segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O bom pastor dá a vida por suas ovelhas

O bom pastor dá a vida por suas ovelhas

Péricles Capanema

Tenho lido sobre a situação dos católicos na China e despertam entusiasmo recentes atitudes do cardeal-arcebispo resignatário de Hong Kong, dom Joseph Zen, religioso salesiano, 85 anos, saúde delicada. Cada vez mais isolado nas cúpulas eclesiásticas, cada vez mais ligado e próximo ao católico comum, ao fiel que frequenta igrejas e sacristias (sou um deles). Por quê? Verba movent, exempla trahunt. Peçamos a Deus que em seus próximos passos continue a brilhar a fidelidade, coragem e lucidez.

O perfil atual de dom Joseph Zen o aproxima de um herói anticomunista, o cardeal Mindszenty (1892-1975) que resistiu primeiro ao governo fascista; depois se opôs ao governo comunista de Budapeste (foi preso, torturado e condenado à prisão perpétua em 1949). Ficou na cadeia até ser libertado pelos insurgentes de 1956, quando se refugiou na embaixada dos Estados Unidos. Também se opôs à política de aproximação de Paulo VI com os governos comunistas da Europa Oriental (a chamada Ostpolitk chefiada pelo cardeal Agostino Casaroli). A História já deu razão ao antigo primaz de Eztergom, situação que, aliás, lhe foi tirada por Paulo VI; o martirizado Cardeal era obstáculo aos acordos com Budapeste. Assim se referiu ao cardeal Mindszenty o prof. Plinio Corrêa de Oliveira: ““O non possumus firme de Vossa Eminência, repercutindo no mundo inteiro, vale por uma lição e por um exemplo próprios a manter os católicos na via da fidelidade aos ensinamentos tradicionais imprescritíveis, emanados da Cátedra de Pedro em antigos dias de luta e de glória. E é por esta razão que, a par da admiração, tributamos a Vossa Eminência um agradecimento profundo. […] O Reino Apostólico da Hungria recebeu desde Santo Estêvão a missão gloriosa de ser baluarte da Igreja e da Cristandade. Esta missão, ele a cumpre por inteiro em nossos dias, na Pessoa augusta de Vossa Eminência”.

Ressoam as palavras de Nosso Senhor: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a sua vida pelas suas ovelhas. Porém o mercenário e o que não é pastor, de quem não são próprias as ovelhas, vê vir o lobo, e deixa as ovelhas; e foge; e o lobo arrebata e faz desgarrar as ovelhas”, Evangelho de são João.

A parábola faz lembrar dom Joseph Zen. Pastor zeloso, recusa-se a virar as costas para ovelhas débeis e, congruentemente, sorridente acolher ferozes lobos. No caso, abrir as portas do redil. O cardeal chinês defende a Igreja subterrânea ▬ ameaçada de abandono e traição por muitos dos que a deviam proteger ▬ denunciando perigos mortais na aceitação do predomínio da Igreja patriótica (fantoche do governo), agora favorecida em sua subserviência nas tratativas levadas a cabo por diplomatas da Santa Sé. Sintoma horroroso da presente situação, noticiou o New York Times de 11 de fevereiro que um dos dois bispos católicos da Igreja subterrânea de quem a Santa Sé reclama a renúncia, dom Vicente Guo Xijin, bispo de Mindong, aceitou se demitir e ser substituído por um bispo da Igreja oficial, indicado pelos comunistas.

Dom Joseph Zen comentou no seu blog recentes declarações do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, divulgadas por La Stampa. Começa assim: “Não há razões para temer uma igreja cismática criada pelo Partido Comunista. Desaparecerá com o colapso do regime. Mas será horrível uma igreja cismática com as bênçãos papais”.

