Câmara Baixa o aprovasse em dezembro de 2009 e que o Senado votasse a seu favor em fevereiro de 2010.

A Espanha autêntica, ligada a seu passado cristão, reagiu corajosa e encolerizada. Entre as contínuas e repetidas manifestações de repúdio houve várias passeatas gigantescas e o Episcopado tomou posições enérgicas, inclusive declarando que o deputado católico que votasse a favor da lei estava fora da Igreja e não poderia comungar.

O governo não cedeu, avançou e venceu a batalha parlamentar. Após a assinatura do Rei em 3 de março último, que mais uma vez decepcionou seus aliados naturais e agradou a seus inimigos, a prática assassina prevista nos textos legais virou lei.

A justificativa da lei revelava muito. A Espanha sentia-se obrigada a acertar o passo com o que seria a modernidade: “La presente ley pretende adecuar nuestro marco normativo al consenso de la comunidad internacional en esta matéria. [...] establece, asimismo, uma nueva regulación de la interrupción voluntaria del embarazo fuera del Código Penal que, siguiendo la pauta más extendida en los países de nuestro entorno político y cultural”. E segue por aí. Os legisladores temiam o anacronismo e a rejeição. Em muitos sentidos, foi uma derrota amarga para a Espanha tradicional.

Vamos nos fixar na situação presente. A Espanha saiu das manchetes, é o que parece e é o que aparece. Em termos. Ela continua nos radares de quem influi e decide.

De fato, a Espanha nunca sai da atenção de ninguém que “pensa Europa”. Desde Napoleão, pelo menos. O Corso tinha seus exércitos opressores, bafejados pela legenda do general invencível. A Espanha não deu bola nem para os exércitos nem para a legenda. Enfrentou-os. 

O imperador dos franceses foi espancado pela reação espanhola, que teve ainda o auxílio poderoso do general Inverno nas estepes geladas da Rússia. Napoleão caiu e a história da Europa tomou rumo diferente, de maior consonância com seu passado cristão.

Agora, como antes, a configuração futura da Europa depende, em boa parte, da força de impacto do inconformismo espanhol. Se, diante das imposições de acertar o passo com o programa libertário em curso, a Espanha reagir em sintonia com sua história de heroísmo, na afirmação destemida de sua inconformidade, seu bom exemplo despertará ódios furibundos, saraivadas de críticas ácidas, mas também revigorará milhões de corações e repercutirá de forma positiva na Europa inteira.

E a Europa de Bruxelas não terá condições de cobrar sua fatura de legislação demolidora. Vai ter de por a viola no saco. Mas caso se deixe arrastar com indolência para a derrota, o Velho Continente estará muito mais próximo do momento em que nele se apagarão os últimos raios do sol que um dia foi chamado de civilização ocidental e cristã.

E como reagirá a Espanha? Qual será a temperatura de seu ânimo? Aqui está a grande questão, talvez a grande questão da política européia nos próximos anos, mesmo que sobre ela não saia uma linha na imprensa.

Na década de 30, seu ânimo foi imbatível. Não temeu a pressão internacional, a zombaria e perseguições internas das correntes revolucionárias e o país esteve disposto a ir até as últimas conseqüências lógicas de suas posições.

Estamos em 2010. Neste último período, aproximadamente 80 anos, a Espanha sofreu uma operação psicológica e moral de resultados trágicos. 

Uma era a Espanha antes de 1936 (hoje, pouco resta vivo e atuante do que apresentava de mais precioso na alma). Nela havia uma corrente profundamente enraizada no seu passado cristão. Era o que tinha de melhor. Dentro dela crescia e se afirmava também outra Espanha. Nesta outra Espanha, revolucionária, que recusava a herança dos ancestrais, os traços mais chocantes eram o ateísmo e a anarquia.

Entre 1936 e 1939, as “duas Espanhas”, que já se haviam chocado com força nas décadas anteriores, enfrentaram-se, armas na mão. Combate de morte, sem quartel.

Quando os canhões se calaram, o país parecia arruinado. Cerca de um milhão de mortos, sofrimentos indizíveis, desgraças pavorosas e destruição sem número. Fome. A Espanha tradicional, exausta, moída, coberta de feridas e exangue, venceu.

