segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Advertências necessárias e oportunas

 

Advertências necessárias e oportunas

 

Péricles Capanema

 

Dias atrás o empresário Salim Mattar demitiu-se da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados. Compreensivelmente, foi enorme o desconcerto, em especial no mercado. Todos sabem, pela sua trajetória era o maior símbolo, junto com o ministro Paulo Guedes, da obediência do governo ao programa enunciado na campanha de apoio à propriedade privada, livre iniciativa e desestatização. Menos governo, menos Estado, mais sociedade civil, objetivos expressos de algum modo no slogan “Menos Brasília, mais Brasil”.

 

Salim Mattar deixou o governo, mas não bateu a porta, nem saiu atirando. Homem de grandes responsabilidades familiares, empresariais e defensor há décadas dos princípios do liberalismo econômico, esteve à altura da ocasião com comportamento discreto, firme e educado. Com isso, preservou posições, a partir das quais pode continuar a ser voz ouvida nos debates nacionais. Mas o empresário oliveirense percebeu que o mercado e em especial a opinião nacional dele esperavam palavras de esclarecimento. Não podia simplesmente pedir o chapéu e sair calado. E o fez particularmente em artigo prudentemente revelador intitulado “Por que saí do Governo”. Está na rede. Deixa claro na matéria: “Continuo apoiando a pauta econômica do ministro Paulo Guedes e também do governo Bolsonaro”.

 

Vale a leitura. O mais importante do texto densamente informativo são as advertências. Salim Mattar disse a verdade, mas a prudência guiou a pena e a fez parcimoniosa. O leitor, contudo, com base no que escreveu, caminhando por conta própria, levado por lógica incoercível, pode compor quadro verossímil, bem fundamentado, de um importante bloco de problemas brasileiros. É o que, em parte, procurarei fazer aqui.

 

Vamos às advertências: “A lógica do governo não é a lógica da iniciativa privada”. Não fala em tese, refere-se aqui ao governo no Brasil; óbvio, não tem em vista o governo nos Estados Unidos, em que outro é o ritmo, animado por lógica diferente. Continua: “São mundos absolutamente distintos, mundos que deveriam se complementar, mas, ao contrário, competem entre si”. Precisa bem, o ideal seria complementaridade, o que existe é concorrência. São adversários. O saudável, digo na esteira de Salim Mattar, seria a obediência ao princípio de subsidiariedade em que o Estado, atuando supletivamente, complementasse o que a sociedade, família e grupos intermediários, não pudesse realizar. Não é o que observou entristecido e desgostado o dr. Mattar. Uma casta (ele vai discorrer a respeito) faz do Estado na prática, o adversário da sociedade, de onde suga o nutrimento. É uma disputa destrutiva, prejudicial ao Brasil.

 

Prossegue o empresário em explicação didática: “Se no mundo dos negócios a orientação é mudar para melhorar, no governo é permanecer as coisas como são para manter do jeito que estão”. Mattar aponta descalabro de emperramento, geradora de retrocesso. Por causa de uma burocracia incrustada na administração pública, o Brasil permanece emperrado, vítima de imobilismo parasitário, situação profundamente antissocial.

 

Constata de forma surpreendente: “Os liberais ‘de fora’ que vieram para o governo cabem num micro-ônibus”. De outro modo, tal minoria ínfima procura dar ao Brasil um rumo, rejeitado por ambiente dominado por intervencionistas e estatistas. Mattar viu-se diante de um mastodôntico mundo oficial sevado e viciado no estatismo, que vive bem no meio da incompetência, roubalheira e desleixo próprios às sociedades coletivistas. E agora não surpreende a conclusão: “A tese liberal de reduzir o tamanho do Estado para desonerar o cidadão é aplaudida, mas pouco apoiada”. Com isso, recursos dilapidados. De outro modo, aplausos quase tão-somente para a galeria, atendendo a uma opinião pública de tendência conservadora, mas à vera ação governamental em sentido contrário, de enrijecimento do estatismo. Tal fato se reflete nas dificuldades legais para transferir empresas para o setor privado: “O arcabouço legal do processo de desestatização é complexo e moroso. São quinze agentes envolvidos, do presidente ao ministro setorial, do TCU ao BNDES. Tudo torna o processo burocrático, lento”.