O cardeal Pietro Parolin afirmou que iria curar as feridas dos católicos perseguidos na China continental com o “bálsamo da misericórdia”. Retrucou dom Joseph Zen: “Misericórdia para os perseguidores? Para seus cúmplices? Premiar traidores? Castigar os fiéis? Forçar um bispo legítimo a entregar seu lugar para um excomungado? De fato, é esfregar sal nas feridas. Noto que há continua menção à sua compaixão pelos sofrimentos de nossos irmãos na China. Lágrimas de crocodilo”.

“[Os católicos chineses] são vítimas da perseguição de um poder ateu totalitário. Empregar o bálsamo da misericórdia? Não há agravos pessoais para serem perdoados. Eles precisam ser libertados da escravidão. Esta situação dolorosa não foi criada por nós, mas pelo regime. Os comunistas querem escravizar a Igreja”.

Dom Joseph Zen relaciona a presente situação com o passado recente da Igreja: “[O cardeal Paroli] adora a diplomacia da Ostpolitik de seu professor, Casaroli”.

Em matéria do “Wall Street Journal”, 14 de fevereiro, o arcebispo resignatário de Hong Kong analisou as notícias de que a China exige que a Santa Sé aceite os sete bispos da chamada Igreja Patriótica, bem como que dois bispos fieis a Roma apresentem renúncia para dar lugar a dois indicados pelo governo. Sobre tais tratativas, advertiu o cardeal-arcebispo: “Você está colocando lobos na direção do rebanho e eles farão um massacre. Estão indicando más pessoas para serem pastores do rebanho”.

O que querem os católicos chineses? Responde o Purpurado em seu blog: “Verdadeira liberdade religiosa, que não prejudique, antes favoreça o verdadeiro bem da nação”.


Também foi claro a respeito de sua posição relativa ao Papa Francisco: “Continuo convencido que existe uma divisão entre a maneira de pensar de Sua Santidade e a maneira de pensar de seus colaboradores que se aproveitam do otimismo do Papa. Até que me seja provado o contrário, estou convencido que defendi o bom nome do Papa, tirando-lhe a responsabilidade das coisas erradas que estão sendo feitas por seus colaboradores. Se algum dia forem assinados estes maus acordos com a China, obviamente terão o apoio do Papa, então eu me retirarei em silêncio para uma vida monástica. Não serei chefe de rebelião contra o Sumo Pontítice, o Vigário de Cristo na Terra”.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O Arcebispo esbofeteia impiedosamente a verdade

O Arcebispo esbofeteia impiedosamente a verdade

Péricles Capanema

“Neste momento, os que melhor aplicam a doutrina social da Igreja são os chineses”. Chineses aqui são o Partido Comunista da China e o governo da China Popular. O autor da frase é o arcebispo dom Marcelo Sánchez Sorondo, chanceler da Pontifícia Academia das Ciências e da Pontifícia Academia de Ciências Sociais. Argentino como o Papa Francisco, é tido como conselheiro próximo do Pontífice.

Meses atrás o Prelado visitou rapidamente a China, foi recebido com salamaleques em visita controlada e agora, repentinamente, resolveu falar. Desembestou nas bajulações escandalosas: “Os chineses buscam o bem comum, subordinam as coisas ao bem geral. Encontrei uma China extraordinária, o que o pessoal não sabe é que o princípio central chinês é trabalho, trabalho, trabalho. Nada além, no fundo é como dizia são Paulo, quem não trabalha, que não coma. Não têm favelas, não têm drogas, os jovens não têm droga. Existe como que uma consciência nacional positiva”. Pequim “está defendendo a dignidade da pessoa, seguindo más que outros países a encíclica de Francisco ‘Laudato sì’”.

Para ficar completo o servilismo, não poderia faltar o ataque aos Estados Unidos: “A economia não domina a política, como acontece nos Estados Unidos. Como é possível que as multinacionais do petróleo manipulem o Trump? O pensamento liberal liquidou o conceito de bem comum. Em sentido contrário, os chineses propõem trabalho e bem comum”.

