quarta-feira, 1 de abril de 2020

Não ao derrotismo ▬ viva Sobieski!



Não ao derrotismo ▬ viva Sobieski!

Péricles Capanema

Alain Touraine, nascido em 1925, é dos mais influentes sociólogos do século 20 e 21. Homem de esquerda, adversário de ditaduras, desde muito é hierofante e pitonisa na intelectualidade ▬ e não apenas na esquerda. Continua hoje, em idade avançada. reputado em especial na academia.

Creio necessário explicar para alguns poucos o que aqui significa hierofante, palavra hoje pouco utilizada. Lembrei-me dela em meu último artigo (O mundo depois do coronavirus) quando comentei opiniões de Yuval Noah Harari sobre a crise do coronavirus.

Yuval Noah Harari e Alain Touraine são hierofantes e pitonisas da sociedade contemporânea. Dizia eu: “Hierofantes saíram totalmente de moda nos meios de divulgação. Até há pouco a palavra era empregada de forma analógica. Na origem, designa os sacerdotes de alta hierarquia que nas religiões de mistérios da Grécia antiga e do Egito instruíam iniciados. Pitonisa era sacerdotisa de Apolo, oráculo, possuía o dom de prever o futuro. [Yuval Noah Harari], intelectual público, digamos, junta em si as duas características, é hierofante e pitonisa de nossos dias, quem sabe o mais ouvido. Fala constantemente para políticos, empresários e jornalistas”.

Harari e Alain Touraine, ambos intelectuais públicos requisitados, em linhas gerais cumprem a mesma função para a intelligentsia e ainda para boa parte dos que dirigem o mundo em seus vários âmbitos ▬ econômico, político, artístico etc. Orientam passos. Suas palavras podem ter efeito benéfico, como serem demolidoras.

Alain Touraine falou em 30 de março a El País, o mais influente jornal espanhol, sobre a crise presente, desencadeada pela pandemia. À maneira de fria constatação, ponderou o sociólogo francês: “Vivemos dois bons séculos, a sociedade industrial, em um mundo dominado pelo Ocidente durante 500 anos. Acreditamos, foi o caso nos últimos cinquenta anos, que vivíamos em um mundo norte-americano. Agora talvez passemos a viver em um mundo chinês, mas não estou inteiramente certo. Os Estados Unidos estão afundando. A China está em situação contraditória que não pode durar eternamente: quer praticar o totalitarismo maoísta para gerir o sistema mundial capitalista. Estamos sem lugar em uma transição brutal que não foi preparada nem pensada”.

Assim, Alain Touraine acha, contas feitas, os dois últimos séculos sob o signo da Revolução Industrial foram bons para a humanidade. Não parece estar seguro sobre os dois séculos próximos que ele vê provavelmente como “um mundo chinês”, sucedâneo do “mundo norte-americano”, com os atores dominantes, está subentendido, não mais no Ocidente.

Fala um pouco mais sobre a tese geral que levantou “os Estados Unidos estão afundando”: “Nunca havia visto um presidente dos Estados Unidos tão estranho como Donald Trump, tão pouco presidencial, um personagem tão fora das normas e tão fora de seu papel. E não é por acaso. Os Estados Unidos abandonaram seu papel de líder mundial. Hoje já não existe nada. Na Europa, olhe os países mais poderosos, ninguém responde. Não existe ninguém na frente do proscênio”.

Parte da elite dirigente dos Estados Unidos admitia, graus diversos, uma expressão que pode soar pretensiosa, mas que, entendida com realismo e modéstia, tem raízes na realidade: “manifest destiny”, destino manifesto, missão evidente de exemplaridade e liderança.

As circunstâncias (os homens religiosos pensam na Providência) levaram os Estados Unidos à condição de líder e protetor natural do Ocidente. O presidente dos Estados Unidos, de alguma maneira, tinha papel semelhante à missão do imperador do Sacro Império Romano Alemão na Idade Média; pedra de cúpula, representava, mantinha e protegia uma ordem política e social, espaço de vida civilizada. E, em parte por isso, algo de enormemente grave, até mesmo sacral, envolvia sua figura, situação percebida pelos seus conacionais. Não mais; e, essencialmente, pelo abandono dos deveres inerentes à liderança mundial, julga Touraine.

De passagem, convém notar, tal papel histórico de líder mundial, que vem cabendo aos Estados Unidos, dirigentes internacionais tentaram conferir à Sociedade das Nações, após a 1ª Guerra Mundial, e à ONU, após a 2ª Guerra Mundial. Fracasso completo.

Volto ao centro. Estaríamos diante de uma abdicação, o abandono do papel de líder mundial, em parte foi provocada pela ênfase excessiva nos interesses nacionais. Abdicação que alcança a Europa, segundo Touraine: “Hoje não existem atores sociais, nem políticos, nem mundiais, nem nacionais, nem de classe. [Existem] pessoas e grupos sem ideias, sem direção, sem programa, sem estratégia, sem linguagem. É o silêncio.”

A abdicação é sobretudo moral; importa no caso em desviar o olhar de obrigações impostas pelo dever. Lembra Afonso XIII. O monarca renunciou ao trono da Espanha em 1931 com maioria eleitoral, enorme força política, apoio popular forte. Fugiu aos embates, foi embora do país, preferiu o exílio. O que Alain Touraine evoca de mais importante, os Estados Unidos e, em parte, a Europa estão repetindo a conduta de Afonso XIII.

De outro modo, estamos assistindo a apocalíptico desmoronamento. No silêncio, em ambiente de misteriosa abdicação, começaria a prevalecer “o mundo chinês”, a era em que, pelo menos de início, o maoísmo político ditaria o rumo dos acontecimentos mundiais.

Preocupam as palavras de Alain Touraine. Não são apenas as palavras, tem ainda o tom. “Le ton fait la chanson”. Preocupam muitíssimo, de fato; com variáveis, vem sendo o tom que, aqui e ali, adotam intelectuais públicos em destaque no mundo. Trazem no bojo fatalismo, inevitabilidade, suicídio, entreguismo.

De repente, já não mais se disfarça a tirania chinesa, antes prática comum nos meios de divulgação e nos ambientes sociais decisivos. Afirma-se candidamente, como alguém que constatasse a presença de um gato no quintal, que a China avança para o centro do palco. Ninguém mais nega o óbvio ululante do crescente domínio chinês, disfarçado até há bem pouco.

Chegou a hora de proclamar outro óbvio ululante. O “mundo chinês” (a era da China) não precisa vir, é francamente evitável, não deve chegar ▬ seria a vitória do ateísmo, do coletivismo, da tirania. Retrocesso e atraso dificilmente imagináveis. Os Estados Unidos possuem com pletora todas as condições para continuar, décadas afora, a ser a nação líder do Ocidente. Para isso, a batalha dos espíritos vai se dar e precisa ser vencida sobretudo na opinião pública norte-americana. Imprescindível a coligação de esforços da gente que presta.

Em suma, clareza e coragem. Evitar atitudes como a de Afonso XIII. Temos reis outros a a pisar os passos, nos quais se alteia um em particular. Diante de ameaça parecida, o domínio muçulmano na Europa, insurgiu-se João III Sobieski (1629-1696). Indomável, nada o abateu, não conheceu o derrotismo, fugiu das aparentes fatalidades, venceu. O mundo civilizado e cristão lhe tem indizível dívida de gratidão.

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