Não ao derrotismo ▬ viva Sobieski!
Péricles
Capanema
Alain Touraine,
nascido em 1925, é dos mais influentes sociólogos do século 20 e 21. Homem de esquerda,
adversário de ditaduras, desde muito é hierofante e pitonisa na intelectualidade
▬ e não apenas na esquerda. Continua hoje, em idade avançada. reputado em
especial na academia.
Creio necessário explicar para alguns poucos
o que aqui significa hierofante, palavra hoje pouco utilizada. Lembrei-me dela
em meu último artigo (O mundo depois do coronavirus) quando comentei opiniões
de Yuval Noah Harari sobre a crise do coronavirus.
Yuval Noah Harari e Alain Touraine são
hierofantes e pitonisas da sociedade contemporânea. Dizia eu: “Hierofantes
saíram totalmente de moda nos meios de divulgação. Até há pouco a palavra era
empregada de forma analógica. Na origem, designa os sacerdotes de alta
hierarquia que nas religiões de mistérios da Grécia antiga e do Egito instruíam
iniciados. Pitonisa era sacerdotisa de Apolo, oráculo, possuía o dom de prever
o futuro. [Yuval Noah Harari], intelectual público, digamos, junta em si as
duas características, é hierofante e pitonisa de nossos dias, quem sabe o mais
ouvido. Fala constantemente para políticos, empresários e jornalistas”.
Harari e Alain Touraine, ambos
intelectuais públicos requisitados, em linhas gerais cumprem a mesma função para
a intelligentsia e ainda para boa parte dos que dirigem o mundo em seus
vários âmbitos ▬ econômico, político, artístico etc. Orientam passos. Suas
palavras podem ter efeito benéfico, como serem demolidoras.
Alain
Touraine falou em 30 de março a El País, o mais influente jornal espanhol, sobre
a crise presente, desencadeada pela pandemia. À maneira de fria constatação,
ponderou o sociólogo francês: “Vivemos dois bons séculos, a sociedade
industrial, em um mundo dominado pelo Ocidente durante 500 anos. Acreditamos,
foi o caso nos últimos cinquenta anos, que vivíamos em um mundo
norte-americano. Agora talvez passemos a viver em um mundo chinês, mas não
estou inteiramente certo. Os Estados Unidos estão afundando. A China está em
situação contraditória que não pode durar eternamente: quer praticar o totalitarismo
maoísta para gerir o sistema mundial capitalista. Estamos sem lugar em uma
transição brutal que não foi preparada nem pensada”.
Assim, Alain
Touraine acha, contas feitas, os dois últimos séculos sob o signo da Revolução
Industrial foram bons para a humanidade. Não parece estar seguro sobre os dois
séculos próximos que ele vê provavelmente como “um mundo chinês”, sucedâneo do
“mundo norte-americano”, com os atores dominantes, está subentendido, não mais
no Ocidente.
Fala um
pouco mais sobre a tese geral que levantou “os Estados Unidos estão afundando”:
“Nunca havia visto um presidente dos Estados Unidos tão estranho como Donald
Trump, tão pouco presidencial, um personagem tão fora das normas e tão fora de
seu papel. E não é por acaso. Os Estados Unidos abandonaram seu papel de líder
mundial. Hoje já não existe nada. Na Europa, olhe os países mais poderosos,
ninguém responde. Não existe ninguém na frente do proscênio”.
Parte da
elite dirigente dos Estados Unidos admitia, graus diversos, uma expressão que
pode soar pretensiosa, mas que, entendida com realismo e modéstia, tem raízes
na realidade: “manifest destiny”, destino manifesto, missão evidente de
exemplaridade e liderança.
As
circunstâncias (os homens religiosos pensam na Providência) levaram os Estados
Unidos à condição de líder e protetor natural do Ocidente. O presidente dos
Estados Unidos, de alguma maneira, tinha papel semelhante à missão do imperador
do Sacro Império Romano Alemão na Idade Média; pedra de cúpula, representava,
mantinha e protegia uma ordem política e social, espaço de vida civilizada. E,
em parte por isso, algo de enormemente grave, até mesmo sacral, envolvia sua
figura, situação percebida pelos seus conacionais. Não mais; e, essencialmente,
pelo abandono dos deveres inerentes à liderança mundial, julga Touraine.
De
passagem, convém notar, tal papel histórico de líder mundial, que vem cabendo aos
Estados Unidos, dirigentes internacionais tentaram conferir à Sociedade das
Nações, após a 1ª Guerra Mundial, e à ONU, após a 2ª Guerra Mundial. Fracasso
completo.
Volto ao centro.
Estaríamos diante de uma abdicação, o abandono do papel de líder mundial, em
parte foi provocada pela ênfase excessiva nos interesses nacionais. Abdicação
que alcança a Europa, segundo Touraine: “Hoje não existem atores sociais, nem
políticos, nem mundiais, nem nacionais, nem de classe. [Existem] pessoas e
grupos sem ideias, sem direção, sem programa, sem estratégia, sem linguagem. É
o silêncio.”
A
abdicação é sobretudo moral; importa no caso em desviar o olhar de obrigações
impostas pelo dever. Lembra Afonso XIII. O monarca renunciou ao trono da
Espanha em 1931 com maioria eleitoral, enorme força política, apoio popular
forte. Fugiu aos embates, foi embora do país, preferiu o exílio. O que Alain
Touraine evoca de mais importante, os Estados Unidos e, em parte, a Europa
estão repetindo a conduta de Afonso XIII.
De outro
modo, estamos assistindo a apocalíptico desmoronamento. No silêncio, em
ambiente de misteriosa abdicação, começaria a prevalecer “o mundo chinês”, a
era em que, pelo menos de início, o maoísmo político ditaria o rumo dos
acontecimentos mundiais.
Preocupam
as palavras de Alain Touraine. Não são apenas as palavras, tem ainda o tom. “Le
ton fait la chanson”. Preocupam muitíssimo, de fato; com variáveis, vem sendo o
tom que, aqui e ali, adotam intelectuais públicos em destaque no mundo. Trazem
no bojo fatalismo, inevitabilidade, suicídio, entreguismo.
De
repente, já não mais se disfarça a tirania chinesa, antes prática comum nos
meios de divulgação e nos ambientes sociais decisivos. Afirma-se candidamente,
como alguém que constatasse a presença de um gato no quintal, que a China
avança para o centro do palco. Ninguém mais nega o óbvio ululante do crescente
domínio chinês, disfarçado até há bem pouco.
Chegou a
hora de proclamar outro óbvio ululante. O “mundo chinês” (a era da China) não
precisa vir, é francamente evitável, não deve chegar ▬ seria a vitória do
ateísmo, do coletivismo, da tirania. Retrocesso e atraso dificilmente
imagináveis. Os Estados Unidos possuem com pletora todas as condições para
continuar, décadas afora, a ser a nação líder do Ocidente. Para isso, a batalha
dos espíritos vai se dar e precisa ser vencida sobretudo na opinião pública
norte-americana. Imprescindível a coligação de esforços da gente que presta.
Em suma, clareza
e coragem. Evitar atitudes como a de Afonso XIII. Temos reis outros a a pisar
os passos, nos quais se alteia um em particular. Diante de ameaça parecida, o
domínio muçulmano na Europa, insurgiu-se João III Sobieski (1629-1696). Indomável,
nada o abateu, não conheceu o derrotismo, fugiu das aparentes fatalidades,
venceu. O mundo civilizado e cristão lhe tem indizível dívida de gratidão.
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