quinta-feira, 18 de abril de 2019

Compunção


Compunção

Péricles Capanema

Era pouco antes das sete da noite, segunda-feira pacata de abril, e de repente em Paris o fogo, parecendo vomitado do inferno, estralejou violento no madeirame da catedral de Notre-Dame de Paris. Subia, ardia, baixava, lambia e devorava o que encontrava, diante de espectadores aterrados. O mundo, estarrecido e aturdido, julgava ter diante dos olhos o que não podia acontecer. Continuou por horas o espetáculo dantesco.

Pouco a pouco, na capital francesa, depois do choque inicial, pairou o silêncio, a dor, aqui e ali magotes rezavam e entoavam cânticos. Houve também silêncio, dor, desnorteamento, orações no mundo inteiro. Perplexidade. Por fim, cintilou uma nota de alívio. As duas torres estavam salvas. Aos poucos, foi sendo divulgado que muita coisa não tinha sido consumida pelas labaredas. Acidente? Atentado? Por enquanto é prematuro concluir.

Perdoem o chavão, tentei ouvir o silêncio, explicitar o imponderável. Pus atenção nas reações do povo de Paris e do mundo inteiro. De forma particular, nos magotes em torno da catedral crucificada pelas chamas. Havia um denominador comum, a compunção, muito relevante na multidão que rezava e cantava hinos religiosos.

Não pretendo aqui repetir o que outros já comentaram com talento, em especial, valor simbólico, perda, prognósticos. Foco em outro ponto, tem relação próxima com a compunção que, esperançado, observei surpreso.

Imaginei situações diversas, comparações, sempre admitindo a origem acidental do incêndio. Tudo muda, existindo mão criminosa. Se o fogo tomasse a catedral da Milão, também joia da arquitetura gótica, que reações desencadearia entre os milaneses? Na Itália? No mundo? E se o incêndio fosse na catedral de Colônia? Em Chartres? Em Reims? Catedral de Sevilha? Basílica de São Marcos? Na própria catedral de São Pedro? Como reagiriam os nacionais? Como reagiria o mundo?

Ampliei a figuração. Fogo na abadia de Westminster? No Kremlin? Na estátua da Liberdade? No Taj Mahal? Na Esfinge ou nas pirâmides? De que forma reagiria o mundo?
Lembrei-me do horror mundial quando o Estado Islâmico ▬ no caso, de forma criminosa ▬ destruiu dezenas de sítios arqueológicos no Iraque e na Síria.

Entre nós, se o fogo acabasse com o Cristo Redentor? A imagem da Aparecida?

Existe, parece-me certo, em muitos aspectos, traços mais fortes, uma comoção maior, por ter sido Notre-Dame de Paris. Tem relação com o templo, extraordinária expressão da alma medieval, com a ordem temporal cristã, com a França. E com seus reflexos na cultura ocidental.

Por associação, lembrei-me de sermão pronunciado pelo cardeal Eugênio Pacelli, futuro Pio XII, na ocasião legado pontifício, na catedral de Notre-Dame de Paris ▬ 13 de julho de 1937. Foi leitura minha anos atrás, na ocasião fiquei impressionado. Recolhi alguns pequenos extratos: “Como exprimir, meus irmãos, tudo o que evoca no meu espírito, na minha alma, igual na alma e no espírito de todo católico, até direi, em toda alma reta e em todo espírito culto, o nome de Notre-Dame de Paris! Porque aqui é a própria alma da França, a alma da filha primogênita da Igreja”. O Purpurado diz que ali ecoam as vozes de Clóvis, de santa Clotilde, de Carlos Magno, sobretudo a voz de são Luís IX. Ele parece escutá-las. E se pergunta a causa de tanto simbolismo em Notre-Dame. O futuro Pio XII pôs de lado raça e determinismos como causas: “É inútil invocar fatalismo ou determinismo racial. À França de hoje que lhe pergunta, a França de outrora responderá dando a tal herança seu nome verdadeiro: vocação”

Vocação, chamado providencial, realidade superior, imponderável por vários lados, evocada de forma incomparável por Notre-Dame de Paris. Na compunção pela agressão ao símbolo, ainda que de forma germinativa, havia abertura para o simbolizado, a vocação da França.

