sábado, 28 de março de 2020

O mundo depois do coronavirus


O mundo depois do coronavirus

Péricles Capanema

Pensei em outro título: hierofantes e pitonisas. Hierofantes saíram totalmente de moda nos meios de divulgação. Até há pouco a palavra era empregada de forma analógica. Na origem, designa os sacerdotes de alta hierarquia que nas religiões de mistérios da Grécia antiga e do Egito instruíam iniciados. Pitonisa era sacerdotisa de Apolo, oráculo, possuía o dom de prever o futuro. Deixei o cabeçalho de lado; embora talvez mais chamativo, relaciona-se menos diretamente com a situação presente. Vou falar sobre o mundo depois do coronavirus, com base em intelectual público que, digamos, junta em si as duas características, é hierofante e pitonisa de nossos dias, quem sabe o mais ouvido. Fala constantemente a políticos, empresários e jornalistas.

Yuval Noah Harari, judeu, mora em Israel, leciona na Universidade Hebraica de Jerusalém. Escreveu dois best-sellers, Sapiens e Homo Deus e vem sendo tido como o palestrante mais bem pago do mundo. Ele publicou com enorme repercussão no Financial Times de Londres, 20 de março último, artigo (de fato ensaio), sob o rótulo “O mundo depois do coronavirus”. Vou deixar que ele explique, apenas destacarei certas partes.

Começa assim: “Esta tempestade passará. A humanidade está enfrentando o que talvez seja a maior crise de nossa geração. As decisões que as pessoas e governos tomarem nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos ▬ economia, política e cultura”.

A tempestade passará, mas deixará sequelas permanentes. Continua Harari : “Precisamos agir rápida e decisivamente, mas sem esquecermos as consequências de longo prazo de nossas ações”. Que mundo habitaremos depois que a tempestade passar? Finca os marcos para a resposta: “A grande maioria de nós ainda estará viva, mas habitará um mundo diferente. Muitas medidas emergenciais se tornarão perenes. Decisões que normalmente tomam anos de deliberação, são aprovadas em horas. Tecnologias imaturas e até perigosas são postas em prática em horas, porque os riscos da inação são maiores. Países inteiros servem de cobaias de experimentos sociais em escala gigantesca”.

Empurra os dilemas para o centro do palco: “Temos dois dilemas. O primeiro, vigilância totalitária contra fortalecimento da cidadania. O segundo, isolacionismo nacionalista contra solidariedade global”. Vigilência totalitária tem também outro nome, ditadura digital. Vai tratar abaixo dos dois dilemas.

Adverte: “Quando escolhermos entre alternativas, deveríamos nos perguntar não apenas como vencer a ameaça imediata, mas também qual espécie de mundo habitaremos depois de a tempestade passar”.

Trata do que é central em seu ensaio: “Pela primeira vez na história a tecnologia tornou possível monitorar todo mundo o tempo inteiro. Os governos podem ter câmeras de reconhecimento facial em todas as partes e extraordinários algoritmos (big data). Em sua batalha contra o coronavirus, muitos governos já utilizaram os novos instrumentos de vigilância. O caso mais importante é a China. Monitorou os celulares, usou centenas de milhões de câmeras, obrigou as pessoas a verificar e informar a temperatura corporal. As autoridades chinesas podem não apenas identificar com rapidez portadores suspeitos de coronavirus, mas ainda rastrear seus movimentos e identificar quem esteve em contato com eles. Aplicativos avisam as pessoas sobre a proximidade de gente infectada. Esta tecnologia não está sendo utilizada apenas no Extremo Oriente”.

Harari explica então que Netanyahu também está utilizando tecnologia semelhante. Houve reações, mas ele legalizou sua atitude com um decreto de emergência, semelhante aos usados contra o terrorismo. Passada a emergência, o decreto cairia. Quem garante? Em Israel há medidas de emergência, adotadas em 1948 por causa da guerra de independência que estão em vigor até hoje, pontua. Dentro da lei, também utilizaram muitos desses recursos a Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura. Ou seja, combateram com eficácia o coronavirus sem destruir direitos. Todos farão assim? E a China?

O escritor judeu chama a atenção sobre a vigilância digital que começa a ser utilizada e que se generalizará rapidamente: a vigilância “debaixo da pele”. “Se não tomarmos cuidado, a epidemia representará importante divisor de águas na história da vigilância. Não apenas porque poderá tornar normal a utilização de instrumentos de vigilância maciça em países que até agora os rejeitaram, mas também, e mais importante, poderá significar a transição dramática da vigilância “em cima da pele” para a vigilância “debaixo da pele”.