E logo depois, a nação foi jogada no ostracismo. Ficou como uma pesteada, cercada por um “cordão sanitário”. Tornou-se uma espécie de pária. Padeceu por muito tempo o horror da sensação de que era a rejeitada das nações e incompreendida até por seus amigos próximos. A provação enfiou as garras na carne da nação.

Surgiu, então, incontido do fundo da alma de milhões de espanhóis um brado: Nunca mais. Passamos por essa, está bem, mas o calvário padecido já está no passado. De novo, não. É tormento demais.

Vamos trabalhar juntos para que não se repitam as condições que geraram tal desgraça. Convém notar que a convicção da premência de encontrar um rumo novo influiu mais no lado que venceu a contenda de 1936. Sem fundamento, sentiam-se eles particularmente culpados pela situação anômala por que passava a nação.

E o que aparecia mais importante? Mudar a mentalidade. Acabar com a mentalidade antiga, vista como rija e inflexível, pautada pelo idealismo e heróica, supostamente responsável pelo sofrimento, atraso e isolamento da Espanha.

Em outras palavras, derrubar don Quijote do cavalo e entregar as rédeas do país a Sancho Pança. Tomo aqui don Quijote, é claro, como exemplo de um tipo de espanhol, e não como o Cavaleiro da Triste Figura foi descrito por Cervantes, caricatura grotesca do idealismo espanhol. E Sancho Pança aqui representa o homem pragmático, sem ideais, egoísta, e não quem poderia representar o bom senso camponês.

Enfim, era preciso acertar o passo com a mentalidade tida como dominante na Europa progressista e nos Estados Unidos que estadeavam riqueza e felicidade. O progresso seduzia. Era contínuo e vinha cheio de esperanças.

Os Estados Unidos atravessavam os golden years e a França as trente glorieuses. Na atmosfera religiosa começavam a soprar os ares do Concílio Vaticano II, de abertura, diálogo e ecumenismo. Numerosos setores da Espanha queriam participar da festa. E logo. Mas para isto precisavam enterrar don Quijote. Foi o que fizeram.

E, metaforicamente, a Espanha se distendeu e começou a sorrir. O mundo ao redor, em resposta, começou a sorrir para a Espanha.

Este fenômeno que já era forte no começo dos anos 50, agigantou-se e ainda continua influindo. Nos anos finais do franquismo, o clima estava já estava bem distendido. Antes gelado, com cortantes borrascas de neve, apresentava-se então morno, quentinho, gostoso. O turismo explodia. As “duas Espanhas” pareciam derreter. A sensação era de que se caminhava para o encontro da fórmula salvadora.

As “duas Espanhas” desapareceram como grande realidade do panorama público do país. O espanhol afirmativo, destemido e idealista ficou na defensiva. O novo espanhol, ecumênico, relativista e hedonista tomou a dianteira. Moldou a Espanha dos últimos anos. Vive em atmosfera de triunfo.

Até quando? Em resumo, a Espanha de Sancho Pança, como uma sucuri, está envolvendo, sufocando, triturando e devorando a Espanha de don Quijote. Se Sancho Pança vencer, a Europa de Bruxelas vence. Se don Quijote vencer, a Europa de raízes cristãs poderá ser salva.

A nova perseguição religiosa

A intolerância laicista virou moda

Péricles Capanema

Acho contraditório, para ficar por aí, o lema de Jacques Maritain, “sociedade laica, vitalmente cristã”. Em certo sentido, resumiu sua proposta de ação. A sociedade estava e continuaria laica. Em outras palavras, os católicos abandonariam o ideal da restauração e aceitariam (pelo menos para efeitos práticos) o triunfo do racionalismo. E assim as instituições teriam como base perene os princípios vitoriosos na Revolução Francesa.

Mas, por causa da ação dos católicos, a sociedade poderia ainda ter uma alma cristã. Seria animada pelo fermento evangélico. Muita gente em numerosos movimentos católicos acreditou nesse lema, nessa espécie de armistício entre a Igreja e a Revolução (no caso, em especial, a Revolução Francesa). Fizeram dele seu norte. Os que estavam de boa fé ou eram ingênuos quebraram a cara. Os outros sabiam o que vinha pela frente. É só olhar a situação da sociedade em nossos dias para ver o que já aconteceu e ainda está acontecendo. Sobretudo, basta observar seu rumo geral.