O impulso extraordinário para reconstruir a catedral, expresso em doações gigantescas (família Pinault, grupo LVMH, família Arnault, família Bettencourt-Meyers, grupo L’Oréal, Apple, para citar alguns grandes doadores) é sintoma do horror que causou na opinião francesa e mundial a devastação do incêndio. Tem importância ímpar. Traz, porém, no bojo uma ameaça: tornar fashion, prestigioso, o movimento pela reconstrução. Com isso, facilmente poderá sair do foco a compunção. Iria minguando, chegaria até ao esquecimento. Semente de restauração, a compunção vale mais que qualquer riqueza.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Anemia do abril vermelho


Anemia do abril vermelho

Péricles Capanema

Desde 1997 o MST promove o abril vermelho. Financiado com dinheiro público, o gigantesco show de agitações reclamou sempre a radicalização da reforma agrária e a implantação de outras pautas da esquerda, etapas para a sonhada sociedade socialista (caminho para a presente situação da Venezuela, na realidade). O MST, na linha de frente, era ajudado em particular pela  CPT e INCRA, trinca do barulho..

Há muitos lustros o agro tem sido atacado por vários meios ▬, um dos quais, invasões de fazendas ▬, em especial pela ação concertada dessas três entidades. O MST (primeira), organização comunista, braço do PT, e a CPT (segunda), extrema-esquerda eclesiástica, protegida pela CNBB (à vera, não apenas protegida, é órgão dela). A terceira, o INCRA.

Nos governos de esquerda, no INCRA diretoria, superintendências e enxames de funcionários solícitos encarniçadamente conluiados com PT, MST e CPT agrediam a propriedade particular no campo. No governo Temer, infelizmente continuou o INCRA a favorecer objetivos do MST (um pouco menos escancaradamente). Agora, sofreu uma trava. Continuam, porém, agentes do órgão em obstinada atuação deletéria, papocam aqui e ali funcionários efetivos e superintendências empurrando no rumo antigo. As três organizações formaram na prática um pactum sceleris (formaram no passado; a realidade ainda existe hoje, diminuída).

Assomou para desgraça do Brasil respiro importante para o MST. Em encontro com representantes da organização criminosa em fevereiro passado, Rodrigo Maia, presidente da Câmara, comprometeu-se a não pautar (colocar para votação) projetos que o criminalizem. Criminalizar a atuação do MST ficou para as calendas. Foi promessa de campanha ▬ espera-se que apenas de momento arquivada. “Toda ação do MST e do MTST deve ser tipificada como terrorismo”, repetia o candidato Jair Bolsonaro. Com o incumprimento do compromisso, o MST preservaria suas possibilidades de ação no futuro.

Amarelou em 2019 o abril vermelho. Só pequena agitação em Salvador, onde um petista, Rui Costa, é inquilino do Palácio de Ondina. A própria Abin não julgou necessário alertar o governo sobre possíveis agitações. Por quê?

Porque o abril vermelho desde sempre foi show totalmente artificial, viveu do dinheiro público. Não representa em nada o sentimento do homem do campo. Em parte, o INCRA, por causa da nova direção, já não impulsiona abertamente a ação concertada do MST-CPT. Ficaram ainda focos infeccionados, já disse. O presidente Jair Bolsonaro apontou outro fator: Incra registra só 1 ocupação no 1º trimestre diante 43 ações no mesmo período de 2018. O MST está mais fraco pela facilitação da posse de armas, iniciativa que terá derivações pelo governo, falta de financiamento do setor público e de ONG”.

O ponto maior é esse, faltou dinheiro público para o abril vermelho. Por exemplo, acabou a farra dos convênios. Contudo, estão intactas as leis e, em boa medida, as estruturas utilizadas pelas mencionadas três organizações. A anemia acabará no dia em que o dinheiro público voltar a fluir.

Lamento prever, gostaria de estar errado, mas vai continuar intacta a legislação e boa parte das estruturas. Não é politicamente correto acabar com a infecção. Temos no Brasil tumores de estimação. São cancerígenos, matam as possibilidades de avanço, prejudicam os pobres, mas são nossos tumores de estimação. Um dos mais virulentos é o programa da reforma agrária.

É, repito, politicamente incorreto enunciar o óbvio ululante: desde o início, lá pelos anos 60, a implantação da reforma agrária representou retrocesso monumental, um atraso de proporções amazônicas. Se nunca no Brasil se tivesse falado de reforma agrária, os pobres hoje estariam mais bem de vida no campo e na cidade, os alimentos estariam mais baratos, seríamos hoje potência agrícola mais poderosa. E as montanhas de dinheiro que foram desperdiçados no programa maluco poderiam ter atendido larga e beneficamente a saúde e a educação.

Inexistisse o xodó pelo tumor, a medida mais comezinha e lógica seria acabar imediatamente com o programa da reforma agrária. Aqui não. E continuam as declarações bestas do tipo: “Vamos aplicar a legislação, o programa da reforma agrária não parou, vai ficar sério”. “Vamos aproveitar os lotes abandonados”.