Com efeito, com uma pulseira (ajudada pelo celular) o governo vai conhecer a temperatura, o batimento cardíaco, a pressão, os contatos, os programas vistos. Com isso, saberá pelas reações do vigiado os impulsos de alegria, risadas, ódio, tédio, indiferença, movimento de olhos rumo a objetos desejados. Antes de a pessoa ter consciência, já conhecerá suas doenças, propensões, prováveis atitudes. Preverá e até manipulará sentimentos. É um sistema aterrador de vigilância. “As táticas de utilizar dados empregadas pela Cambridge Analytica vão parecer da Idade da Pedra”.

Em tela está a privacidade contra a saúde. Na angústia, quem deixará de escolher a saúde? “Se não fizermos a escolha correta, podemos ser levados a renunciar à nossas mais preciosas liberdades, pensando que é a única maneira de obter a saúde”. É a volta, sob outra capa, da frase infame “better red than dead”. E pode surgir na ponta final do processo a imposição do comunismo, já não mais pela convicção e voto, mas por imaginada exigência das circunstâncias.

Harari é ateu. Descreve com fria objetividade o mundo que na neblina lobriga pela frente. Sua proposta de solução, contudo, soa utópica. Para o primeiro dilema, fortalecer a cidadania. Para o segundo dilema, caminhar para a solidariedade e cooperação global, com base na confiança. É quase o anúncio do desastre inevitável ▬ a crônica da tragédia anunciada. A possibilidade de uma neoescravidão digital assoma no horizonte turvo do presente.

Vou repetir o que ponderou Adamastor Ferrão Bravo no conto “Brigo pelos homens atrofiados”: “Em nossa quadra histórica só resta de pé uma defesa eficaz contra a neoescravidão, é no povo subsistirem vivos o senso moral e os hábitos de liberdade. O que nos livra da pior tirania são tais hábitos sociais enraizados”. O Adamastor tem razão, eles embasariam uma reação salvadora; trata-se de fortalecê-los. Lembrei acima, Yuval Noah Harari é ateu. O Adamastor não; sabe que sem ação sobrenatural não se mantêm vivos e nem se fortalecem o senso moral e os hábitos de liberdade. Oração, vigilância e ação são decisivos e é o que nos resta.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Desassombro


Desassombro

Péricles Capanema

De há muito noto entristecido (e inconformado), a palavra Cristandade de tantas fulgurações vem sendo empurrada de lado. No amplo palacete das ideias, está jogada para desvão pouco iluminado, quase nunca visto e visitado. Palavra, sim, isto é, o conceito; de outro modo, a realidade que expressa.

Trágico, Cristandade não pode ser escorraçada do debate público. Nada apresenta ou fez de infamante; a mais, tem frescor, fulgura de luz dourada. Subo, tem justificação doutrinária sólida e enormes realizações históricas. Contudo, essa é a verdade, hoje causa constrangimentos e assim, parece, seria melhor que não frequentasse a sala, permanecesse discreta na cozinha, meio escondida, junto com vassouras e rodos. Sua presença brilhante em locais de destaque atrapalharia a fluidez normal das conversas, dificultaria aproximações entre os convivas habituais.

Ali na sala e nas partes principais da residência conversam entre si palavras [conceitos] como conservadorismo, valores cristãos, raízes cristãs, valores nacionais, integridade, bons costumes, herança judaico-cristã, filosofia perene, preservação da família. Gente do bem, como se vê. Cristandade, não. O máximo que vi a de regra naquele olimpo se admitiria seria a sociedade laica, vitalmente cristã, para lembrar a famosa formulação maritainista.

Platonicamente, Cristandade ainda pode se considerar amiga de todos os convivas mencionados, tem com eles relações antigas, parentesco. Por isso, por enquanto, fica na área de serviço, esperando a hora de sair sem ruído pela porta da cozinha. Se resistir, é congruente, seria expulsa, a coligação dos incomodados já não mais a toleraria.

Cristandade antes era recusada em particular pelos bad boys. Mas agora vem sendo empurrada de lado por pessoas respeitáveis, com serviços prestados, que têm um ponto em comum: não querem ouvir falar de Cristandade, nem estar em sua companhia, o silêncio a circunda. Quem já padeceu o ostracismo, sabe que é impiedoso, minucioso e feroz.

Corta. Folheava o mensário “Catolicismo” (nº 831), quando dei de cara com: “Cristandade – solução para o vazio da nossa sociedade niilista”. Li de novo. Era aquilo mesmo, a Cristandade apresentada como solução social para nossos dias. Li de novo. Não havia dúvida. Fui para o autor, John Horvat II. Lembrei-me, já havia lido livro dele “Return to Order” e publicado comentário a respeito sob o cabeçalho: “A coragem das definições” (está desde 26.8.2017 em meu blog periclescapanema.blogspot.com).

