Um aspecto da pietas austriaca pouco considerado
Péricles Capanema
(publicado em Radici Cristiane nº 35, Roma, junho de 2008)
Por que, quando se fala em um tipo de piedade especial praticado na Áustria, não se emprega a expressão normal österreichische Frömmigkeit? Fala-se em pietas austriaca. É simples. Ela se distingue da piedade comum.
Tem características que se expressam melhor às pessoas com senso histórico, diria eu, por meio do bronze do latim. No caso, o latim evoca com mais energia uma realidade que outrora teve vida e foi influente.
De fato, é um tempo antigo, as características são antigas e quase não existem mais. Mas são atuais. Em especial pela consolidação da União Européia. Vamos ver.
Europeus de todas as épocas sempre perceberam a necessidade de alguma forma de unidade de seu continente. Nem só europeus percebem isso. Muita gente de outros continentes também percebe. E, como disse, é fenômeno antigo. Vem desde a Antiguidade pagã. O grande problema tem sido o como fazer.
Os romanos da Antiguidade, primeiro na República e depois no Império, viam a necessidade de congregar os europeus (mais ainda, os povos em torno de Roma) num grande espaço de convivência, sob a égide do Direito. A ameaça da avalanche bárbara era muito grande. Não foi só fogo de conquista e ambição de poder o que moveu os romanos. Havia um programa subjacente, com traços muito positivos.
Roma congregou, civilizou, procurou a unidade, deu aos povos o Direito, suas instituições políticas, assim como sua cultura e seus hábitos de governo. Foram grandes instrumentos de convivência. De outro modo, criaram grandes espaços de convivência. No meio da desorientação do mundo bárbaro, o Império aparecia como barca de salvação. Tudo isso lhe deu um prestígio imenso.
A destruição do Império Romano significava a ruína e o caos para os povos que Roma mantinha em sua área de poder. Eles, mesmo sofrendo, tantas vezes injustamente, a garra da águia romana, sentiam bem o que lhes era proporcionado por aquela grande união política. Em certo sentido, seus piores temores se realizaram quando o Império Romano ruiu em fins do século V.
Nunca mais a Europa esqueceu essa primeira grande tentativa. Ela viveu no imaginário dos povos saudosos e era até idealizada por eles. E, por isso, ansiavam por sua volta.
No ano 800, o Papa Leão III tentou, ao coroar Carlos Magno imperador do Ocidente, instaurar (de certa forma, restaurar), em condições novas, um ordem política que promovesse a convivência profícua de todos os povos europeus.
Mais uma vez, em boa parte o ideal foi destruído pela incompreensão e maldade dos homens. O império carolíngio se desfez e a Europa sofreu a anarquia como flagelo social. Este ideal, porém, continuou a pulsar no coração de incontáveis europeus. Deu vida à marcha atribulada do Sacro Império Romano Alemão. Persistiu nas instituições até 6 de agosto de 1806, quando Francisco II o extinguiu.
Em todos estes séculos, uma dinastia, entre todas, se destacou como herdeira do ideal romano, continuado e aperfeiçoado nas aspirações carolíngias. Nem precisaria nomeá-la.
A política dos Habsburgos, por séculos, foi a procura de alguma forma de unidade européia. Os Habsburgos, de fato, patrocinaram uma política mais que milenar, a busca deste grande espaço de convivência, onde os povos europeus pudessem desabrochar com segurança.
A própria noção de Cristandade se insere aqui, é a convivência dos povos cristãos sob o bafejo dos Soberanos Pontífices.
Convém agora lembrar uma realidade diferente. Outras dinastias e outros grandes políticos se afastaram dessa rota, diríamos, romana, e procuraram com pertinácia o fortalecimento dos respectivos Estados nacionais, o que provocou, necessariamente, choques sem solução.
Lembro apenas, para não me alongar, Richelieu, Bismarck, Cavour. Surgiu, então, como solução precária e instável a política do equilíbrio europeu. Era a política “sensata”, um jeito de impedir o desastre contínuo, dos que se reconhecem adversários inevitáveis.
Séculos de nacionalismos bestas trouxeram guerras, destruições pavorosas de vidas, de riquezas, de bens da cultura. Gerações e gerações de revanchards remoeram ressentimentos e ódios desnecessários. Que depois desaguavam na sangueira. Era uma situação anômala que urrava por seu fim.
Essa necessidade de pôr fim a uma situação destrutiva esteve no nascedouro da União Européia. Contudo, a nova iniciativa não mais foi bafejada pelo Direito Romano. Nem pelos princípios que manaram do Gólgota.
Veio enfunada por um espírito igualitário, coletivista e libertário. Ateu. É um espírito de maldição. Traz no bojo tragédias mais devastadoras que as que vieram com o fim do Império Romano, do Império de Carlos Magno e depois da política multissecular dos Habsburgos (aqui, bastaria observar o que penaram os povos da antiga Iugoslávia; e ainda penam).
Todas essas iniciativas vitoriosas viveram de um espírito, uma espécie de mística as animava. Refletiam-se nos fulgores da águia romana, no som evocativo da Chanson de Roland, na presença imperial e acolhedora de Maria Teresa. E em infinitas coisas mais. Por isso marcaram tanto a História. Quando sucumbiram, foi, sobretudo, porque já brilhavam pouco aos olhos dos seus participantes as luzes que as animavam.
* * *
Volto à pietas austriaca. Quem participava autenticamente do ambiente impregnado da pietas austriaca, no que ela tinha de mais sadio (não vou falar de contrafações, nem de deformações; esta parte, deixo de bom grado aos apressados detratores) também esteve embebido de um espírito.
Era um espírito de harmonia. Mesmo que iniciante, bruxuleante. A pietas austriaca destacou-se, sob aspecto fundamental, por sentir com nitidez muito própria as incontáveis inter-relações da ordem espiritual e da ordem temporal. Tinha em si potencial para uma grande visão que tendia a abarcar, num lance só, as duas ordens em que concomitantemente se movem os homens. Nesse sentido, não se limitava aos essenciais e prioritários problemas da vida espiritual pessoal.
Quem respirava seus ares, preocupava-se mais facilmente com as realidades da ordem temporal, na sociedade e no Estado. Com isso, analisava com mais naturalidade, sub species aeternitatis, aspectos relevantes da ordem temporal. Este olhar interessado (sob outro prisma, distante) estimulava a temperança e isenção na consideração, e até na defesa, dos interesses, fossem eles pessoais, familiares, regionais ou nacionais. Era uma visão que fazia mais fácil a aceitação nos fatos de um princípio essencial à ordem temporal cristã, o de subsidiariedade.
Em resumo, insinuei acima, existe uma solução para quem anseia ver os povos europeus trabalhando em uníssono. Distantes da brigaria insensata de séculos passados. Esta saída não lesa direitos, reconhece diferenças, trará proveito a todos. Mas é inesperada e, além disso, agora inaplicável nas instituições. Mas pode bem fazer seu caminho no interior das almas. É, no longo prazo, o mais importante.
Qual é? Está na Igreja Católica. Afunda suas raízes no mesmo solo em que medrou a pietas austriaca. Trará a difusão muito ampla de um espírito de harmonia. Preserva, une, melhora.
Tem mais, representa continuidade: continua a política romana, continua a política carolíngia, continua a política habsburguiana. Todavia, acrescenta, traz atualizações e aperfeiçoamentos.
Pela natureza do espírito que estimula, contém antídotos eficazes contra nacionalismos perigosos, coletivismos tirânicos e anarquismos desagregadores. A pietas austriaca abre uma porta extraordinária. Vamos entrar por ela.
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