Não acho que uma sociedade laica possa ser vitalmente cristã. O laicismo trabalhará sempre para matar sua vitalidade cristã, se for autêntica. Foi assim, historicamente. Está sendo cada vez mais assim.

O laicismo, no nascimento, foi hipócrita. Gostava de alardear isenção e de ser garantia idônea de liberdade. Diziam seus propagandistas, depois das épocas obscurantistas do fanatismo e da superstição, a aplicação de suas doutrinas esclarecidas (iluministas) traria a liberdade. Liberdade de pensamento, liberdade de consciência, liberdade de expressão. É um lero-lero, hoje já bastante empoeirado, mas muita gente acreditava nisso, babava de admiração tola. Não deu outra. Logo que os políticos laicistas tomaram o poder na França, em 1792, iniciaram perseguição contra a Religião. O esperado reino da liberdade foi inaugurado com uma ditadura terrorista e sanguinária, história que se repetiu muitas vezes.

Apesar da folha corrida nada recomendável, o laicismo continuou a se proclamar garantia da liberdade. Poderia ter como lema a frase altissonante atribuída a Voltaire: “Não concordo com uma só palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-la”. Voltaire nunca disse isso. Mas é mentira conveniente à propaganda laicista. Por isso tem vida longa. 

Nem Voltaire nunca praticou o que a frase prega. Era odiento e vingativo. Mas gostava de fingir que agia assim. De fato, agiu segundo o que tantas vezes escreveu em suas cartas: “Esmagai o infame”. O infame, segundo ele, era o fanatismo e a superstição, epítetos que os deístas (na moda, naquela época) gostavam de aplicar a católicos que levam a religião a sério. Voltaire é ótimo exemplo dos primeiros tempos do laicismo.

O laicismo nasceu hipócrita, repito. Está ficando cínico. Esta é sua grande evolução: da hipocrisia ao cinismo. Disfarça cada vez menos. Estadeia de forma aberta e crescente que deseja um mundo inteiramente moldado por suas concepções, sem marcas de religião. Mas não abandonou a hipocrisia. É difícil acabar com costumes muitos enraizados.

Exemplos recentes pipocam. Já não se está tolerando no Ocidente simples manifestações de fé cristã, como, por exemplo, crucifixos em salas de aula ou tribunais. Bento XVI, em discurso para o 56º Congresso de Juristas Católicos condenou o laicismo atual que exclui “os símbolos religiosos de lugares públicos como escritórios, escolas tribunais, hospitais, prisões.” E na ocasião lembrou que a Igreja “tem o direito de se pronunciar sobre os problemas morais que preocupam os seres humanos”. 

O laicismo agora quer fechar a boca da Igreja. Encantoá-la. O católico poderá ter, no máximo, convicções internas que se manifestarão (cerceadas) no interior dos templos ou dos lares. Mas nada da vida do Estado, das empresas ou das escolas poderia expressar idéias cristãs.

O que o laicismo nega às religiões, quer para si. Pode dirigir consciências, espraiar-se pelos lares, entrar nas escolas e tribunais, moldar o Estado. Apresenta-se como doutrina totalizadora, isto é, que abarca cada aspecto da vida. Todos os ambientes públicos precisam ter impecável figurino laicista.

Não se contenta em modelar apenas as almas dos seus adeptos. Quer modelar as instituições, a cultura, o Estado. Estamos caminhando para ter não um Estado neutro (era o que dizia a propaganda mentirosa), mas um Estado laicista, moldado de alto a baixo pelas suas concepções do laicismo, inquisitorial contra todas as manifestações que ofendam a seus princípios.

Teríamos de suportar o laicismo com seus preconceitos, parcialismos, credulidades e dogmas. Vou lembrar dois pontos. As reclamações contra o emprego de dinheiro público para financiar obras católicas são sem-número. Alguém já viu reclamações contra emprego de dinheiro público para financiar atos, manifestações ou propaganda de cultos primitivos? Algumas vezes é feitiçaria mesmo. Alguém já escutou protestos contra financiamentos públicos de peças de teatro ou de filmes que são propaganda clara da sociedade libertária? É neutralidade?