“Return to Order” provocou-me de imediato uma exclamação: “Meu Deus, que coragem!”. Daí o título do comentário: “A coragem das definições”, de onde recolho: “Existe também a fortaleza do intelectual, dela se trata aqui — o amor à objetividade o obriga por vezes a gravar no papel, conscientemente, palavras que destruirão o êxito profissional e até a nomeada social. Acontece então, a escravidão à verdade o atira sem volta no ostracismo. O pior dos erros é acertar sozinho contra muita gente, constatava amargo e risonho Agripino Grieco. Desbravador arrojado, chegou ao topo do morro, de lá descreveu panoramas novos. Horvat correu riscos — o primeiro, a incompreensão; o segundo, o isolamento. Quis assim. Assoma nítido o desassombro, em especial quando demole barreiras fincadas pelas batidas tiranias das modas do pensamento”.

John Horvat veio ao encontro de minhas angústias. Repetindo em “Cristandade – solução para o vazio da nossa sociedade niilista” a coragem intelectual já evidenciada em “Return to Order”, tratou com desassombro a situação que descrevi acima de forma sobretudo metafórica. Criou até um ferrete, um slogan para indicar a exclusão de Cristandade do debate público: o Anything But Christendom Syndrome, a síndrome do ABC – a síndrome do “Qualquer coisa vale, menos a Cristandade”, doença composta de várias manifestações associadas a uma condição mórbida critica. Tal enfermidade afunda suas raízes em velhos preconceitos liberais, que distorcem a natureza da sociedade cristã, observa ele.

Horvat desafia, desbrava e encurrala. Cordial, seguro, traz de volta para o centro do debate o que a patrulha havia expulsado. Ele, um norte-americano, começa sua justa assim (vou utilizar o original inglês, está na rede): “Graves problemas morais estão destruindo nosso país”. Continua, muitos descrevem bem os problemas, erram nas soluções. Outros, sem analisar causas, propõem soluções inócuas. Outros ainda sugerem saídas de mínimo esforço. A única solução real é o retorno à Cristandade, diz [vai explicar depois].

Observa, todos no debate, na esquerda, no centro e na direita, só não admitem debater uma solução: a Cristandade. É o debate inquinado pela síndrome “Qualquer coisa vale, menos a Cristandade”. Contaminou tanto o campo temporal como o religioso.

Explica como conservadores e direitistas estão com medo de tocar no assunto: “Existem cristãos que de fato desejam a moral com base no Decálogo. Mas não a ousam propor porque parecem esmagadoramente numerosos as pessoas e meios de divulgação contrários. A Cristandade está muito distante da sociedade presente; não é prático propô-la. Para eles, não há chance de vencer. E assim se tornam pacientes da síndrome do ‘Qualquer Coisa vale, menos a Cristandade’. Os cristãos volteiam em torno de todos os assuntos ligados a Cristandade, mas ninguém ousa pronunciar a palavra”.

Por falta de espaço, não vou tratar aqui da refutação que faz aos que chama de “liberais radicais” e “moderados radicais”. A recusa de todos eles em admitir sequer a ideia de Cristandade denota, escreve Horvat, “uma rigidez tirânica, enraizada no materialismo”.

Chega à parte final do artigo: “Como nossos problemas são morais, nossas soluções devem ser morais”. Mostra que a Cristandade é solução natural, postos o Direito Natural e a moral da Igreja, que estão conformes à natureza humana. E daí a maior felicidade e harmonia social, para cristãos e não-cristãos, encontram-se numa atmosfera de civilização cristã. Refuta falsidades, entre as quais a da imposição da Fé ▬ a Fé é um dom sobrenatural, não pode ser imposto. E pontua, tais falsidades estão sendo vociferadas em ambiente convulsionado em que uma coligação anti-Cristandade vem impondo a pauta de que tudo vale, menos a Cristandade. E nas forças da investida estão satanismo, promotores agenda LGBT+, defensores da pauta transgênero, incentivadores das blasfêmias, tudo

Em resumo, os tempos estão maduros para debater a Cristandade. Sua defesa precisa ser feita abertamente, sem desculpas e com entusiasmo.  Trabalho de esclarecimento, em primeiro lugar, a maioria nem sabe o que é a Cristandade. Sem tal debate, a sociedade continuará a afundar na anarquia e no libertarianismo. “Como nossos problemas são morais, as soluções devem ser morais”. E finaliza: “Precisamos urgentemente de uma civilização cristã. Essa é uma proposta [a Cristandade] que deve, pelo menos, ser tomada em consideração”. De novo, felicitações.


segunda-feira, 23 de março de 2020

O apocalipse digital


O apocalipse digital

Péricles Capanema

Neste primeiro parágrafo repito informações constantes de meu último artigo, precisa. Byung-Chul Han é sul-coreano, mora em Berlim, lá é professor universitário. A mais, filósofo libertário, tem livros vendidos no mundo inteiro; no Brasil, a Editora Vozes edita trabalhos dele. Michel Foucault poderia ser tido como um de seus inspiradores. Em 21 de março El País, centro-esquerda, o maior jornal espanhol, publicou enorme ensaio do sul-coreano sobre efeitos do coronavirus.

