sábado, 28 de março de 2020

O mundo depois do coronavirus


O mundo depois do coronavirus

Péricles Capanema

Pensei em outro título: hierofantes e pitonisas. Hierofantes saíram totalmente de moda nos meios de divulgação. Até há pouco a palavra era empregada de forma analógica. Na origem, designa os sacerdotes de alta hierarquia que nas religiões de mistérios da Grécia antiga e do Egito instruíam iniciados. Pitonisa era sacerdotisa de Apolo, oráculo, possuía o dom de prever o futuro. Deixei o cabeçalho de lado; embora talvez mais chamativo, relaciona-se menos diretamente com a situação presente. Vou falar sobre o mundo depois do coronavirus, com base em intelectual público que, digamos, junta em si as duas características, é hierofante e pitonisa de nossos dias, quem sabe o mais ouvido. Fala constantemente a políticos, empresários e jornalistas.

Yuval Noah Harari, judeu, mora em Israel, leciona na Universidade Hebraica de Jerusalém. Escreveu dois best-sellers, Sapiens e Homo Deus e vem sendo tido como o palestrante mais bem pago do mundo. Ele publicou com enorme repercussão no Financial Times de Londres, 20 de março último, artigo (de fato ensaio), sob o rótulo “O mundo depois do coronavirus”. Vou deixar que ele explique, apenas destacarei certas partes.

Começa assim: “Esta tempestade passará. A humanidade está enfrentando o que talvez seja a maior crise de nossa geração. As decisões que as pessoas e governos tomarem nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos ▬ economia, política e cultura”.

A tempestade passará, mas deixará sequelas permanentes. Continua Harari : “Precisamos agir rápida e decisivamente, mas sem esquecermos as consequências de longo prazo de nossas ações”. Que mundo habitaremos depois que a tempestade passar? Finca os marcos para a resposta: “A grande maioria de nós ainda estará viva, mas habitará um mundo diferente. Muitas medidas emergenciais se tornarão perenes. Decisões que normalmente tomam anos de deliberação, são aprovadas em horas. Tecnologias imaturas e até perigosas são postas em prática em horas, porque os riscos da inação são maiores. Países inteiros servem de cobaias de experimentos sociais em escala gigantesca”.

Empurra os dilemas para o centro do palco: “Temos dois dilemas. O primeiro, vigilância totalitária contra fortalecimento da cidadania. O segundo, isolacionismo nacionalista contra solidariedade global”. Vigilência totalitária tem também outro nome, ditadura digital. Vai tratar abaixo dos dois dilemas.

Adverte: “Quando escolhermos entre alternativas, deveríamos nos perguntar não apenas como vencer a ameaça imediata, mas também qual espécie de mundo habitaremos depois de a tempestade passar”.

Trata do que é central em seu ensaio: “Pela primeira vez na história a tecnologia tornou possível monitorar todo mundo o tempo inteiro. Os governos podem ter câmeras de reconhecimento facial em todas as partes e extraordinários algoritmos (big data). Em sua batalha contra o coronavirus, muitos governos já utilizaram os novos instrumentos de vigilância. O caso mais importante é a China. Monitorou os celulares, usou centenas de milhões de câmeras, obrigou as pessoas a verificar e informar a temperatura corporal. As autoridades chinesas podem não apenas identificar com rapidez portadores suspeitos de coronavirus, mas ainda rastrear seus movimentos e identificar quem esteve em contato com eles. Aplicativos avisam as pessoas sobre a proximidade de gente infectada. Esta tecnologia não está sendo utilizada apenas no Extremo Oriente”.

Harari explica então que Netanyahu também está utilizando tecnologia semelhante. Houve reações, mas ele legalizou sua atitude com um decreto de emergência, semelhante aos usados contra o terrorismo. Passada a emergência, o decreto cairia. Quem garante? Em Israel há medidas de emergência, adotadas em 1948 por causa da guerra de independência que estão em vigor até hoje, pontua. Dentro da lei, também utilizaram muitos desses recursos a Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura. Ou seja, combateram com eficácia o coronavirus sem destruir direitos. Todos farão assim? E a China?

O escritor judeu chama a atenção sobre a vigilância digital que começa a ser utilizada e que se generalizará rapidamente: a vigilância “debaixo da pele”. “Se não tomarmos cuidado, a epidemia representará importante divisor de águas na história da vigilância. Não apenas porque poderá tornar normal a utilização de instrumentos de vigilância maciça em países que até agora os rejeitaram, mas também, e mais importante, poderá significar a transição dramática da vigilância “em cima da pele” para a vigilância “debaixo da pele”.

Com efeito, com uma pulseira (ajudada pelo celular) o governo vai conhecer a temperatura, o batimento cardíaco, a pressão, os contatos, os programas vistos. Com isso, saberá pelas reações do vigiado os impulsos de alegria, risadas, ódio, tédio, indiferença, movimento de olhos rumo a objetos desejados. Antes de a pessoa ter consciência, já conhecerá suas doenças, propensões, prováveis atitudes. Preverá e até manipulará sentimentos. É um sistema aterrador de vigilância. “As táticas de utilizar dados empregadas pela Cambridge Analytica vão parecer da Idade da Pedra”.

Em tela está a privacidade contra a saúde. Na angústia, quem deixará de escolher a saúde? “Se não fizermos a escolha correta, podemos ser levados a renunciar à nossas mais preciosas liberdades, pensando que é a única maneira de obter a saúde”. É a volta, sob outra capa, da frase infame “better red than dead”. E pode surgir na ponta final do processo a imposição do comunismo, já não mais pela convicção e voto, mas por imaginada exigência das circunstâncias.

Harari é ateu. Descreve com fria objetividade o mundo que na neblina lobriga pela frente. Sua proposta de solução, contudo, soa utópica. Para o primeiro dilema, fortalecer a cidadania. Para o segundo dilema, caminhar para a solidariedade e cooperação global, com base na confiança. É quase o anúncio do desastre inevitável ▬ a crônica da tragédia anunciada. A possibilidade de uma neoescravidão digital assoma no horizonte turvo do presente.

Vou repetir o que ponderou Adamastor Ferrão Bravo no conto “Brigo pelos homens atrofiados”: “Em nossa quadra histórica só resta de pé uma defesa eficaz contra a neoescravidão, é no povo subsistirem vivos o senso moral e os hábitos de liberdade. O que nos livra da pior tirania são tais hábitos sociais enraizados”. O Adamastor tem razão, eles embasariam uma reação salvadora; trata-se de fortalecê-los. Lembrei acima, Yuval Noah Harari é ateu. O Adamastor não; sabe que sem ação sobrenatural não se mantêm vivos e nem se fortalecem o senso moral e os hábitos de liberdade. Oração, vigilância e ação são decisivos e é o que nos resta.

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