Não é um dogma destruidor a liberdade humana sem os limites impostos pela Lei Natural? Quem defende isso, querendo ou não, prepara um mundo de horror, o anarquismo embebido dos mais perigosos instintos humanos. E a propaganda deste dogma corre solta em peças de televisão, teatro e cinema, financiadas com dinheiro público.

Com o tempo, o Ocidente terá pela frente um novo fundamentalismo. O fundamentalismo laicista.

domingo, 12 de setembro de 2010

Horizonte negro

As gracinhas de morte do Tiririca

Péricles Capanema

Tiririca é palhaço eletrônico. Quer virar deputado federal. Parece que tem eleição garantida e ainda vai ser importante puxador de votos. O lema de sua campanha Pior que tá não fica não é apenas debochado e zombeteiro. É também otimista. A realidade pode ficar pior se ganhar a turma na qual entrou o Tiririca.

E assim, na prática, Tiririca está colaborando para a realidade no Brasil ficar pior que está. O PR, integrante da coligação dilmolulopetista (palavra nova, medonha, mas pior ainda é a situação que ela designa) foi o partido que deu legenda a Tiririca, na esperança de que, com os votos dele, consiga eleger mais alguns com poucos votos, o que irá fortalecer a base do eventual novo governo no Congresso. Tiririca poderá levar para dentro da Câmara dos Deputados um ou dois no cangote.

Deputado da base do eventual governo cujo programa agora apoia, o palhaço Tiririca votará, certamente a favor dos projetos que colocarão em prática o programa da facção dominante. Vamos ver de perto alguns efeitos.

O Brasil ficará mais perto na situação interna e na política externa de Hugo Chávez, o ditador bolivariano maluco, que hoje atormenta a Venezuela com carestia, violência, perseguição aos oposicionistas e estatização. O Brasil vai ficar menos livre. Vamos ter, como na Venezuela, garroteamento de liberdades, entre as quais a de imprensa. É só questão de tempo.


O Brasil vai também ficar ainda mais perto de Evo Morales, o índio de araque da Bolívia, cujo programa é um misto de socialismo bolivariano e indigenismo. Nem os pobres, nem os índios melhoraram de vida, mas no seu governo a Bolívia virou forte exportadora de cocaína para o Brasil. Nem podia ser diferente. Evo Morales, além de presidente, tem a chefia de seis federações de cocaleros, os produtores da folha da coca, da qual se faz a cocaína e o crack. Destas folhas, a maioria é processada e transformada em cocaína. Mais de 95% das folhas colhidas em Chapare viram droga. O resto, em chá ou numa espécie de chiclete, ambos tonificantes.


No Brasil, aproximadamente 80% da cocaína consumida é produzida na Bolívia. A política do governo brasileiro de apoio ao cocalero Morales favorece a disseminação de práticas criminosas. E, como resultado, padecemos milhares de mortes e centenas de milhares de vidas jovens destruídas no Brasil.

Tem mais. Se eleita, Dilma continuará a política do governo atual de não qualificar as FARC como organização terrorista. “O Brasil tem uma posição neutra sobre as FARC”,  disse em agosto passado Marco Aurélio Garcia, assessor de Lula e coordenador do programa de governo de Dilma.


O governo brasileiro consegue ser neutro diante do narcotráfico e do terrorismo promovidos pelas FARC. Elas, com este agrado cínico, continuarão a matar inocentes e a ganhar dinheiro com a venda da cocaína. Quem a consome? Parte dela é consumida no Brasil. Outra vez, são milhares de mortes e centenas de milhares de vidas destruídas. Tiririca, como deputado da base aliada, será um apoio importante ao governo que promove esta ignomínia. Vai ficar pior que está.


O PT quer descriminalizar o aborto (de outro jeito, aborto praticamente livre) e criminalizar o que chama de homofobia (de outro jeito, favorecer a homossexualidade). Dilma sempre se mostrou favorável a tais políticas. Em coerência com suas posições no passado, ela deverá estimular legislação favorável a elas. O Brasil vai mudar para pior.