Nesse artigo, pretendo apenas transcrever afirmações de Byung-Chul Han, falam por si, os comentários meus serão mínimos. Título do ensaio enorme, do qual citarei extratos: “A emergência viral e o mundo do amanhã”. Se quisermos, a emergência do vírus e o futuro. Ele aponta os perigos que lobriga no futuro.

Sabem como o coronavirus é combatido em Pequim? Byung-Chul Han escreve: “A estrutura da vigilância digital tem sido extremamente eficaz para combater a epidemia. Quando alguém sai da estação de Pequim, uma câmera o capta imediatamente. Ela mede sua temperatura corporal. Se a temperatura é preocupante, as pessoas que iam sentadas no mesmo vagão recebem uma notificação no celular. O sistema sabe quem ia e em que lugar no vagão. As redes sociais informam que até mesmo drones estão sendo usados para controlar a quarentena. Se alguém rompe clandestinamente a quarentena um drone é enviado e lhe ordena voltar para casa”. Mais: “O Estado sabe onde estou, com quem me encontro, o que faço, o que busco, em que penso, o que como, o que compro, para onde me dirijo”.

Agora, situação na Coreia do Sul: “Quem se aproxima na Coreia de um prédio onde esteve um infectado recebe no celular, por meio de aplicativo, um sinal de alarma. Estão registrados no aplicativo todos os lugares em que esteve um infectado. Em todos os edifícios da Coreia do Sul existem câmera de vigilância em cada andar, em cada escritório, em cada loja. Com os dados do celular e do material filmado se cria um perfil do movimento completo de um infectado. Publicam-se os movimentos de todos os infectados. Nos escritórios do ministério da saúde coreano existem ‘rastreadores’ que analisam o material filmado e fazem o perfil dos movimentos dos infectados e localizam as pessoas que com eles tiveram contato”.

Em Taiwan “o Estado envia simultaneamente a todos os cidadãos mensagens para localizar as pessoas que tiveram contato com infectados ou informam os locais e edifícios onde existem pessoas contagiadas”. Taiwan “empregou uma conexão de diversos dados para localizar os possíveis infectados em função das viagens que fizeram”.

Foram apenas exemplos relatados no ensaio mencionado. Afirma ainda Byung-Chul Han: “Em Hong Kong, Taiwan e Cingapura existem poucos infectados. Em Taiwan, 108 casos; em Hong Kong, 193. Na Alemanha, em período mais curto, 15.320 casos; na Espanha, 19.980. Entrementes, começou um êxodo de asiáticos que saem da Europa. Chineses e coreanos querem voltar para seus países, porque lá se sentem mais seguros. Os preços das passagens subiram muito, é difícil encontrar lugares nos voos para a Coreia do Sul e China. A Europa está fracassando. A Ásia controla melhor a pandemia que a Europa”.

Continua: “Os Estados Asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan e Cingapura têm mentalidade autoritária. Confiam mais no Estado. Nem na China, nem em outros Estados asiáticos como Coreia, Hong Kong, Cingapura, Taiwan ou Japão existe consciência crítica diante da vigilância digital ou o big data. A digitalização os embriaga. Isso obedece também a um motivo cultural. Na Ásia impera o coletivismo. Na Ásia as epidemias não são combatidas só por virólogos, mas sobretudo por informáticos e especialistas em big data. Os apologistas do big data dirão que ela salva vidas humanas”

Com pequenas modificações, repito abaixo transcrições que já fiz em outro artigo: “Na China em nenhum momento da vida quotidiana você está fora da observação. Controla-se cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes sociais, a travessia em um semáforo vermelho. Na China existem 200 milhões de câmeras de vigilância, muitas com instrumentos de inteligência artificial. Os provedores chineses de celulares compartilham os dados sensíveis da seus clientes com os serviços de segurança e de saúde”. Em Wuhan houve emprego maciço da vigilância digital, em especial compartilhamento de big data. Infectados, suspeitos, encontros deles, tudo era monitorado em tempo real.

Como é possível tal controle, em especial na China? Byung-Chul Han afirma que a noção de “esfera privada” e direitos individuais é pequena na Ásia, em particular na China, ao contrário do que acontece na Europa. Então, as reações são menores que no Ocidente. É claro, há o problema da cultura, mas de momento há um problema muito maior: a China é dirigida pelo Partido Comunista Chinês, ateu, coletivista, imperialista.