Abaixo lembrarei pontos de doutrina. Antes, fatos. Afirmei acima, repentinamente o Prelado resolveu falar. Em termos. Tais declarações não devem ser vistas no mínimo apenas como cadência trágica de covardias diante do tirano intimidador e prepotente. Além de eventuais consonâncias ideológicas ▬ sempre presente entre o Progressismo e o Comunismo (são delas tristes e frisantes exemplos frei Betto e o ex-frei Boff) ▬ essse rebaixamento degradante deve ser analisado no contexto da presente aproximação entre o Vaticano e o governo chinês.

As notícias a respeito das tratativas puseram em choque os católicos e bispos fieis a Roma, hoje na clandestinidade (a chamada Igreja subterrânea), preteridos por bispos e seguidores da Associação Patriótica Católica Chinesa, organismo estatal fundado em 1957 pelo governo para controlar os católicos do País (ela comanda a chamada Igreja oficial, subserviente a Pequim). A mencionada Associação, segundo texto dela, procura implementar “os princípios da independência e autonomia, autogestão e administração democrática” na Igreja Católica da China. Resumido, é organização fantoche do governo e do Partido Comunista. Alguns de seus membros nem se declaram católicos.

Emissários da Santa Sé tentam subordinar a ação pastoral de bispos leais a Roma aos bispos indicados por Pequi, subordinar a Igreja subterrânea à Igreja dita patriótica; em uma palavra, são entregues os perseguidos aos perseguidores. O cardeal dom Joseph Zen, arcebispo resignatário de Hong Kong tomou a defesa dos bispos e dos católicos leais a Roma, abrindo crise séria com a Santa Sé. Adverte o anterior cardeal de Hong Kong: “Nos últimos dias, irmãos e irmãs vivendo na China continental foram informados que o Vaticano está pronto para se render ao Partido Comunista da China”. Continua o Purpurado: “Percebendo que os bispos ilegítimos e excomungados vão ser legitimados e que os bispos legítimos serão obrigados a se demitir, é forçoso que os bispos legítimos e clandestinos estejam preocupados com seu destino. Quantas noites de sofrimento padres e leigos terão de passar pensando que, curvados, terão de obedecer bispos agora ilegítimos e excomungados, amanhã legitimados pela Santa Sé e apoiados pelo governo?” O cardeal dom Joseph Zen informou ainda que o Papa Francisco o advertiu, não quer um “novo caso Mindszenty”. O cardeal Mindszenty se opôs ao governo comunista húngaro e à política de aproximação de Paulo VI com o governo comunista húngaro.

Outros fatos. Dom Sánchez Sorondo garantiu, os chineses “não têm drogas, os jovens não têm droga”. Vai contrao que dizem os próprios chineses. A Comissão Nacional de Controle de Narcóticos, órgão do governo comunista chinês, em recente declaração oficial advertiu que o problema das drogas no país está “se disseminando com grande velocidade”. E a organização Human Rights Watch condena o “tratamento cruel, desumano e degradante” padecido pelos viciados e traficantes nas prisões chinesas. Uma parte, e não pequena, é fuzilada, outra é internada compulsoriamente em locais de reabilitação. A China, que não fornece dados, apavorantes certamente, é tida como o que mais fuzila condenados no mundo, milhares anualmente. Existência de favelas. Sonha dom Marcelo: a China “não tem favelas”. Pergunta o padre Bernardo Cervellera, missionário do Instituto Pontifício de Missões Exteriores (PIME) e diretor de AsiaNews. especialista em assuntos chineses: “Nosso bispo tentou ir ao sul de Pequim? Ali o governo está fazendo sem-tetos aos milhares, desalojando trabalhadores migrantes. Visitou a periferia de Shangai? Visitou as periferias das grandes megalópoles chinesas?” Claro, nada disso viu o apressado e louvaminheiro eclesiástico.