Dilma Rousseff diz que é preciso olhar o passado e comparar. Acha que vale a pena. Pois não. É pra já. Vamos olhar o passado. O passado dela, que está sendo escondido cuidadosamente, alarma. E suas declarações presentes agravam o temor. Ela tem dito repetidas vezes: Não mudei de lado não.


O lado dela no passado foi o da ditadura comunista. Para impor ao Brasil a ditadura comunista, Dilma entrou por livre vontade na VAR - Palmares (Vanguarda Armada Popular Revolucionária - Palmares), organização guerrilheira comunista, que assassinou, roubou e sequestrou. Lá era a guerrilheira Estela. Foi presa e condenada por seus atos. Ficou na cadeia por três anos. Ninguém sabe o que pensa hoje a respeito, pois ela não explica. É a candidata das opiniões desconhecidas. Ela deve essa explicação ao povo brasileiro. Se não explicar, estará tratando de palhaço cada eleitor. É a maior baixaria numa campanha eleitoral. Fazer os eleitores de bobos.

Os prontuários das ditaduras comunistas são os mesmos no mundo inteiro: perseguição aos adversários, perseguição à religião, opressão dos pobres. Todo mundo vira pobre, menos a turminha que manda. A religião só pode ser praticada nos estreitos limites permitidos pelo governo. Tem muita gente com medo de que Dilma Roussef como presidente empurre o Brasil nessa direção. Não mudei de lado não. E este lado, mais dias, menos dias, só trouxe penúria e opressão. Menos liberdade de empreender, menos investimento, mais desemprego, menos renda.

Lula está com medo. Não quer conversa sobre o passado de sua candidata. Nem sobre suas ideias. Só aceita conversar sobre supostos êxitos administrativos da sua escolhida. E ainda aparecem as inverdades de sempre (por muitos qualificadas, sem disfarce, de mentiras deslavadas) de que na juventude Dilma Rousseff defendeu direitos humanos e democracia. A VAR – Palmares a que pertenceu era de linha soviética. Não queria democracia nem dava bola para direitos humanos. Pregava a ditadura.

Lula vende um produto falsificado. O verdadeiro iria amedrontar. Teme que a luz sobre os escuros caminhos de sua candidata arrebente a fraude. Lula desse modo trata o povo como massa de manobra. Os demagogos fazem assim. Tratam o povo de palhaço. É o jeito que sempre arranjaram fascistas, comunistas e populistas para ganhar o poder e nele se perpetuar. São pessoas de mentalidade e doutrinas totalitárias, não pensam como gente comum.

Quem não é palhaço, percebe as consequências do voto debochado e desideologizado no palhaço Tiririca e em muitos outros candidatos sisudos, que querem nos fazer de palhaços. O Brasil vai ficar pior que está, se aceitarmos ser palhaços.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Eleição desfigurada

Inocentes úteis e companheiros de viagem, expressões banidas nas eleições de 2010

Péricles Capanema

Inocente útil e companheiro de viagem são duas expressões atualmente enxotadas do debate político. São como duas velhotas, saíram de moda, ninguém fala nelas. É uma injustiça, as duas têm personalidade irradiante, são gente boa. É pena terem sido tiradas aos empurrões da sala.

De outro jeito, essas duas expressões, de forma resumida e simples, revelam muito. Desvelam num jato só o que antes estava velado a muita gente. Tem mais: a realidade que põem a nu está cada vez mais importante.

Por isso foram escorraçadas do debate. Estão banidas. Ficaram politicamente incorretas. As patrulhas ideológicas as puseram para correr. O objetivo final não é apenas bani-las, é de que sumam da memória popular.

O inocente útil é o que, sem se dar conta ─ pelo menos é mais caridoso pensar assim ─ facilita a execução do programa, do qual ele é suposta ou realmente adversário. Ajuda a tomada do poder por alguém que, no futuro, vai trucidá-lo, moral ou fisicamente.