E Byung-Chul desagua na conclusão: “A China poderá vender agora seu Estado policial digital como um modelo de êxito contra a pandemia, exibirá a superioridade de seu sistema ainda com mais orgulho. A comoção é momento propício para estabelecer um novo sistema de governo. Oxalá que depois da comoção provocada pelo vírus não se estabeleça na Europa um regime policial digital como o chinês”.

Resumindo, o controle digital minucioso mais que o sistema sanitário, está liquidando a pandemia, salvando vidas. A contrapartida: o controle estatal. É a versão atual do “Better red than dead”, expressão tão ligada a Bertrand Russell; de outro modo, a tentação de dar a liberdade em troca da vida. É 1984 com o domínio do Big Brother. Modernamente, o apocalipse digital.

Chegaremos lá? Não sei. Era inconcebível? Não. Poder-se-ia prever algo assim e nem era tão difícil. Há uns dois anos, o Zeca Patafufo (pseudônimo adotado por este pobre escrevinhador) publicou livro pequeno “Brigo pelos homens atrofiados”, conto jocoso, de fato conto-denúncia. Um dos personagens da história, Adamastor Ferrão Bravo, uma espécie de conselheiro, diz a certa altura: “Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imantada, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista; via nos intentos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza apavorante, a construção da utopia socialista dos ‘amanhãs que cantam’; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores”.

Sobre o perigo do avanço totalitário chinês [ou de outro poder] em países do Ocidente, o mesmo Adamastor Ferrão Bravo observou: “Em nossa quadra histórica só resta de pé uma defesa eficaz contra a neoescravidão, é no povo subsistirem vivos o senso moral e os hábitos de liberdade. O que nos livra da pior tirania são tais hábitos sociais enraizados”. Acho que o Adamastor tem razão.

É problema distante do Brasil a ingerência chinesa? E nem falo agora na economia. Devagar. O governador do Distrito Federal pediu oficialmente o auxílio chinês para combater o coronavirus. Nove governadores do Nordeste, o Consórcio Nordeste (Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia) fizeram o mesmo. Os mandatários do Nordeste afirmam que passaram a admirar ainda mais o povo chinês pela forma como enfrentou o coronavírus. São até agora dez governadores pedindo que a China comece logo a trabalhar aqui com qualquer forma de ajuda, pessoal, equipamentos, orientações, remédios. Pode aumentar o número dos suplicantes. Adamastor tinha razão.

domingo, 22 de março de 2020

A canhotada pira


A canhotada pira

Péricles Capanema

Marcos, ídolo do futebol, antigo goleiro do Palmeiras e da seleção, em 21 de março pelo instagram deu os parabéns de aniversário ao presidente Jair Bolsonaro, torcedor do time: “Feliz aniversário Presida! Força aí nesse momento, seja mais Jair e menos Messias, mantenha a fé, a paciência, humildade e a responsabilidade que o cargo exige, do mais, tamo junto! OBS: agora a canhotada pira, aguenta ou surta! Desativei os comentários, pronto, agora só eu falo, pra quem gosta de Cuba e Venezuela e querem que aqui seja igual, vai se acostumando e treinando a ter um ditador aqui no meu insta!”

A canhotada não aguentou, pirou. Marcos segurou as bolas e chutou de volta: “Fui roubado pelo maior esquema de corrupção da história da humanidade, vcs perdoaram? Eu não! Vcs são melhores que eu!”. A canhotada não surtou, mas pirou de novo.

Mais tarde, parece, gol vazado, Marcos mudou o tom e postou: “Amigos, agora é sério, sem tretas e provocações, o problema é grave. Torço do fundo do meu coração para que eu, toda minha família, vocês e os seus, consigamos passar por essa guerra sem perdas, vou dar um tempo com as brincadeiras e provocações políticas, porque não é mais o momento pra isso. O assunto é muito sério, vou dar um tempo por aqui, cuidem-se e que Deus proteja a nós e aos enfermos desse mal”. Não sei o que terá acontecido. Fica a impressão, houve contraofensiva cerrada. Imaginei, o título desse artigo poderia ter sido: Intolerância e exclusão.

Pouco depois, Marcos prometeu ajudar com um salário mínimo mensal durante seis meses a dez desempregados. Atitude bonita, ajudar os que agora sofrem, merece elogio.

Pensava, o Marcos foi jair, tenta ajudar (seja mais Jair e menos Messias). Mas quem resolver o caso do coronavirus vira messias. Foi aí recebi um verdadeiro ensaio enviado por amigo colombiano de décadas.