Todos sabem, são centenas de milhares de lotes com contratos de gavetas, abandonados, empregados para outros fins, produtividade baixíssima. Já foram utilizados 880 mil quilômetros quadrados nessa doidice (o Estado de Minas Gerais, 586. 528 km2, área do Rio Grande do Sul, 281.748 km2; soma dos dois 868.266 km2). Ou seja, se somarmos a área de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul não dá a área esperdiçada na maluquice do programa de reforma agrária (disseminação de favelas rurais, roubalheira, pobreza, clientelismo de movimentos sociais). O agronegócio salva a economia brasileira, garante a balança comercial, distribui riquezas, dá empregos. Sabem com que área? Vejam esse dado: em 2016, a Embrapa Territorial havia calculado a ocupação com a produção agrícola em 7,8% (65.913.738 hectares. 659.137 km2.

Relatório do TCU de 2016 indicava que o valor das áreas com indícios de situação irregular dentro do programa de reforma agrária era de R$159 bilhões, utilizada a avaliação do IBGE. Se for em valor de mercado, pode facilmente chegar a R$300 bilhões. Terra tratada na esbórnia, na desorganização, no desconhecimento. Advertia que bilhões de reais emprestados poderiam não ser pagos (claro, nunca foram). Vejam o disparate nas palavras do relatório do TCU: “Conforme informado pelo INCRA, os créditos eram concedidos a estruturas associativas formais ou informais e distribuídos entre os integrantes dos PAs (projetos de assentamento), não havendo registro individualizado organizado sobre quem recebeu os créditos, ou seja, o prejuízo pode ser muito maior.” Entenderam? Sociedades informais (patotas de privilegiados dos movimentos sociais), sem registro individualizado recebiam dinheiro público.

R$300 bilhões de terras na bagunça. Coloque os empréstimos não devolvidos, os perdões de dívidas, a assistência técnica estatal para aproveitadores, o controle tirânico dos assentamentos pelos agentes do MST, a venda ilegal de madeira. Os escândalos do mensalão e do petrolão são fichinha perto do escândalo do programa da  reforma agrária.

Mas, é claro, não se pode extinguir o programa. Razão técnica? Nenhuma. Não aumenta a produtividade. Razão social? Nenhuma. Piora a situação dos pobres. Razão de paz social? Nenhuma. Tensiona a região em que se implantam os assentamentos. Mas trona e sobrepassa tudo uma razão inamovível. É tumor de estimação. Tumores de estimação são intocáveis.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Ensinar a enxergar é o maior presente do educador


Ensinar a enxergar é o maior presente do educador

Péricles Capanema

Vou falar de assunto que nunca sai de moda. Meio distraído, tardava o olhar pela “Oração aos Moços” de Ruy Barbosa (já a conhecia, pincei-a lá pelos quinze anos na biblioteca de um tio desembargador), quando tomei um susto. Fixei a vista: “Os que madrugam no ler convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas ideias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”.

Li de novo, devagar. Belas palavras, mas tomei outro susto. O famoso brasileiro, já então septuagenário, no texto, aconselhava a seus paraninfados, os moços da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo São Francisco a levantar cedo (tudo bem) e a batalhar na aquisição do conhecimento. Como? Primeiro passo: ler, ler, ler. Chama a isso ocupação vulgar, no sentido de comum, corriqueira, menos importante. Ótima coisa. Muitos leem. Segundo passo, e agora o principal, refletir. Seria coisa rara e essencial para a boa formação, pensar sobre o que se leu. Pela transmutação, fazer do conhecimento ingerido, inerme, ativa ciência própria. Anima os paraninfados à peleja extra, a ruminação que os levaria a aproveitar bem o esforço da leitura. Aí chegaríamos ao homem sabedor, a pessoa que passa além do mero erudito, qualificado pelo douto jurisconsulto de “armário de sabedoria armazenada”. Não mais estante, peça inanimada, que empilha conhecimentos, o sabedor, espírito vivo, atinge o patamar de “transformador reflexivo de aquisições digeridas”.

O método bosquejado por Ruy Barbosa funciona na prática? Se funcionar, é suficiente para uma boa formação, fazer uma pessoa culta? No frigir dos ovos, soou-me um tanto cerebrino, descolado da realidade. Vou meter minha colher de pau.

