sexta-feira, 31 de maio de 2019

Novidade alvissareira


Novidade alvissareira

Péricles Capanema

Em 26 de maio, eco das manifestações deste dia no Brasil inteiro, o IPCO (Instituto Plinio Corrêa de Oliveira) divulgou denso e sintético documento intitulado “Está em jogo o Brasil autêntico, cristão e forte”, que contém programa mínimo de regeneração nacional. Ali se diz, para o Brasil não trair suas raízes cristãs, como preliminar, deve se manter fiel à pauta que reproduzo a seguir: seja garantida a vida da concepção à morte natural; a família seja constituída apenas por um homem e uma mulher; se respeite o sagrado direito dos pais à educação de seus filhos; e no plano socioeconômico se respeite a livre iniciativa, o direito à propriedade privada e o princípio de subsidiariedade.

Enumeração certeira, constituem reivindicações usuais de movimentos católicos, fazem parte da agenda de movimentos conservadores. Novidades aí? Inexistem. Por que então destaquei logo no cabeçalho que tinha visto novidade alvissareira? Existe uma novidade, sobre ela quero me estender.

Tive surpresa ao deparar na curta lista a defesa do princípio de subsidiariedade. Não me lembro de ter lido no Brasil em manifesto a ser firmado pelo público proclamação tão clara desse princípio fundamental da ordem temporal cristã. É sintoma de que vamos amadurecendo direito. Existem nações cujo amadurecimento revela logo sintomas de apodrecimento.

Faço pequena recordação e retifico: vi, uma vez. Conversando com o redator do discurso que Guilherme Afif Domingos, então vice-governador, proferiu em 22 de março de 2011 por ocasião do nascimento do PSD ▬ foi por aqueles dias, lá se vão uns oito anos ▬, ele me comunicou satisfeito, havia colocado na oração a defesa do princípio da subsidiariedade. Gostei, mas nada comentei a respeito com meu interlocutor. Pensei comigo, fato aparentemente pequeno que revela maturidade, reflexão, promessa de caminho no rumo certo.

Com efeito, era inédito um político brasileiro em ocasião solene defendê-lo. E era inédito que pessoa chegada a político de expressão (no caso, amigo do orador e redator de sua solene fala) estivesse convicto da importância do princípio de subsidiariedade, a ponto de julgar necessário colocá-lo explicitamente no anúncio para o Brasil inteiro de passo político de importância.

Cismado e ainda um pouco incrédulo, fui checar a veracidade do comentário, era a pura verdade, lá estava o trecho: “Defendemos uma federação justa, que descentralize sua atuação, repartindo os poderes e recursos com Estados e Municípios, dentro do princípio da subsidiariedade. Tudo o que puder ser bem feito por uma entidade menor não deve ser feito por uma entidade maior. O que puder ser feito pelos cidadãos deve ser feito por eles. O que eles não puderem fazer deve ser feito pelo município. O que o município não puder fazer deve ser feito pelo Estado. Ao governo federal caberá fazer apenas aquilo que não puder ser feito nos âmbitos individual, municipal ou estadual.”

Hélas, parece, pelo que pude constatar, morreu ali no PSD a defesa explícita do princípio de subsidiariedade nos documentos e nos lábios dos seus políticos do PSD. Precisa ressuscitar. Seria vacina contra o estatismo, o intervencionismo e o gigantismo estatal, fortalecendo a família e demais grupos intermediários. Em consequência, a tolice de esperar a salvação da ação estatal encontraria menos adeptos. O Estado age bem com efeitos benéficos quando tem ação supletiva, atravanca e emperra o progresso quando mete o bedelho onde não deve. Não é Estado mínimo, é Estado com ação necessária e proficiente em relação à sociedade, mas complementar.

Volto ao manifesto do IPCO. A proclamação de viseira erguida do princípio de subsidiariedade renova a necessidade de abandonarmos no Brasil a mentalidade jacobina de que o Estado pode tudo, relegando a segundo ponto a ação da família e de grupos intermediários. Em suma, a regeneração brasileira (e de qualquer país) começa pela tonificação da família e aqui tem seu fator mais ativo. Sem tal preocupação, todo resto é inócuo, representa desorientação.