O companheiro de viagem é o que caminha junto até um ponto da estrada. Ajuda o parceiro a chegar a um ponto determinado de seu programa. Neste ponto, o que quer continuar, descarta o que pretende parar, pois este ficou inútil ou virou um trambolho. O descarte aqui pode significar desde mandar para casa até fuzilar.

O exemplo histórico mais impressionante é o do duque de Orleans (o Filipe Igualdade). Apoiou a Revolução Francesa, votou a morte do primo, Luís XVI, e depois foi guilhotinado, quando não mais servia aos objetivos revolucionários. Ficou a lição trágica, infelizmente pouco aproveitada. Situações parecidas se repetiram largamente na Europa Oriental nos anos posteriores à 2ª Guerra Mundial, em que o comunismo teve a colaboração de inocentes úteis e companheiros de viagem para tomar o poder e se consolidar nele. Depois, ele torceu o pescoço de seus antigos aliados. A sorte reservada a esses infelizes foi o ostracismo, a cadeia ou a forca.

A língua espanhola é mais rombuda que a portuguesa ao qualificar o inocente útil. Chama-o de tonto útil. O mesmo se dá no inglês: useful idiot, idiota útil. Esta expressão ainda é usada nos Estados Unidos. Não pôde ainda ser totalmente escorraçada. O norte-americano está menos acostumado às mordaças que nós. Lá, a reação contra as patrulhas é bem maior que no Brasil.

Só um exemplo. Tem relação conosco. Semanas atrás, 6 de maio, Jackson Diehl, jornalista do Washington Post, escreveu que Mahmoud Ahmadinejad, presidente do Irã, tem a convicção que o presidente Lula é um idiota útil, ajudando o iraniano em seus planos de ter a bomba atômica, Com suas trapalhadas diplomáticas, chamadas por Jackson Diehl de vaidade diplomática de Lula, o Brasil só obteria o adiamento das sanções que poderiam ser a última chance de impedir, pela via pacífica, que o Irã tenha a bomba atômica e desequilibre o Oriente Médio, ameaçando a paz mundial.

* * *

Sei bem como é duro ser escorraçado sem motivo. Pois então, como reparação, vou convidar as duas velhotas a retomar seu lugar de merecido destaque na sala dos debates. Estavam no quintal, escondidas, acorrentadas e amordaçadas. Fui lá libertá-las. Elas merecem. Nada fizeram que desmerecesse sua relevância antiga. E, para lhes fazer mais fácil o retorno à normalidade, alguns exemplos logo abaixo indicarão como andaram fazendo falta. Sejam bem-vindas!

No Brasil temos milhões de inocentes úteis e companheiros de viagens. Contudo, o mais conhecido exemplo do inocente útil da atual quadra da política brasileira é o vice-presidente José Alencar. Empresário e fazendeiro bilionário, homem de família, foi presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais (FIEMG). Sua inscrição no PL foi coerente com sua posição: defesa da propriedade privada e da livre iniciativa. Chegou ao Senado. Ali foi pinçado pelo PT para compor a chapa com Lula. Achou bom, ficou feliz. Representava um Estado, o de Minas Gerais, com o segundo maior contingente eleitoral do Brasil. Era alguma coisa. A razão principal, porém, nunca foi essa. O motivo determinante era ser a caução, o avalista de um programa que confessadamente tinha como objetivo fazer no futuro, do Brasil, um país socialista. Nestes oito anos, o PT aparelhou o Estado, perseguiu opositores na sociedade civil, encheu o Supremo de esquerdistas debandados, favoreceu o MST e as invasões e preparou um programa ditatorial e coletivista (PNDH-3, em sua versão autêntica) que aplicará tão logo asfixie as resistências. José Alencar, o bilionário, homem de família, durante todos esses anos, foi a grande caução. Um dia seus herdeiros certamente chorarão a atitude do antepassado ilustre. Como tantos familiares de inocentes úteis choraram na Europa Oriental e alhures.