A análise é de 21 de março, publicada no El País, diário de Barcelona, o principal da Espanha, centro-esquerda; digamos, seria a Folha de São Paulo de lá. O autor do trabalho é Byung-Chul Han, intelectual sul-coreano que mora em Berlim, filósofo celebrado e professor universitário. Tem livros de ampla circulação em especial na esquerda libertária, vários dos quais traduzidos para o português e vendidos aqui. A Editora Vozes (que publica os livros de Leonardo Boff) edita livros de Byung-Chul Han. Por aí já se pode ter uma primeira ideia de qual orientação tem o sul-coreano. Ele pisaria, para simplificar, as pegadas de Michel Foucault. O título do ensaio que está no site do El País (seção Ideas – Opinión): “La emergência viral y el mundo del mañana. Byung-Chul Han, el filósfo surcoreano que piensa desde Berlim”.

O mais importante já está no cabeçalho: o mundo de amanhã. O ensaio começa com uma constatação: “Em Hong Kong, Taiwan, Cingapura existem poucos infectados. A Coreia do Sul também já superou a pior fase. Igual, Japão. Mesmo a China, o país de origem da pandemia, já a tem bastante controlada. Mas nem em Taiwan, nem na Coreia do Sul foi decretada a proibição de sair de casa, não foram fechados restaurantes e lojas. Entrementes, começou um êxodo de asiáticos que querem sair da Europa. Chineses e coreanos querem voltar para seus países, porque lá se sentem mais seguros. Os preços das passagens aumentaram. Está difícil conseguir passagens para a China ou a Coreia”.

Continua Byung-Chul Han: “Os Estados asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan, Cingapura têm mentalidade autoritária. Não apenas na China, mas também na Coreia ou no Japão a vida quotidiana está organizada muito mais estritamente que na Europa. Para enfrentar o vírus, os asiáticos apostam na vigilância digital. Na Ásia as epidemias não são combatidas só por virólogos, mas sobretudo por informáticos e especialistas em big data. Os apologistas da big data dirão que ela salva vidas humanas”

O filósofo diz que quase não há reação contra a invasão da vigilância digital na vida diária dos cidadãos. Continua: “Na China em nenhum momento da vida quotidiana você está fora da observação. Controla-se cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes sociais, a travessia em um semáforo vermelho. Na China existem 200 milhões de câmeras de vigilância, muitas com instrumentos de inteligência artificial. Os provedores chineses de celulares compartilham os dados sensíveis da seus clientes com os serviços de segurança e de saúde”.

Explica como foi detida a pandemia em vários locais da Ásia, em Wuhan inclusive, com o emprego da vigilância digital e compartilhamento de big data. Infectados, suspeitos, encontros deles, tudo era monitorado em tempo real. E aqui chego ao que pretendo particularmente destacar hoje: “A China poderá vender agora seu Estado policial digital como um modelo de êxito contra a pandemia, exibirá a superioridade de seu sistema ainda com mais orgulho. A comoção é um momento propício para estabelecer um novo sistema de governo. Oxalá que depois da comoção provocada pelo vírus não se estabeleça na Europa um regime policial digital como o chinês”.

Resumi muito, o ensaio é enorme. Em duas palavras, o controle digital minucioso mais que o sistema sanitário, está liquidando a pandemia, salvando vidas. A contrapartida: o controle estatal. É a versão atual do “Better red than dead”, expressão tão ligada a Bertrand Russell; de outro modo, a tentação de dar a liberdade em troca da vida.

Daqui a pouco poderão chegar ao Brasil equipes chinesas para ajudar no combate ao coronavirus. Alucinações? Elas já estão na Itália. Lá também estão médicos cubanos que foram aplaudidos ao desembarcar. Está também chegando a ajuda russa, equipamentos e cerca de 100 médicos epidemiologistas.

As patrulhas calarão os brasileiros temerosos de perder a liberdade? Se os emudecerem, a canhotada vai então deixar de pirar e passar a ganhar de goleada. Concluo. Não estou inventando hipóteses distantes. Existe o problema, arrombou nossas portas. Apenas o exponho ao ecoar de forma muito resumida, praticamente sem comentários, o que um intelectual libertário, inimigo do capitalismo, afirmou em diário esquerdista espanhol de grande circulação.

sábado, 21 de março de 2020

Bem comum, tema antigo, sempre palpitante


Bem comum, tema antigo, sempre palpitante

Péricles Capanema

Bem comum, expressão que aparece a toda hora; trocadilho perdoado, bem comum é bem comum. Natural, entre outros efeitos, de sua conceituação correta depende o bom governo. Para mim, portanto, já de saída, matéria atual, essencial, embora a veja distante das manchetes. Para outros, será assunto ultrapassado e desinteressante, pouco importaria ter noção certa dele. Para fazer bom governo, bastaria ter seriedade administrativa. Ademais, coisa para lá de debatida; justificadamente longe das manchetes. Não seria objeto de livro best-seller; quando muito serviria para livro long-seller.