 

O líder empresarial enumera então o que chama de Establishment, ou seja, grupos e pessoas formal ou informalmente articulados para a defesa e promoção de determinado estado de coisas: “O Establishment composto diretamente pelos empregados públicos, sindicatos, fornecedores, comunidades, políticos locais, partidos de esquerda e lideranças políticas” trabalha pelo triunfo do estatismo e dificulta a privatização. São a vanguarda do atraso, responsáveis diretos pela paradeira econômica, crueldade em especial em relação aos pobres. Chamo a atenção para alguns dos responsáveis apontados pelo dr. Salim: os partidos de esquerda, em primeiro lugar. Em segundo, fornecedores, isto é, empresas que trabalham para o setor público. A elas interessa o ambiente de laxismo, propinas, roubalheiras e lucros fáceis. O mensalão, o petróleo o provam. E se impede a eclosão do elotrolão, que mostraria a mesma realidade. Finalmente, políticos de várias orientações, que vivem de indicar apaniguados para estatais, de onde tiram o financiamento para as campanhas e, por vezes, argun para o bolso.

 

Ainda sobre as estatais, informa ele: “As estatais que sobrevivem com subvenções e aportes da União totalizaram um rombo de R$190 bilhões nos últimos 10 anos, dinheiro suficiente para se construir e doar 1,9 milhões de casas populares”. Não é vender as casas a juros subvencionados, vejam bem, é dar de graça. Seria muito mais útil socialmente do que torrar a dinheirama em estatais perdulárias. Também informa que enganosamente foi informado que o Brasil (só o governo federal) tinha 134 estatais, o que já seria um disparate: “Iniciamos uma análise mais detida e encontramos 698 empresas. O Estado-empresário é gigantesco e não quer ser amputado”. A isso se devem somar as estatais dos poderes estaduais e municipais.

 

Ainda pipocam outras advertências no texto de Salim Mattar. Vão na mesma direção do que acima foi mencionado. Explica, por fim, o motivo determinante de sua saída: “Deixei o governo porque, em minha análise de esforço despendido versus resultados, a conta foi negativa. Dedicando meu tempo aos institutos liberais Brasil afora, posso continuar contribuindo para a construção de um país melhor, com menos Estado, menos oneroso para o cidadão e menor interferência na vida privada”. Boa sorte ao dr. Salim, que Deus o proteja.

domingo, 16 de agosto de 2020

Retrocesso, atraso, preconceito e obscurantismo

 

Retrocesso, atraso, preconceito e obscurantismo

 

Péricles Capanema

 

Desprestígio e prestígio. Retrocesso, atraso, preconceito, obscurantismo ▬ tantas vezes mortíferas armas de combate publicitário ▬ são correntemente desfechados como impropérios, repisados a todo propósito. Manifestam, opinião frequente, bom-mocismo, espírito aberto, arejado, compassivo; enfim, pessoal inconformado com a suposta dureza dos adversários diante do sofrimento humano ▬ se não dureza, ignorância, hábitos ronceiros, má-fé. Curto, gente do bem contra gente errada; autores prestigiados, desprestigiadas as vítimas, em geral com pechas afrontosas.

 

São, já se vê, conceitos politicamente corretos. Nos casos acima mencionados, flecha ou punhal contra adversários. Podem também bafejar. Exemplo, inclusão social. Outro, solidariedade. Mais um: avanço civilizatório. Prestigiam quem recebe o apodo e até quem o enuncia. Elitismo deprecia quem dele for alvo. De fato, temos sem-número de termos, punhais ou bafejo, conforme o caso; aparecem a todo momento.