Relembro o ensinamento de Pio XI na Quadragesimo Anno (1931) sobre o princípio de subsidiariedade: “Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as pequenas; permanece, contudo, imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e capacidade, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é subsidiar os seus membros, não destrui-los nem absorvê-los. Deixe, pois, a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiadamente; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam: quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, segundo este princípio da subsidiariedade [função 'supletiva'] dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação”.
Já disse, ligada à defesa do princípio de subsidiariedade, está a defesa da família. Foi congruente o manifesto em comento ao propor “seja garantida a vida da concepção à morte natural; a família seja constituída apenas por um homem e uma mulher; se respeite o sagrado direito dos pais à educação de seus filhos”. Em suma, andou muito bem o IPCO pondo o foco nos pontos certos e, volto à novidade que destaquei acima, recordando a importância da subsidiariedade, em especial no Brasil, para desgraça nossa meio viciado na esperança em soluções jacobinas, que sempre dão errado.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Europa de cara nova


A cara nova da Europa

Péricles Capanema

Cara nova da Europa. Tornaram-se mais nítidos traços de preocupação, sulcos de esperança, vislumbres de rumos diferentes. Apareceram mais visíveis depois que 427 milhões de eleitores foram às urnas para eleger 751 deputados (um terço dos quais mulheres), com mandato de cinco anos.

Preciso melhor. Às urnas foram bem menos, 50,82% do total possível, contudo a maior participação em 25 anos, revertendo tendência constante de queda desde 1979. Em 2015, o comparecimento foi de 42,6%. Agora pesou forte o temor da imigração desordenada e destrutiva, autêntica invasão; junto dele o da avalancha muçulmana. Para boa parte dos europeus, chegou a hora da reação. Sabem, a inércia é via para a morte da Europa como continente cristão e civilizado.

Reagir, sim, concordo, só mortos e moribundos não reagem. Mas o foco deve ser posto em outro ponto: como resistir e sob quais bandeiras? Se os europeus errarem aqui, abraçando escolhas falsas, a situação lá na frente aparecerá pior do que já está, agravada pela decepção e desespero. No fundo do panorama, em todos os cenários, percebe-se na bruma o olhar enigmático de Vladimir Putin.

Convém constar, em alguns países o eleitorado se mostrou pouco reativo. Por exemplo, Eslováquia (22,74%), Eslovênia (28,29%), República Checa (28,72%), Portugal (31,01%). As maiores porcentagens de comparecimento foram as da Bélgica (88,47%) e Luxemburgo (84,10%), Estados em que o voto é obrigatório, o que desnatura a amostra. Muita gente vota para não ser punida.

Da esquerda para a direita assim ficou a representação no Parlamento Europeu: Esquerda extrema (39 deputados, 5,19% dos votos); Esquerda Socialista (146 deputados, 19,44%); Verdes (69 deputados, 9,19%); Liberais (109 deputados, 14,51%); Democrata-cristãos (180 deputados, 23,97%); Conservadores (59 deputados, 7,86%); Direita eurocética – (54 deputados, 7,19%); Direita também eurocética – Europa das nações (58 deputados, 7,72%); Indeterminados (37 deputados, 4,93%).

Os grandes vitoriosos foram Marine Le Pen, Nigel Farage e Matteo Salvini, expressões da direita nacionalista, contrários à União Europeia, cujos partidos atingiram o primeiro lugar nas listas de seus países. O Reunião Nacional de Marine Le Pen conseguiu 23,31%, o Brexit Party de Nigel Farage teve 31,71% dos votos, a Liga italiana 34,3%. As correntes nacionalistas, de forma muito geral, têm programa de defesa da vida, família, nação, propriedade privada, tradição, pautas conservadoras. Sob outro ângulo, propugnam por valores pátrios ameaçados pela posição libertária e universalista da União Europeia. O quadro se agrava com a Europa assolada por hordas de imigrantes, provenientes de países conflagrados na Ásia e na África.