Claro, é questão velha; martelo, porém, nunca deixou de ter atualidade incandescente, própria aos grandes problemas, eles são perenes. Com efeito, em muitos sentidos o que é verdadeiramente atual deixa ver sempre a nota do perene ▬ eco do imorredouro no presente. O resto é só o momentâneo, o passageiro, o fugaz, o efêmero, o fugidio, sei lá o que mais. Realidades breves evanescentes, minguando rumo ao nada.

Mesmo o juiz de Direito, embora atento à letra da lei, precisa ter como fundo de quadro o bem comum. Comanda o artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Na mesma direção, o artigo 8º do Código de Processo Civil: “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum”. De outro modo, o juiz nunca deve ofender o bem comum ao aplicar a lei. Tais disposições ecoam vetusto aforisma do Direito Romano: “salus populi suprema lex esto”. Que a salvação do povo seja a lei suprema. A expressão salus populi aqui poderia ser traduzida por bem comum.

Escrevi acima, “de sua conceituação correta”. Então, o que é o bem comum? Faça um teste, procure quem o defina nos livros e entre conhecidos. Em 90% dos casos, por baixo, topará com palavras pouco esclarecedoras., quando não bobagens. Espero que nos restantes 10% tenha melhor sorte. Tive um professor, dizia sempre, esqueçam o bem comum, ninguém sabe o que é. E clareza a respeito do bem comum é dos pressupostos mais importantes para quem pretende ter presença útil na vida pública de um país, não importa em que grau.

A respeito, sorte tive uma vez, dela não me esqueço. Sempre me impressionou a exposição sobre o bem comum feita por João XXIII na “Pacem in Terris”, continuação em especial dos ensinamentos a respeito de Leão XIII, Pio XI e Pio XII.

O núcleo do conceito ali está perfeitamente exposto. O Pontífice afirma “o bem comum diz respeito ao homem todo, tanto às necessidades do corpo, como às do espírito”. O Papa lembra a seguir a definição já constante na “Mater et Magistra”, “conjunto de todas as condições da vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”. Pontua, os “moldes”, aquilo que caracteriza o bem comum, devem favorecer a obtenção da salvação eterna. E finalmente desagua na conclusão´: “a realização do bem comum constitui a própria razão de ser dos poderes públicos”.

Trata-se então de ilustrar e enriquecer tais afirmações. Vou me deter em um ponto “favorecer o desenvolvimento integral da pessoa humana”. É desenvolvimento “tous azimuts”, nada fica fora. Cada situação na vida social que obstaculize o pleno desabrochar das qualidades das pessoas irá contra o bem comum. Das pessoas e grupos sociais também, bem entendido, o primeiro dos quais e o mais importante, a família; ampla, moralizada, englobando muitos ramos, enraizada, influente. Recordo, mais que o ouro ou o petróleo, tais potencialidades a serem desabrochadas constituem o maior ativo que têm as famílias os grupos sociais e os países. Em suas lutas para subir, facilitar o desenvolvimento das potencialidades é o que mais pode evitar o decaimento, promovendo amplíssima inclusão.

Esse caminho em direção à plenitude será o verdadeiro avanço civilizatório de que precisamos, poupando-nos da desgraça vivida hoje, entre outros, por Cuba e Venezuela, trágicos exemplos de ditaduras que provocam atrofia social. Enfim, nos livraríamos de retrocessos revolucionários, seríamos poupados dos atrasos viabilizados pelas vanguardas progressistas.

Aqui estão pontos fundamentais do debate público. Com senso de proporção, pautados pela justiça, são prioritários o combate à atrofia e o estímulo à plenitude da vida social, dentro da qual está a econômica. Integram o bem comum, tornam possível a realização pessoal e a felicidade.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Decepção


Decepção

Péricles Capanema

Tornou-se parada obrigatória o novo coronavirus. Não é para menos, basta atentar para o que os infectologistas estão advertindo. Não será diferente comigo, ponho o pé na estrada ecoando declarações; nos últimos dias duas me chamaram especialmente a atenção pelo que apresentam de auspicioso e relevante. Logo chegarei a decepção, objeto do artigo.

Sobre a disseminação do vírus, assisti na internet análise circunstanciada do professor Roberto de Mattei que soube unir em uma só palestra a erudição segura, a profundeza da análise e o sensus fidei. Título da postagem, Nuevo escenario mundial de Mattei. Circunspecto (aquele que olha em torno de si, considera toda a realidade), discorreu como scholar e líder católico. Em suma, não escondeu o perigo, mas o observou com olhar sobrenatural, poucos o têm, faz falta enorme.