Outro exemplo, e tomando o gancho da presidência da entidade de classe dos industriais. Acima, foi a FIEMG, presidida anos atrás por Zé Alencar. Agora, a FIESP, mais poderosa e influente, presidida por Paulo Skaf (de momento, licenciado). É candidato a governador de São Paulo pelo PSB. Ou seja, de outro modo, o PSB acha que Paulo Skaf favorece seus objetivos. Se não ajudasse, não o colocaria como candidato a governador de São Paulo. Vamos ver o que o programa do PSB coloca como meta: “O objetivo do Partido, no terreno econômico é a transformação da estrutura da sociedade, incluída a gradual e progressiva socialização dos meios de produção, que procurará realizar na medida em que as condições do País a exigirem”. Logo abaixo, para não deixar dúvidas: “A socialização realizar-se-á gradativamente, até a transferência, ao domínio social, de todos os bens passíveis de criar riquezas”. Em outras palavras, o PSB declara pública e inequivocamente que, de forma gradual, trabalhará pela socialização dos meios de produção. De outro jeito, pela coletivização das fábricas, fazendas, lojas, etc. Seu candidato é o presidente da FIESP, a entidade que agrupa as pessoas que detém no terreno industrial os meios de produção. O presidente da FIESP aceita ser participante da tarefa de matar com asfixia gradual a classe da qual é representante.É outro inocente útil.

Qual o maior exemplo de companheiro de viagem e inocente útil das últimas décadas? A CNBB. Ninguém mais que a CNBB foi companheira de viagem e inocente útil do programa de fazer do Brasil um país libertário e coletivista. Ela apoiou todas as correntes de esquerda nas suas tentativas de tomar o poder no Estado e agrilhoar a sociedade. As comunidades de base, com apoio maciço no Episcopado, ajudaram a formar o PT. Agora que o programa das esquerdas (sempre foi assim) comporta a aplicação do laicismo intolerante e a expulsão de Cristo das escolas, e de qualquer manifestação pública, ela choraminga. Está contra a abolição dos Crucifixos nas salas de aula e nas repartições públicas, o fim das aulas de religião, a generalização do aborto. É ótimo que esteja. Mas ela, como obstinada inocente útil, colaborou para que o Brasil chegasse até as bordas do ateísmo militante. Com sua ajuda, fortaleceu os que agora querem de novo crucificar Jesus Cristo.

Três exemplos. Poderiam ser centenas de milhares. Ou mais. É a maior praga da vida pública brasileira, a presença obsedante dos inocentes uteis e dos companheiros de viagem. Infelicita-a de alto a baixo, por dentro e por fora. Mas sobre ela não se pode dizer uma só palavra. As patrulhas ideológicas proíbem.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Vale para agora