Todo esse sentimento inconformado se fará agora representar com mais força no Parlamento Europeu, daí reverberando para os países membros. Suscita esperanças, pode representar ânimo novo para focos de resistências na Europa inteira.

Vou focar um assunto, que bate às portas da Europa e começo com olhar retrospectivo. Embora à primeira vista surpreendente, a configuração de hoje se parece com a situação europeia de 1815. Napoleão, que havia encarnado a Revolução, “le fils botté de la Révolution”, estava no chão. Persistiam, porém, por toda parte, ameaças contra os tronos, sustentáculos da ordem antiga. Diante do perigo revolucionário, as potências conservadoras vitoriosas, no caso especificamente Rússia, Áustria e Prússia, estabeleceram pacto de defesa comum, a Santa Aliança. Agiriam em concerto. Entre outros fatores, por diferenças de concepção, fundamentação doutrinária superficial e frouxa e choques de interesses ruiu logo a Santa Aliança. Em 1830, a França mudou de orientação e em 1848 a Europa foi sacudida por onda revolucionária.

Agir em concerto, era a primeira tarefa da aliança. Hoje também faz falta um programa comum e uma ação concertada. Mas como agir em concerto? Na Europa, existem violentos choques de interesses nacionais e há miríades de concepções, tantas vezes contraditórias, como cimento de sem-número de movimentos conservadores. Aqui se aninha uma debilidade genética de tais movimentos. Se a preocupação prevalente é a nação, o interesse nacional de cada uma tenderá a se chocar com o da outra em numerosas ocasiões.
Ademais, que relações manter com duas grandes potências, Rússia e Estados Unidos, com enormes interesses no caso? Os movimentos nacionalistas europeus têm divergências fundas quanto à posição vis-à-vis de Putin. O autocrata russo financia alguns e é aliado de outros, que o veem como esteio contra a revolução libertária na Europa. É possível confiar em uma potência que na América Latina é o grande apoio de Cuba e Venezuela, ditaduras comunistas? Curto, não querer ver a ameaça russa e ter ilusões com Putin é o calcanhar de Aquiles do movimento conservador europeu.

Mais ainda, a política “America first” (pode ser traduzida como minha nação sempre em primeiro lugar) de Donald Trump facilmente pode levar à subestima dos deveres norte-americanos de defender a independência dos países europeus diante das ameaças russa e chinesa. Longe de Washington, próximo do cabresto de Pequim e Moscou. E muita gente na Europa fecha os olhos diante desse perigo que avança.

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Boa representação e voto facultativo


Boa representação e voto facultativo

Péricles Capanema

Terminou a eleição para o Parlamento Europeu, em números a segunda do mundo, 427 milhões de eleitores, só atrás da indiana, 900 milhões. Pretendo falar dela em outro artigo. Agora, destaco um ponto: a imprensa de alto a baixo festejou a participação do corpo eleitoral, a maior desde 1979. Compareceram 51% dos eleitores, revertendo tendência de queda. Em 2014 o índice foi de 43%.

Mais precisamente, votaram 50,82% do total habilitado. Alguns países pontuaram bem abaixo da média, nos quais destaco Eslováquia 22,74%; Eslovênia 28,29%; República Tcheca 28,22%; Portugal 31,01%. Portanto, abstenção em Portugal, 68,99%. Em condições semelhantes, é plausível supor que a participação do eleitor brasileiro ficaria aquém da de nossos irmãos lusos.

Nas últimas eleições presidenciais dos Estados Unidos, tomaram parte pouco menos de 60%. Quando lá têm lugar as mid-term elections (eleições para o Congresso no meio do mandato presidencial) a porcentagem oscila próxima a 40%. Falo de eleições importantíssimas, em países de boa cultura média, com a instituições funcionando normalmente ▬ 28 países da Europa e ainda os Estados Unidos.