Agora, um ponto de doutrina. João XIII, na “Mater et Magistra” define o bem comum como o conjunto das condições da vida social que permite às pessoas, às famílias e aos grupos alcançarem de maneira mais fácil e plena a própria perfeição. Fica claro, o bem comum facilita a busca da perfeição nos mais variados campos. Começo pelo religioso. No caso, o bem comum deve facilitar a “salus animarum”, a salvação das almas. As gravíssimas advertências do cardeal-arcebispo resignatário de Hong Kong me dispensam de comentar qualquer coisa a respeito. Falei em liberdade religiosa. Recordo agora o ambiente favorável ao desenvolvimento das virtudes morais (alcançar mais facilmente a própria perfeição, ensina João XXIII). O governo chinês as favorece? Por exemplo, o fortalecimento da personalidade, com a consequente ampliação do âmbito da autonomia, é favorecido por governo totalitários? Seria um disparate afirmá-lo. Favorece o pleno desenvolvimento das famílias? E a política, agora oficialmente supressa pelo desastre monumental que ocasionou, de um filho por família? E a imposição dos abortos? Milhões e milhões de abortos impostos a cada ano. Poderia lembrar, sem fim, pontos apavorantes.


Foi título do artigo: O Arcebispo esbofeteia impiedosamente a verdade. Está bem, mas vou acrescentar um advérbio: O Arcebispo esbofeteia impune e impiedosamente a verdade. Deixando mais claro: Na subserviência escandalosa aos tiranos, o Arcebispo impune e impiedosamente o Arcebispo esbofeteia a verdade.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

O que prefere, influência ou poder?

O que prefere, influência ou poder?

Péricles Capanema

Influência ou poder? Já vi, quer juntar os dois. Um ou outro, dependendo das circunstâncias. Se fosse necessário escolher, qual deles? Rumine sem pressa, nem precisa optar agora. E, praticamente, o mais importante é saber agir para ter os dois ao mesmo tempo.

Influência, indica a palavra, fluir para dentro, mexer com o interior, modificá-lo. Poder é imposição, coerção. Nas famílias, tantas vezes o pai tem o poder, pouca ou nenhuma influência. E a mãe, sem poder efetivo, exerce influência. O mesmo sucede em famílias estendidas, pais, mães, avós, primos, empresas, grupos de amigos; enfim, em ajuntamentos humanos de todo tipo. Com uns, o poder; com outros, sobretudo a influência. Existem países de gigantesco poder. Há nações de ampla influência e, relativamente, pouco poder. E é sobre isso que pretendo discorrer hoje. Importa especialmente ao Brasil, país vocacionado para a influência, tem valor para qualquer país.

Joseph S. Nye, professor em Harvard, criou a expressão soft power (poder suave, brando). Está mais ligado à influência que ao poder. Uma das definições do autor: “Soft power á a capacidade de conseguir o que você deseja mediante atração e não coerção ou compra. Brota da atração das políticas, ideais políticos e cultura de um país. Quando nossas políticas são vistas como legítimas aos olhos dos outros, aumenta nosso soft power”. Continua o professor: “A sedução é sempre mais efetiva que a coerção”. Soft power, percepção subjetiva, é simbolismo, irradiação, capacidade de atrair, encantar e ser imitado, até determinar em certa medida a direção da vida.

A ela se opõe a expressão hard power (poder duro). No meio está sharp power (poder cortante). Hard power é poder militar, força econômica. Disse acima, imposição e coerção. Sharp power é a região cinzenta entre os dois extremos, mistura influência e imposição, “confiança na subversão, bullying, e pressão, na promoção da autocensura”, lembra o professor Joseph Nye. Arma de “regimes autoritários, impõe condutas internamente e manipula opiniões externamente”, acrescenta.

O mais conhecido exemplo de sobrevalorização do hard power, acho, vem de Stalin. Em 1935, depois de assinar o pacto de assistência mútua com a Rússia soviética, Pierre Laval, ministro do Exterior francês, queria aliança mais ampla, englobando Mussolini, Inglaterra e até a Igreja Católica. Em conversa com o ditador soviético, para tornar mais fáceis as tratativas, sugeriu a ele que diminuísse a perseguição contra os católicos, duríssima em especial na Ucrânia. Resposta do tirano: “Quantas divisões tem o Papa?” Como o Papa não tinha força militar, nem iria considerar a sugestão. A manifestação boçal do chefe comunista, enorme tolice, negava que o soft power pudesse ser determinante.