Tudo se resume, afinal de contas, a conhecer, melhorando, a entender a realidade. O capiau a conhece e entende a seu modo sem nunca ter lido um livro. Dou de barato, é insuficiente, lamento, mas muitas vezes não percebemos em seus comentários mais senso do real que em observações eruditas de homens de gabinete? O frescor de suas expressões não reflete em várias de suas facetas percepção mais exata da realidade? Tal olhar tem valor inestimável.

Enfileiro a seguir, como pipocam na cabeça, alguns provérbios populares. Cada macaco no seu galho. Apressado come cru e quente. Antes só que mal acompanhado.  Casa de ferreiro, espeto de pau. Escreveu, não leu, o pau comeu. A cavalo dado não se olham os dentes. Em terra de cego quem tem olho é rei. Deus escreve certo por linhas tortas. Cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça. Seguro morreu de velho e o desconfiado ainda vive. Para baixo, todo santo ajuda. Um dia é da caça, outro do caçador.

Poderia continuar sem fim. Foram necessários livros para burilar tais ditos? Não. Bastou explicitar, sintética e graciosamente, o que a vida ia ensinando. E é só um aspecto da cultura popular. O livro, porém, precisa deles, sob pena de, muitas vezes, ser digressão de nefelibatas. Adiante. O problema (talvez o maior) da cultura não tem sido sempre a erudição cortada da realidade? E sem o hábito de decifrar a realidade miúda terão vida reflexões sobre livros lidos? Ou serão folhas secas?

Amplio. Onde colocar no método do celebrado tribuno baiano a enorme contribuição de conhecimento que nos invade pelos cinco sentidos ▬ visão, olfato, paladar, audição, tato ▬ aprendizado direto do que sem cessar acontece ao redor nosso? E então, sem preguiça e de forma proveitosa unir as impressões que nos entram pelos sentidos, explicitá-las com critério, e incluir tal conhecimento em nosso acervo?

Tenho escutado muita gente que lê e reflete sobre o que lê. Mas tem preguiça em ver, cheirar, tocar. Observa pouco, não tira suco do convívio e da contemplação da natureza. Dispara comentários desfocados. Faltam ali conversas com mãe, tias, primos, o bate-papo com pessoas de todas as idades e condições sociais, a observação da natureza em sua vida miúda. A boa formação e a alta cultura precisam ter raízes na terra úmida. Não são plantas de estufa. Ensinar a enxergar é o maior presente do educador. E educadores estão em todos os ambientes. Ruminemos, sem dúvida, um olho nos livros, outro na realidade. Esse problema mexe com todo mundo, queiramos nós ou não, de sua solução depende o destino de cada um e da sociedade, nunca sai de moda.


sábado, 13 de abril de 2019

Ponto fora da curva


Ponto fora da curva

Péricles Capanema

Virou coringa a expressão “ponto fora da curva”, tem sido empregada nas mais diferentes acepções. Umas lisonjeiras; outras, nem tanto, envolvem censura, às vezes até carregam nota depreciativa. Vou usá-la como censura. Boi do couro grosso, de há muito acostumado a bordoadas, mesmo as mais inesperadas, posso bem levar mais umas hoje. Paciência. Segue a vida.

Vem da curva de Gauss (1777-1855), parece, sua origem. É uma fórmula matemática utilizada na Estatística, que se exprime, graficamente, à maneira de um sino. A imensa maioria dos eventos analisados estatisticamente cai dentro do sino. Um ou outro fica fora da curva. É o dito ponto fora da curva. Por analogia, aplica-se aos que se destacam, estão além do universo considerado. Daí “fulano é ponto fora da curva em seu meio”. Sicrano, pelo contrário, desceu muito, ficou “ponto fora da curva entre seus amigos de infância”. E assim por diante. Multiplicam-se ao infinito as aplicações analógicas da expressão com raiz na Estatística.

Vou falar do decreto 9.758 de 11 de abril de 2019, triste ponto fora da curva ▬ bagatela para os superficiais, golpe sério para quem enxerga fundo. O diploma legal obriga os membros do Poder Executivo a um só tratamento: senhor (claro, senhora, senhores, senhoras). Por óbvio, exclui da esdrúxula imposição o Legislativo, o Judiciário, comunicações com autoridades estrangeiras e outras exceções.

Vossa Excelência não pode mais, agora é só senhor. Vossa Magnificência, excluído, basta o senhor. Vossa Senhoria, rifado. Doutor, o simples e familiar doutor, banido, onde já se viu chamar alguém de doutor em comunicação oficial? Já está muito bom o senhor, para que mais? Ilustre, fora. Digno, expulso. Respeitável, idem. O tratamento nivelador vale para todos, presidente, vice-presidente, ministros, reitores, poupa ninguém. Majestade e alteza já haviam sido enxotadas faz mais de século. Ficou mais simples, é bom, ruminam alguns. Caminhemos devagar, escapando das armadilhas simplificadoras; nessa uniformizante e igualitária toada, acabaríamos despencando logo nos buracos do cumpanhero e do camarada para todo mundo. Camarada presidente.