 

Palavras-talismãs. Constituem vocábulos comuns, usuais no dia a dia, transformados em palavras-talismãs. Explico-me. O professor Plinio Corrêa de Oliveira em ensaio “Baldeação ideológica inadvertida e diálogo”, publicado em 1965, cunhou a expressão “palavras-talismãs”, termos que, por artes da propaganda, passam a ter no público o efeito de um talismã (um bruxedo). Lançam eflúvios, criam clima; dependendo do caso, encantam, seduzem, modificam temperamentos, agem nas tendências e convicções. Em rumo contrário, com carga emocional oposta, inibem, atemorizam e até neutralizam pessoas e grupos sociais por elas atingidos. Reitero, têm efeitos parecidos à ação do que hoje se intitula o politicamente correto.

 

A seguir, abaixo vai um extrato do que na ocasião delas explicitou o prof. Plinio Corrêa de Oliveira para os conceitos que atraem o prestígio: “Trata-se de uma palavra cujo sentido legítimo é simpático e por vezes até nobre; comporta ela, porém, certa elasticidade. Empregando-se tal palavra tendenciosamente, começa ela a refulgir para o paciente com brilho novo, que o fascina e o leva muito mais longe do que poderia pensar. Citemos alguns desses sadios e até nobres vocábulos. Torcidos, atormentados, deturpados, violentados, de vários modos, a quanto equívoco, a quanto erro, a quanto desacerto têm eles servido de rótulo! Pode-se mesmo dizer que os efeitos dessa técnica são tanto mais nocivos quanto mais digno e elevado é o conteúdo da palavra de que assim se abusa: ‘corruptio optimi pessima’. Entre as palavras portadoras de um conteúdo digno, assim transformadas em enganosos talismãs a serviço do erro, podem ser citadas: justiça social, ecumenismo, diálogo, paz, irenismo, coexistência, etc”.

 

Simpatias e fobias. Ou xodós e birras. Mostra ele que cada vocábulo desses, trabalhado e retorcido por ambientes culturais que atuam como caldo de cultura, suscita uma constelação de simpatias e fobias: “Assim incubados por um espírito novo, cada um desses vocábulos suscita nas pessoas que se encontram no estado de espírito indicado acima [...] toda uma constelação de impressões e emoções, de simpatias e fobias. Esta constelação, como adiante veremos, vai orientando tais pessoas para novos rumos ideológicos: para o relativismo filosófico, o sincretismo religioso, o socialismo, a chamada política da mão estendida, a franca cooperação com o comunismo e, por fim, a aceitação da doutrina marxista”.

 

Tais termos, lembra o autor, são dotados de irradiantes qualidades publicitárias: “Para esses rumos ideológicos a vítima do processo de baldeação vai sendo cada vez mais atraída pelo prestígio da propaganda. As palavras-talismãs correspondem ao que os órgãos de publicidade reputam, em geral, moderno, simpático, atraente. Por isto, os conferencistas, oradores ou escritores, que empregam tais palavras, só por esse fato veem aumentadas suas possibilidades de boa acolhida na imprensa, no rádio e na televisão. É este o motivo por que o radiouvinte, o telespectador, o leitor de jornal ou revista encontrará a todo propósito essas palavras, que repercutirão cada vez mais a fundo na sua alma”. Palavras-talismãs têm como sinônimo expressões-talismãs.

 

Diminuição das desigualdades sociais. Em resumo, são comummente recursos de guerra publicitária, seja psicológica, seja ideológica. Sobre uma expressão-talismã, de impacto devastador, pela sua importância, trato agora. Em todos os meios de divulgação, quando se analisam políticas públicas, ações de governo, trabalho social, legislação, surge sempre a preocupação: diminuição das desigualdades sociais. É solicitude de si legítima, nobre em certas ocasiões, urgente em outras. Pode ser ocasião, contudo, e infelizmente tem sido com relativa frequência, para políticas de coerção ilegítima do potencial de pessoas e grupos sociais. Um destaque indispensável: envolve de prestígio quem expressa tal cuidado. Virou expressão-talismã.