No Brasil, a abstenção no 1º turno nas eleições de 2018 foi de 20,3%, comparecimento de quase 80%. Foi abstenção habitual, no quesito ganhamos de goleada da União Europeia e dos Estados Unidos. Na verdade, é o contrário, perdemos de goleada. A razão, voto facultativo lá, voto obrigatório aqui. A propósito, o voto é facultativo na grossa maioria dos países; entre eles: Estados Unidos, Áustria, Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Japão. É obrigatório na minoria, entre eles: Brasil, Bolívia, Honduras, Chile, Argentina, Congo, República Dominicana, Costa Rica, Honduras.

O retrocesso do voto obrigatório foi imposto e pomposamente celebrado pelo constituinte de 1988 e logo se tornou fator adicional de nosso renitente atraso. Curiosamente, folheando projetos de reforma política, não vi (não estou afirmando que não há, digo que não vi) proposta de troca do voto obrigatório pelo voto facultativo. Não é mais democrático? Vota quem quer. Constatação entristecida: nossos políticos na esquerda e na direita preferem manter o eleitorado no cabresto, mantendo o entulho autoritário e despropositado.

Maior autenticidade na vida pública seria a primeira consequência da introdução do voto facultativo. Autenticidade no caso é o sufragado representar de fato o representado, dele ser porta-voz lídimo. Sabemos, é tênue, quando existe, o vínculo no Brasil entre representante e representado. Pesquisa divulgada em janeiro de 2018 pelo Instituto Idea Big Data indicava que 8 em 10 eleitores brasileiros não sabiam em que haviam votado para deputado federal em 2014.

Chute, no Brasil, em geral iriam até as urnas de 20% a 30% do eleitorado potencial; entre 70% e 80% ficariam de fora. A maioria prefere ficar em casa, está nem aí. Acabaria assim de saída a atmosfera deformante da “celebração democrática”, milhões e milhões votando nas ruas, gigantescos números de votos nos candidatos. Mais decisivo, diminuiria a presença do emocional, do eleitor impressionável, da demagogia, seria mais difícil a vitória do candidato folclórico. Fator importantíssimo, cairia brutalmente o custo das campanhas eleitorais, hoje caríssimas, e ingrediente ativo da corrupção no meio político. Pouquíssimos têm recursos para bancar a campanha com meios próprios (e menos ainda pretendem torrar dinheiro seu na campanha). Com campanhas fundadas em ideias e programas, menos dinheiro seria gasto e daí decorreria saneamento generalizado. Outro fator a considerar, com programas e ideias contando mais, subiria o nível da vida pública, dominada pelo eleitor interessado e atento.

Em suma, como decorrência, subiria a qualidade de nossa representação, oqe nem de longe é panaceia, mas aponta no rumo certo. Os meios de divulgação a toda hora deixam a nu a generalizada indigência intelectual de nossos eleitos. Entre todos os exemplos (maus), nenhum até agora teve mais impacto que o antológico discurso da presidente Dilma Rousseff em Nova York, setembro de 2015, no qual propôs a estocagem do vento como grande meio para solução da crise energética: “Até agora, até agora, a energia hidroelétrica é a mais barata. Em termos do que ela dura, da sua manutenção e também pelo fato da água ser gratuita. I da genti podê istocá. Cê, o vento podia sê isso também, mas ocê num conseguiu ainda tecnologia pra istocá vento. Então se a contribuição dos outros países, vamos supô que seja, desenvolver uma tecnologia que seja capaz de na eólica istocá, ter uma forma docê istocá, porque o vento ele é diferente em horas do dia, então vamos supô que vente mais à noite, cumé queu faria pra istocá isso. Hoje nós usamos as linhas de transmissão, cê joga de lá pra cá, de lá pra lá, pra podê capturá isso, mais si tivé uma tecnologia desenvolvida nessa área, todos nós nos beneficiaremos, o mundo inteiro”.