Entro por atalho, um exemplo conhecido vai cortar caminho. À vera, até envolto na legenda, tantas as versões sobre os diálogos, ainda que no cerne concordantes. O protagonista é Talleyrand (1754-1838), o “príncipe dos diplomatas”, causeur, brilhante presença de espírito, inteligência superior. À mesa, em ambiente fidalgo, tratava os assuntos da França e da Europa com rapidez, objetividade, leveza; eficácia. Sob as formas refinadas, um auge de senso prático. Em jantares de convívio ameno, depois de cortar a carne, um de seus recursos, com senso da medida honrava a cada conviva ao regalar um pedaço. Com o pitéu, ia junto nas palavras, no tom e no gesto certos o reconhecimento das superioridades devidas à idade, à condição social e ao mérito. Postura sempre simples e natural; nunca postiça ou enfatuada. A um eclesiástico destacado ou um príncipe: “Monseigneur, me daria a grande honra de aceitar um pedaço?” A um duque: “Poderia ter a alegria de lhe oferecer este pedaço?”. A um marquês: “Me daria a alegria de aceitar este? E assim ia, até o mais simples dos convivas.

Ambiente de século 19, restos do Ancien Régime, Paris, outros hábitos, sei bem. Resta uma constatação, sem gosto e cultivo do senso do matizes, sem apreço às variadas fulgurações do espírito, inexiste civilização. O esplendor das formas constituía ali expressão refinada da “unidade na variedade” ▬ a palavra universo vem daí. Busco em Isaac Newton: “A variedade na unidade é a lei suprema do universo”. Variedades harmônicas. Não agridamos inconsideradamente a variedade. Em resumo, o grande espetáculo de cultura do salão de jantar de Talleyrand anos a fio, repetida com variações sem-número de vezes, animou conversas, perenizou-se nas páginas das memórias do tempo, foi degustada em biografias célebres. Chegou viva até nós com seu fulgor de alta civilização. Formou personalidades.

Ao longo dos séculos admirações e imitações sensatas foram nutridas por cenas como a acima descrita em duas pobres pinceladas. Pedagógicas, alimentam o impulso da perfeição pessoal (e social), assim como um exemplo de um santo nutre o desejo da ação virtuosa. E aqui repito: precisamos buscar a simplicidade, mas fugir dos simplismos e simplificações. É raro uma solução niveladora não padecer pelo menos de simplismo; com frequência, empobrece o convívio; e, em decorrência incoercível, a própria personalidade.

Amplio. Valores do Brasil antigo levavam naturalmente a distinguir pessoas e situações com apenas um gesto, uma palavra rápida. Faziam parte do ambiente cultural que encantou muita gente de relevo que viveu por aqui. Sempre me impressionou o comentário de Fernand Braudel, dos maiores historiadores do século 20: “Foi no Brasil que me tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida, eu passei no Brasil”.

O que ele viu, espetáculo de gentileza social ▬ de convívio ▬ que fez entender a vida de forma diversa? Para Braudel, o fundamental em um historiador era conservar o coração da criança (maravilhar-se), surpreender-se com os fatos. E olhar o passado como uma criança percebe as primeiras imagens. Entre 1935 e 1937, floriu no Brasil o coração de criança do historiador,  aperfeiçoou antenas.

Corta. Vamos ser realistas, o Brasil já não está conseguindo fazer inteligentes os homens potencialmente muito inteligentes. Porque está morrendo a nossa forma própria de enxergar a realidade, sufocados os ambientes familiares, onde ela florescia. Corremos risco iminente de já não termos o olhar que nos distinguia.

E aqui volto ao decreto 9.758 de 11 de abril. Esse malencontreux texto, para ser benévolo, é ponto fora da curva, pois vem de um governo que já editou muitas medidas saneadoras ▬ teve muita coisa dentro da curva. Nivelador, simplificador, aproxima-nos de autômatos. Vira as costas para o Brasil que cultivava matrizes de juízo e conduta, apreciava diversidades, harmonizava-as, sabia estimular umas a fortalecer as outras. E com isso criava condições para convívio enriquecedor de personalidades.

No mesmo pacote do decreto 9.758 veio o revogaço. Sugestão: incluam o 9.758 no revogaço.