 

Corta, o panorama vai mudar radicalmente. Em relação a outro âmbito, temos apatia ou desconhecimento; sua menção não traz prestígio e ainda pode provocar incompreensão. Não deveria ser assim, tal âmbito está mais ligado à obtenção da felicidade pessoal, objeto primeiro de todos nós.

 

A ação da família, das sociedades intermediárias e até a do próprio Estado, todos seres morais, deveria buscar em primeiro lugar o bem da pessoa humana, ser substancial, deles participante. No caso do Estado, é clássico, o Estado busca o bem comum. Podemos dizer, para todos vale o objetivo de buscar a felicidade; de outro modo, é o ensino  de Aristóteles, entre outros, a busca da perfeição da natureza humana, que é o que traz a felicidade real.

 

Tal concepção, aliás, reflete-se, pelo menos parcialmente, nos documentos fundamentais dos Estados Unidos. Influenciados pelo Direito Natural, os scholars que redigiram a declaração de independência ▬ recordando os principais, Jefferson, John Adams, Benjamin Franklin, Roger Sherman, Robert Livingston ▬, ecoando opinião comum na época, colocam como direitos inatos, fundamentais e inalienáveis, conferidos pelo Criador, “vida, liberdade e a busca da felicidade”. A busca da felicidade (“pursuit of happiness”) supõe, claro, a vida e a liberdade. Posta tais premissas, fica no centro do desvelo a busca da felicidade, indispensável para a promoção da verdadeira dignidade humana.

 

Coerção das potencialidades. Como se obtém a perfeição da natureza humana, e com ela o caminho da felicidade real? Muito resumidamente, fugindo da atrofia da personalidade, marchando resolutamente na estrada da transformação das potencialidades em atos ▬ o virtual em real. De outro modo, reconhecendo as possibilidades de cada um, as mais variadas, e favorecendo sua concretização. A imposição fria de um princípio geral [no caso, tantas vezes, impor a diminuição irrefletida das desigualdades pessoais e sociais] sufoca esperanças, cerceia caminhos, mingua possiblidades.

 

Potencialidades estimuladas. Em sentido contrário, estimular a busca pelos extremos das possibilidades de cada um oxigena o ambiente, eleva a sociedade, favorece o bem comum. Criar condições ou favorecê-las para a consecução da felicidade pessoal, aqui está: o que mais deveria chamar a atenção, constituir a primeira preocupação de quem quer promover o bem social. Cuidado não só de particulares, mas dos homens públicos. Seria grande obra de justiça social a desobstrução das vias para a plena expansão das potencialidades, evitando coibir de forma artificial, na obediência servil ao dogma revolucionário da igualdade, uma sociedade enormemente variada, harmonicamente desigual. E feliz. Repito, ecoando doutrina aristotélico-tomista, a felicidade virá com a expansão do potencial de cada um, de outro modo, na busca da plenitude.

 

As noções de bem comum, bem social, bem pessoal, deveriam vir nutridas por tais concepções; aliás, prévias e básicas em qualquer iniciativa benéfica. Aí sim, teríamos acelerados avanços civilizatórios, estariam postas bases para solidariedade efetiva, bem como assistiríamos a rápida e gradual inclusão social de setores cada vez mais amplos, hoje infelizmente reprimidos em muitas de suas qualidades. Constitui retrocesso evidente evitar tal caminho, traz atrasos dolorosos em especial para os mais pobres, são políticas que nascem de pré-conceitos (entre eles, a crendice de que o igualitarismo favorece o progresso, quando, de fato, atrofia o desenvolvimento humano), perpetuam o obscurantismo, de outro modo, a falta de clareza a respeito do que à vera representa o progresso na vida. Finalmente, impede a formação de elites nas mais variadas condições sociais, indispensáveis à promoção pujante do bem comum. Aqui estão as bases da ordem temporal cristã.