Acabou o pesadelo. Não foi à toa que Nelson Rodrigues (1912-1980) constatou com horror divertido: “Antes, o silêncio era dos imbecis, hoje são os melhores que emudecem. Até o século 19 o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Aquele sujeito que antes limitava-se a babar na gravata passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente. Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas. Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas, hoje, os idiotas pensam pelos melhores”. E concluía: “O grande acontecimento do século [20] foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”.

Invadiu e dominou a cena pública. Nossas assembleias são disso exemplo destruidor para o bem do Brasil. E agora, para limpar o panorama, trago à baila observações de um dos homens mais inteligentes do Brasil, Gilberto Amado (1987-1969), deputado e senador na República Velha. Sobre a necessidade de, para o bem do Brasil, termos grandes representantes, discorreu sobre o tema em “Eleição e Representação”, título de conhecido livro seu. Falava solto, década de 20, sem sentir as peias do politicamente correto, que hoje tem inibido em tantos a expressão livre do pensamento: “É axioma da ciência política, a sociedade deve ser dirigida pelos mais avisados, pelos mais inteligentes, pelos mais capazes, pelos melhores, em uma palavra, pela elite. Esquecemo-nos na prática de votar o alvo a atingir ▬ a escolha dos bons, dos melhores, dos mais ilustres. Não é no votar o povo livremente que consiste a democracia; a democracia consiste em votar inteligentemente. O valor do governo depende do homem que o exerce. Nenhuma instituição pôde ainda prescindir do fator pessoal. Eleição e representação são coisas diferentes. Se nós queremos realizar a democracia no Brasil, isto é, o governo dos mais capazes, só o poderemos conseguir tornando realidade a representação”. Sem muitos representantes de escol, capazes de dar o tom na vida pública, patejaremos indefinidamente na véspera de crises e na falta de rumos. Um adendo, a inteligência no caso precisa estar embebida em altíssimo senso do bem comum. O que dá rumo ao homem público é o senso agudo do bemcomum.

Para concluir, um dos passos para melhorar a representação será a introdução do voto facultativo. Os políticos brasileiros precisam parar de ter medo dele. Voto obrigatório prejudica a qualidade.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Meu teste do tornassol


Meu teste do tornassol

Péricles Capanema

Ponha o papel (ou o líquido) do tornassol na solução. Teste simples, para pH entre 4,5 e 8,3, mostra de cara se alcalino ou ácido o meio. Ficou azul? Alcalino. Avermelhou? Ácido. O tornassol fica vermelho em baixas concentrações de pH; coloração azul, pH lá em cima. Simples assim.

Fazemos testes de tornassol a toda hora. Uma pergunta ágil, como resposta um silêncio por vezes constrangido e já supomos (em geral na mosca), por onde caminham preferências do interlocutor ▬ mais azuis ou chegadas ao vermelho. Nos mais variados ambientes, é dos mais empregados recursos de orientação. Simples assim.

Gestos, atitudes, insinuações, olhares, silêncios (tantas vezes mais que palavras claras e posições inequívocas) delatam disposições interiores, desmascaram intenções, expõem situações até então ocultas. Lembro ainda, no mundo oficial, de modo particular, o abuso escandaloso dos eufemismos (o emprego correto tem vantagens óbvias). Os grandes políticos nas suas guerras sem tréguas são mestres na artilharia dos eufemismos. Quando o emprego de tais recursos favorece só um rumo, temos claro ora um padrão de conduta, ora uma mentalidade, ora uma diretriz.

Proponho hoje meu teste de tornassol para ser utilizado como meio de esclarecimento. Não é de hoje acompanho com um pé atrás o noticiário relativo a visitas políticas e empresariais à China. Nelas transparece sempre o compreensível receio de retaliações do governo chinês que possam vir a lesar o enorme superávit comercial com a China, bem como possibilidades de investimento e de crescente comércio. As presentes disputas entre Pequim e Washington tornam ainda mais candente o quadro.