Falei em líder. Palavras singelas vieram de outro dirigente, Ivan Duque, presidente da Colômbia ▬ potência emergente, 50 milhões de habitantes, mais de um milhão de quilômetros quadrados. Ali, de igual modo, transparecia fé: “Tenho em meu escritório o quadro de Nossa Senhora de Chiquinquirá, padroeira da Colômbia. Esta manhã me levantei pedindo à padroeira da Colômbia que nos consagre como sociedade, que consagre nossa família, nossos filhos. Que me consagre, tenho responsabilidades. A padroeira da Colômbia nunca nos abandonou. Sei, palavras assim não são comuns em minha posição”.

Pelo que consta, nenhum chefe de Estado até agora usou palavras assim. No mínimo o primeiro mandatário colombiano considera que, no fundo, pedir orações, exame de consciência, penitência, espírito sobrenatural ajudará o povo a trilhar o rumo certo.

Em tal caminhada, opinião generalizada, teremos pela frente meses de incerteza e sofrimento. Noto aqui, pois nada disso percebi nas análises, a provação criará condições melhores para orações, exames de consciência, elevação de vistas, emenda de vida. Ad augusta per angusta. Em tal caso, o sofrimento terá sido, tudo pesado, uma bênção. Lembrará a Nínive do profeta Jonas. De outro lado, como evitar ter em vista os anos loucos, les années folles da década de 20, em que os pavorosos sofrimentos da 1ª Guerra Mundial trouxeram, como desabafo e ricochete, explosões de desregramentos? O mundo civilizado em boa medida desperdiçou oportunidade extraordinária de regeneração, para muitos dele terá acontecido o pior, o naufrágio.

Passo agora ao tema do cabeçalho. Por que decepção? Decepção com o quê? Promessa, e promessa é dívida; a mais acho importante levantar a matéria. De maneira crescente amigos me têm feito comentários exasperados sobre a qualidade pessoal dos políticos que nos governam, esperavam muito mais ▬ decepção enorme. A respeito de alguns, pairavam esperanças. As deblaterações não são de agora, já borbotavam antes do estouro do coronavirus, que só agravou o quadro. Prometi algumas linhas a respeito e só vou tratar agora de um aspecto, em geral silenciado. Em artigo futuro, cuidarei de outros aspectos.

Era justificável a esperança? Foi surpresa a decepção? Sob certo ângulo, entro por assunto antigo, já no Império se criticava a classe política. Com palavras talvez um pouquinho diferentes, Ulysses Guimarães comentou décadas atrás a respeito: “Está achando ruim essa composição do Congresso? Então espera a próxima: será pior. E pior, e pior.”

Por quê? Culpa só dos políticos? Ou culpa sobretudo do eleitor que é quem os despacha para Brasília? Sabemos, a grossa maioria da população brasileira hoje já não sabe que deputado federal sufragou em 2018. Votou pouco informada, desatenta, desinteressada em candidatos que de fato não conhecia. À vera, nem interesse tinha de conhecê-los. Depois, uma minoria vociferante relama, repercutindo sentimento geral.

A representatividade política no Brasil vem caindo, repito, já constatava Ulysses Guimarães. Outros ainda. Faz parte de fenômeno mais amplo, descrito com vivacidade e realismo contundente por Nelson Rodrigues, que em parte colocava sua origem na falta do hábito de observar e raciocinar. Recolho dele observações de quente atualidade: “Somos mais idiotas do que nunca. Ninguém tem vida própria, ninguém constrói um mínimo de solidão. Pensam por nós, sentem por nós, gesticulam por nós. No vasto passado humano, o idiota como tal se comportava. Os personagens da História e da Lenda eram os melhores. Em nosso Brasil, o que havia era o ‘o grande ministro’, ‘o grande deputado’, ‘o grande jornalista’, ‘o grande tribuno’. Os idiotas não exalavam um suspiro.  Antigamente, o silêncio era dos imbecis. E, de repente, tudo muda. Hoje, são os melhores que emudecem. Quem não percebeu a invasão dos idiotas não entenderá jamais o Brasil de nossos dias. Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”.

Detive-me nas palavras do dramaturgo recifense por um motivo: padecemos, décadas afora, o achatamento generalizado das personalidades, mesmo as mais relevantes, fenômeno moral, psicológico e social, mas com reflexos daninhos na política, na economia, na vida econômica. É fenômeno algum tanto notado e pouco estudado. Atinge sobretudo os interiores das personalidades. Nunca diminuirá a decepção que hoje se espraia Brasil afora, se não for mudado nosso interior. E então, em consequência de seiva nova, surgirá naturalmente o reconhecimento, a relevância e a premiação do que melhor existir na moral, na cultura, na inteligência. E na política. Concluo. O sofrimento que de momento assoma no horizonte e nos atemoriza, se bem aceito, ajudar-nos-á a retificar disposições interiores tortas, os grandes obstáculos ao progresso autêntico do Brasil.