Seu maior exemplo de eficácia de que agora me recorde foi a oratória galvanizadora de Winston Churchill durante a 2ª Guerra Mundial, fator decisivo da resistência e vitória da velha Albion. “Winston Churchill mobilizou a língua inglesa e a lançou na batalha”, dito real e que ficou célebre.

Saiu o relatório The Soft Power 30 – a global ranking of soft power – 2017 [Os 30 primeiros Estados em soft power – lista global de 2017, em tradução bem livre], confeccionado sob a coordenação de Jonathan McClory, lido com grande atenção mundo afora por gente influente nos governos, empresas e universidades que contam. Para a elaboração da lista, além de opinião de grandes especialistas, foram ponderados itens como cultura, governo, capacidade de relacionamento, importância e atratividade das universidades, pesquisa, nível da informática; até culinária entra.

A França não lidera apenas em culinária. Em 2017, é a nação mais influente do mundo para tais estudiosos. Em segundo lugar está a Inglaterra. Apenas em terceiro vêm os Estados Unidos. Quarto lugar, Alemanha. A China aparece em 25º, Rússia em 26º, o que mostra a reserva, até mesmo a oposição generalizada a seus intuitos expansionistas, bom sinal.

O Brasil detém a posição 29. Mau sinal. Para o empurrão costa abaixo contam vários fatores, dos quais um é o governo lotado de corruptos que vem desde os dois períodos de Lula e, na percepção mundial, continua até hoje. À frente do Brasil estão países como Cingapura (20º lugar), prestigiada pelo ótimo ambiente de negócios, Suíça (7º posto), simpatizada pelo governo eficaz e limpo. Outros países que nos deixam na rabeira: Japão (6º), Dinamarca (11º), Portugal (22ª). O Brasil é o único latino-americano na relação dos 30. Já fora dela, aparecem Chile (32º), Argentina (33º) e México (34º).

Em área, o Brasil é o 5º país do mundo (e não tem desertos nem geleiras), em população é o 6º. Estar jogado na 29º posição mostra desleixo, desperdício de talentos, falta de norte. Sei bem, a avaliação é subjetiva, cada um pode fazer sua própria lista, com base em critérios diferentes dos usados pelos estudiosos. Contudo, grosso modo, é aceitável a classificação, tem a favor argumentos ponderáveis.

Empurrando para fora do quadro ufanismos nacionalisteiros, sentimos que mereceríamos mais. Mereceríamos, condicional, se fizéssemos por onde. Fizéssemos nossa parte. Estamos fazendo? Ninguém vai garantir. A gente colhe o que planta.

O listão estrala como bofetada no rosto (o pior da bofetada é o som, dizia Nelson Rodrigues). Falta criar vergonha e disparar no rumo certo. O começo de qualquer caminhada correta é a constatação humilde, estar fora do destino reto. Depois, propósito sério de pegar a estrada certa. Onde enxergamos isso?

Nas ruas, o que vemos são blocos de foliões, festeiros pelo menos resignados com a deliquescência generalizada. Daqui a pouco os sequelados das fuzarcas estarão lotando delegacias e hospitais onde equipes zelosas atenderão ferimentos, óbitos, bebedeiras, overdose, mães solteiras, sei lá mais o quê.


