O mundo depois do coronavirus
Péricles
Capanema
Pensei em
outro título: hierofantes e pitonisas. Hierofantes saíram totalmente de moda nos
meios de divulgação. Até há pouco a palavra era empregada de forma analógica. Na
origem, designa os sacerdotes de alta hierarquia que nas religiões de mistérios
da Grécia antiga e do Egito instruíam iniciados. Pitonisa era sacerdotisa de Apolo,
oráculo, possuía o dom de prever o futuro. Deixei o cabeçalho de lado; embora talvez
mais chamativo, relaciona-se menos diretamente com a situação presente. Vou falar
sobre o mundo depois do coronavirus, com base em intelectual público que, digamos,
junta em si as duas características, é hierofante e pitonisa de nossos dias, quem
sabe o mais ouvido. Fala constantemente a políticos, empresários e jornalistas.
Yuval Noah
Harari, judeu, mora em Israel, leciona na Universidade Hebraica de Jerusalém. Escreveu
dois best-sellers, Sapiens e Homo Deus e vem sendo tido como o palestrante
mais bem pago do mundo. Ele publicou com enorme repercussão no Financial Times
de Londres, 20 de março último, artigo (de fato ensaio), sob o rótulo “O mundo depois
do coronavirus”. Vou deixar que ele explique, apenas destacarei certas partes.
Começa assim:
“Esta tempestade passará. A humanidade está enfrentando o que talvez seja a maior
crise de nossa geração. As decisões que as pessoas e governos tomarem nas próximas
semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos ▬ economia, política e
cultura”.
A tempestade
passará, mas deixará sequelas permanentes. Continua Harari : “Precisamos agir rápida
e decisivamente, mas sem esquecermos as consequências de longo prazo de nossas ações”.
Que mundo habitaremos depois que a tempestade passar? Finca os marcos para a resposta:
“A grande maioria de nós ainda estará viva, mas habitará um mundo diferente. Muitas
medidas emergenciais se tornarão perenes. Decisões que normalmente tomam anos de
deliberação, são aprovadas em horas. Tecnologias imaturas e até perigosas são postas
em prática em horas, porque os riscos da inação são maiores. Países inteiros servem
de cobaias de experimentos sociais em escala gigantesca”.
Empurra os
dilemas para o centro do palco: “Temos dois dilemas. O primeiro, vigilância totalitária
contra fortalecimento da cidadania. O segundo, isolacionismo nacionalista contra
solidariedade global”. Vigilência totalitária tem também outro nome, ditadura digital.
Vai tratar abaixo dos dois dilemas.
Adverte: “Quando
escolhermos entre alternativas, deveríamos nos perguntar não apenas como vencer
a ameaça imediata, mas também qual espécie de mundo habitaremos depois de a tempestade
passar”.
Trata do que
é central em seu ensaio: “Pela primeira vez na história a tecnologia tornou possível
monitorar todo mundo o tempo inteiro. Os governos podem ter câmeras de reconhecimento
facial em todas as partes e extraordinários algoritmos (big data). Em sua batalha
contra o coronavirus, muitos governos já utilizaram os novos instrumentos de vigilância.
O caso mais importante é a China. Monitorou os celulares, usou centenas de milhões
de câmeras, obrigou as pessoas a verificar e informar a temperatura corporal. As
autoridades chinesas podem não apenas identificar com rapidez portadores suspeitos
de coronavirus, mas ainda rastrear seus movimentos e identificar quem esteve em
contato com eles. Aplicativos avisam as pessoas sobre a proximidade de gente infectada.
Esta tecnologia não está sendo utilizada apenas no Extremo Oriente”.
Harari explica
então que Netanyahu também está utilizando tecnologia semelhante. Houve reações,
mas ele legalizou sua atitude com um decreto de emergência, semelhante aos usados
contra o terrorismo. Passada a emergência, o decreto cairia. Quem garante? Em Israel
há medidas de emergência, adotadas em 1948 por causa da guerra de independência
que estão em vigor até hoje, pontua. Dentro da lei, também utilizaram muitos
desses recursos a Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura. Ou seja, combateram com eficácia
o coronavirus sem destruir direitos. Todos farão assim? E a China?
O escritor
judeu chama a atenção sobre a vigilância digital que começa a ser utilizada e que
se generalizará rapidamente: a vigilância “debaixo da pele”. “Se não tomarmos
cuidado, a epidemia representará importante divisor de águas na história da
vigilância. Não apenas porque poderá tornar normal a utilização de instrumentos
de vigilância maciça em países que até agora os rejeitaram, mas também, e mais
importante, poderá significar a transição dramática da vigilância “em cima da
pele” para a vigilância “debaixo da pele”.
Com
efeito, com uma pulseira (ajudada pelo celular) o governo vai conhecer a temperatura,
o batimento cardíaco, a pressão, os contatos, os programas vistos. Com isso, saberá
pelas reações do vigiado os impulsos de alegria, risadas, ódio, tédio, indiferença,
movimento de olhos rumo a objetos desejados. Antes de a pessoa ter consciência,
já conhecerá suas doenças, propensões, prováveis atitudes. Preverá e até manipulará
sentimentos. É um sistema aterrador de vigilância. “As táticas de utilizar dados
empregadas pela Cambridge Analytica vão parecer da Idade da Pedra”.
Em tela está
a privacidade contra a saúde. Na angústia, quem deixará de escolher a saúde? “Se
não fizermos a escolha correta, podemos ser levados a renunciar à nossas mais preciosas
liberdades, pensando que é a única maneira de obter a saúde”. É a volta, sob outra
capa, da frase infame “better red than dead”. E pode surgir na ponta final do processo
a imposição do comunismo, já não mais pela convicção e voto, mas por imaginada exigência
das circunstâncias.
Harari é ateu.
Descreve com fria objetividade o mundo que na neblina lobriga pela frente. Sua proposta
de solução, contudo, soa utópica. Para o primeiro dilema, fortalecer a cidadania.
Para o segundo dilema, caminhar para a solidariedade e cooperação global, com base
na confiança. É quase o anúncio do desastre inevitável ▬ a crônica da tragédia anunciada.
A possibilidade de uma neoescravidão digital assoma no horizonte turvo do
presente.
Vou repetir
o que ponderou Adamastor Ferrão Bravo no conto “Brigo pelos homens atrofiados”:
“Em nossa quadra histórica só resta de pé uma defesa eficaz contra a neoescravidão,
é no povo subsistirem vivos o senso moral e os hábitos de liberdade. O que nos livra
da pior tirania são tais hábitos sociais enraizados”. O Adamastor tem razão,
eles embasariam uma reação salvadora; trata-se de fortalecê-los. Lembrei acima,
Yuval Noah Harari é ateu. O Adamastor não; sabe que sem ação sobrenatural não se
mantêm vivos e nem se fortalecem o senso moral e os hábitos de liberdade. Oração,
vigilância e ação são decisivos e é o que nos resta.
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