A esquerda na América Latina tem um calcanhar-de-aquiles: a enorme fragilidade de suas maiorias eleitorais
Péricles Capanema
Virou moda repetir que a América Latina tomou um rumo esquerdista. Álvaro Uribe da Colômbia representaria a grande exceção. Seria inconteste a superioridade da esquerda, se somadas as duas no poder, a carnívora (vou utilizar esta nova terminologia, imprecisa, mas prática) − Cuba de Fidel ou Raul Castro, Venezuela de Hugo Chávez e Bolívia de Evo Morales− e a herbívora, Brasil de Lula, Argentina de Cristina Kirchner, Uruguai de Tabaré Vásquez, Paraguai de Fernando Lugo, Chile de Michelle Bachelet, Equador de Rafael Correa e ainda Daniel Ortega na Nicarágua e Mauricio Funes em El Salvador.
Leitor, você acha que faz uma divisão melhor? Quer deslocar acima alguns da esquerda herbívora para a carnívora? Ou vice-versa? Nenhum problema. Mude. Faça sua classificação. E outros leitores farão classificações diferentes. Natural, é difícil classificar cada um desses governos só na coluna soft ou só na coluna hard. Na prática, as políticas que aplicam são sempre uma mistura de medidas carnívoras e de medidas herbívoras. Em cada tema haverá uma divisão particular entre os governos de tipo soft e os de tipo hard. Até mesmo em cada um dos governos aqui considerados, ao longo dos meses, não é estável a proporção de políticas hard e políticas soft. A proporção está ligada a fatores vários, à situação interna de cada um desses países, a relações de poder internas ou externas, a oscilações na opinião pública, também de âmbito interno ou externo, e a tanta coisas mais.
Mas o que eu queria dizer era outra coisa, chamar a atenção para ponto pouco tratado. Este dragão que tanto atemoriza tem pés de barro. Por que são frágeis seus alicerces? Por isso: suas maiorias eleitorais, absolutas ou relativas, são instáveis. Atenção, distraídos: maioria eleitoral não quer dizer maioria da população; quer dizer apenas votos necessários para vencer uma eleição. Pode estar bem abaixo da maioria da população, entre outros motivos, por causa da abstenção, votos brancos e nulos, número de candidatos, legislação eleitoral. A inconstância das maiorias eleitorais significa pouca convicção ideológica. O mesmo eleitorado que votou na esquerda pode votar, dois ou três anos depois, na direita. Os votos são muito influenciados por razões circunstanciais, em geral ligadas a crises econômicas ou à corrupção, até mesmo na vida privada, fácil de ser percebida pelo público. Em outros termos, se a aplicação do programa revolucionário provocar muitos sobressaltos, parte do eleitorado se voltará contra a esquerda, buscando estabilidade e segurança, o que traria, no caso, o triunfo de correntes contrárias ao socialismo. Nestas circunstâncias, é difícil aplicar com rapidez um programa revolucionário radical. Só há, no caso, uma solução, muitas vezes aplicada sem escrúpulos pela esquerda carnívora. Reprimir e sufocar as reações, utilizando os mais variados meios como demissões, confiscações de bens, prisões, assassinatos, deportações. A tática hoje em geral utilizada é a de ir acostumando o público com os objetivos revolucionários. Na sociedade, com novos costumes, mentalidades e convicções, na maioria das vezes de forte sabor libertário. No Estado, além das medidas de caráter coletivista, em especial o que hoje se chama revolução cultural, como legalização do aborto, privilégios para homossexuais, generalização do divórcio e da eutanásia, descriminação do consumo de drogas, radicalização do laicismo de Estado.

Existe outro fator que precisa ser realçado em negrito. É a generalizada associação no espírito de muita gente (multidões) entre socialismo e compaixão. É uma mentira deslavada, patranha desmentida cruelmente pela História (e também pela doutrina, às vezes evidente, às vezes por via dedutiva), mas muito eficaz eleitoralmente. Historicamente, seria fácil ligar a esquerda com pauperização, crueldade e atraso, todos sabem disso. Mas, enfim, mistificação é uma coisa; realidade, outra. Segundo esta patota, os socialistas teriam pena dos pobres, trabalhariam por eles. Os conservadores, pelo contrário, seriam insensíveis aos sofrimentos dos pobres e defenderiam políticas favoráveis aos ricos. E então fica forçoso; quem é a favor dos pobres, vota na esquerda. Lula se beneficia muito deste mito. Ele, o PT, partido ao qual pertence e seus aliados no poder podem mentir, roubar, dilapidar com despropósitos bilionários o dinheiro público, encher a administração do Estado de incompetentes e corruptos, legalizar medidas de apoio à revolução cultural ou ao coletivismo, em especial no campo, mas para tal contingente mistificado, sempre lhes fica este capital: Lula veio de baixo, foi operário, tem pena dos pobres, trabalha por eles. E o mesmo vale, em boa medida, para seus aliados. Então merecem o voto dos que têm pena dos pobres. Em sentido contrário, seus oponentes, sempre segundo esta mitologia, mesmo quando honestos e eficientes, são insensíveis aos sofrimentos dos que nada têm, bajulam e favorecem os ricos. Então, não merecem ser votados. De um lado, este voto é forte. Tem resistido a muitos desmentidos provenientes de fatos notórios. De outro, fraco. É condicional e superficial. O eleitor, em boa parte, elege uma pessoa tida por ele como compassiva e caridosa. O programa coletivista e igualitário fica em segundo plano. E isto quando chega a entrar em consideração.

Em resumo, se a mistificação fosse destruída no espírito das mencionadas multidões, o voto na esquerda minguaria. E provavelmente não haveria mais as referidas maiorias eleitorais que prejudicam gravemente o desenvolvimento da América Latina. Sei bem que esses fenômenos não são tristes particularidades latino-americanas, como o poncho ou a tequila. Com adaptações maiores ou menores, estão presentes no mundo inteiro.