Por que lembrar agora problemas, tão na contramão do alegre e irrefletido clima carnavalesco que banha (ou suja) o País? Inconformidade. Quem não percebe, nada disso ajuda a encontrar o norte, evitar o desleixo, eliminar o desperdício de talentos humanos e recursos da natureza. Não me conformo ▬ e, estou certo, tenho companhia ▬ em ver meu país que tem tudo para dar certo por décadas teimando em dar errado. Sou dos muitos que anseiam por uma insurreição dos inconformados, incoercível, pacífica e vitoriosa. Engraçado, fiquei na dúvida, estou achando, o melhor título para o artigo seria “A insurreição dos inconformados”. Vale mais ficar a inconformidade como tema de reflexão, à maneira de um gostinho na boca, do que escolher entre poder e influência. Estimularia a ação dos inconformados, a coorte dos que lançam mão do poder e da influência para levar o Brasil à condição natural disposta pela Providência.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Escalafobético e circuncisfláutico

Escalafobético e circuncisfláutico

Péricles Capanema

O Estadão de 30 de janeiro, seção econômica, relata a situação quase desesperadora da OAS, empreiteira baiana atingida pela Lava Jato e em recuperação judicial (a antiga concordata) desde 2015. Antes da Lava Jato, a empresa tinha em carteira 19,4 bilhões; depois da Lava Jato, 5,1 bilhões de reais. Antes da tempestade, faturava 8 bilhões; consegue de momento 3 bilhões de reais por ano. Tinha 120 mil funcionários; agora, 20 mil. Está ameaçada de falência.

Por onde enveredaram os dirigentes buscando a saída do túnel? Procuraram parceria com grandes empresas de engenharia do Exterior, para disputar licitações aqui e em países da América Latina. A OAS entra com a expertise e a execução. A estrangeira põe o dinheiro. Por aí se salvariam a empresa, os empregos, um know-how conquistado com esforço ao longo de décadas. E, via e regra, o controle do negócio fica nas mãos da estrangeira.

Começa o problema. Quais empresas de fora foram escolhidas ou toparam se associar? Norte-americanas? Inglesas? Francesas? Negativo. Todas chinesas. A OAS já assinou contratos em condições favoráveis com a XCMG, fabricante de equipamentos para a construção civil. A XCMG é estatal chinesa (o Estadão, eufemisticamente, escreve investidores estrangeiros, nem uma vez esclarece que é dirigida pelo governo e PC da China).

Vamos às outras empresas que se associarão à OAS para participar em grandes licitações de obras públicas ou privadas: China Communications Construction Company (CCCC), China Railway Construction Corporation (CRCC) e China Road and Bridge Corporation (CRBC). As três são estatais chinesas. A ampla matéria em nenhum momento traz este fato fundamental, as quatro empresas gigantes com as quais a OAS pretende se associar são estatais chinesas.

Noticia ainda a matéria, outras empreiteiras brasileiras estão interessadas nas parcerias com “os investidores chineses”. Em linguagem crua, por trás, com o Partido Comunista da China e o governo da República Popular da China. Escarrapachando a realidade, são gigantescos trabalhos em comum que ▬ somados a outras iniciativas ecômicas ou de natureza diverssa do Partido Comunista Chinês ▬ representarão passos importantes no caminhar do Brasil rumo à situação de protetorado efetivo, ainda que não confessado, da China comunista.

Desde o governo FHC, importantes passos iniciais, deslizamos para a tragédia que quase ninguém parece ver com clareza e tem a coragem de denunciar. A situação se agravou nos períodos Lula e Dilma (são irmãos ideológicos dos donos da China e sempre os favoreceram) e continua a piorar no governo Temer. Tomem nota: os que hoje dizem que a situação não apresenta perigos, quando a ameaça virar realidade, dirão que não tem mais jeito, é preciso se conformar.

Coloco um porém em maiúsculas. Pela primeira vez, repentinamente, uma voz poderosíssima deu um basta. Tomara que à voz, coerentemente, se sigam medidas eficazes. Sobre ela falo depois.

Algumas outras pauladas recentes que agridem a soberania e a independência nacionais. Em 2017, a China investiu no Brasil 20,9 bilhões de dólares, o maior valor desde 2010. Esse valor não inclui acordos de empresas privadas chinesas que muitas vezes nem são anunciados. E nem eu estou especialmente preocupado com elas. Minha ênfase é investimento de estatais, dinheiro aplicado aqui, em última análise, por determinação do PCC, para aos poucos ir tornando viáveis seus objetivos imperialistas.

Mais uma. Como sabemos, desde 2009, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Trabalha afincadamente para manter tal situação. Em 2017 foi constituído um fundo de 20 bilhões de dólares, do qual participam bancos estatais chineses e empresas brasileiras. Roberto Dumas Damas, professor do INSPER, explica que com o encolhimento do BNDES, os bancos chineses assumiram o papel de financiadores de projetos tocados por empresas da China no Brasil. Vai além na análise e em visão de conjunto constata com frieza que a nação asiática “dá passos largos na direção do posto de nova nação hegemônica do planeta”.

Poderia continuar na mesma direção, mas paro por aqui. Quero comentar logo fato de enorme importância que pode mudar da água (ou do ácido sulfúrico) para o vinho a situação toda. Oficialmente, pela primeira vez, os Estados Unidos, pela voz de Rex W. Tillerson, secretário de Estado, fizeram advertência duríssima a respeito. Em 1º de fevereiro, Tillerson, na véspera de viagem à América Latina, em discurso lido na Universidade do Texas, Austin, enunciou a política dos Estados Unidos para a região.

Sobre a presença da China começou assim: “Instituições fortes e governos que precisam prestar contas ao povo também garantem sua soberania contra atores predadores que agora estão aparecendo na região”. O secretário de Estado vai direto ao ponto: a soberania nacional está ameaçada porque na região atua gigantesco predador ▬ tubarão, hiena ou harpia, por exemplo.

Continuou o secretário de Estado: “A China, como faz com mercados emergentes no mundo inteiro, em geral com investimentos dirigidos pelo o Estado chinês, oferece a aparência de um caminho atrativo para o desenvolvimento”. É resposta direta ao discurso de Xi Ping no 19º Congresso do PC chinês em que afirmou, a China está mostrando com fulgor “um novo caminho para outras nações em desenvolvimento”.

Adverte o chanceler dos Estados Unidos, o caminho chinês troca “ganhos de curto prazo por dependência no longo prazo”. É o segundo golpe seríssimo, (o primeiro, perda da soberania), esse caminho trará dependência. Dependência significa finlandização, satelização, protetorado.

Avisa ainda o secretário de Estado; “Hoje, a China está ganhando posições na América Latina. Usa seu poderio econômico para arrastar a América Latina para sua órbita”. Órbita lembra planetas e satélites, as palavras são claras, tal política lançará os países da região na condição de Estados satélites, só formalmente soberanos.

Termina o ministro do Exterior com a constatação de que o plano vai mar alto: “A China é hoje o maior parceiro comercial do Chile, Argentina, Brasil e Peru. A América Latina não precisa de novos poderes imperiais. O modelo chinês de desenvolvimento, estatista, é um restolho do passado”.

O discurso foi bem pensado. O que está em jogo hoje na América Latina é soberania, Estados satélites e sociedades com governos estatistas que ameaçarão todas as liberdades, religiosa, política, de empreender, de ir e vir.

E é coisa séria. Repito, pela primeira vez, os Estados Unidos, de forma oficial, denunciam ameaça para o futuro da região e tomam posição. Que consequências advirão das palavras de Rex Tillerson? Não sei. Ninguém sabe. Dependem inclusive da própria seriedade do governo dos Estados Unidos.


Falta explicar o título. Escalafobético, esquisito, extravagante, escangalhado. Lideranças da iniciativa privada e setores do governo ainda se entusiasmam com a ação chinesa no Brasil. Mas o governo de país estrangeiro, a maior potência mundial, está preocupado e adverte gravemente. Estamos diante de traição? Irreflexão? Imediatismo? Patetice? Não é esquisito, extravagante, escangalhado? Circuncisfláutico. Misterioso, obscuro, triste, sorumbático, pretensioso. Padecemos situação misteriosa, de desfecho obscuro, nos galarins vemos gente pretensiosa e sem rumo. É triste, pressagia desastres.