Para que não despenque logo sobre mim uma saraivada de acusações sem base, repito abaixo o que escrevi em dezembro de 2018 em artigo intitulado “O chinês mais rico do mundo”: “Não estou obcecado, procuro o contrário, que todos vejam [...]. Nem sou catastrofista. Busco evitar a catástrofe, apontando a pirambeira no caminho. E nem vou repetir razões já por mim expressas vezes sem conta. Acho que deve haver comércio com a China, é sensato aproveitar oportunidades comerciais, temos que considerar sempre necessidades e conveniências da economia brasileira, mas é imperioso, para mantermos de fato a soberania e possibilidades de futuro digno para filhos e netos que saiamos gradualmente da armadilha ▬ dependência excessiva e suicida da economia chinesa ▬, fruto sobretudo da política entreguista do período lulopetista. Como? Em especial, martelo, fortalecendo laços econômicos com Estados Unidos, Japão e Europa. Sem o apoio dos Estados Unidos, muito dificilmente escaparemos da enrascada na qual nos metemos por dessiso, irreflexão e leviandade”.

O presente, agora. Todas as notícias enviadas da China nas últimas semanas sobre a passagem por lá de autoridades e empresários brasileiros falam que houve contatos com empresários e investidores chineses interessados em investir no Brasil. Transcrevo parte de uma, que ilustra bem o tom: “A ministra [...] apresentou dados do setor agropecuário e áreas com potencial de crescimento para um grupo de 40 investidores chineses com projetos no Brasil, nesta segunda-feira, 13 [de maio], em Xangai, na China. O encontro foi organizado pelo Banco do Brasil em parceria com o consulado brasileiro. Os investidores informaram que pretendem aumentar o montante aplicado no Brasil, em setores de sementes, suinocultura, infraestrutura e ferrovias”.

Procurei com esmero nos sites do Itamarati e do Banco do Brasil o nome dos 40 grupos econômicos, empresas e investidores convidados. Nada encontrei, nenhum nome. Isto poupou um desconforto aos promotores da viagem. Estou certo, todos os 40 convidados, os tais empresários e investidores (para ser cordial, pelo menos a esmagadora maioria deles) são empresas estatais. Se houver algum grupo privado entre os 40, até poderia ser, não dará um espirro sem a anuência do governo e do Partido Comunista Chinês.

Foi oferecido a eles (ou a elas, as estatais) como amostra de possibilidade de investimento em obras ferroviárias na Ferrogrão entre Sinop e Itaituba, projeto orçado em 3,7 bilhões de dólares, com edital previsto para fins de 2019. Outra obra, a Fiol que ligará Ilhéus a Figueirópolis; mais uma, ferrovia Norte-Sul. Não há total, serão dezenas de bilhões de dólares lançados ao apetite voraz de estatais chinesas em leilões, concorrências e parcerias. Significam compra de ativos e concessões para muitas décadas em obras de infraestrutura.

Em nenhum momento, em nenhuma notícia, em nenhum comentário as expressões eufemísticas “investidores chineses”. “empresários chineses” ou “capitais chineses” foram trocadas por palavras que traduziriam realidade óbvia e incontestável: o Brasil estava oferecendo oportunidades de negócio para estatais chinesas. Poderia ser item, de um lado, de nova iniciativa, o Programa Transparência Zero. De outro, parte do espetacular Programa de Privatizações à Brasileira.

Vou dar um exemplo, fato quente de hoje. Enquanto redigia o presente artigo lia notícias veiculadas pela imprensa relativas à construção de aciaria em Marabá, no Pará, investimento de R$1,5 bilhão, com produção destinada ao mercado interno. A Vale vai financiar o empreendimento, a Concremat será sua proprietária e o executará. Começará a operar em 2023. A Concremat é controlada pelo grupo chinês CCCC (China Communications Construction Company). Em nenhuma notícia constava a informação de que a CCCC é estatal chinesa. No português claro, o governo comunista de Pequim vai ter uma aciaria importante no estado do Pará. Os brasileiros não têm direito de conhecer tal informação? Não é relevante? Mais uma realização do Programa Transparência Zero associado ao Programa de Privatizações à Brasileira.

Coloco os fatos acima ao lado de outra realidade ululante: as estatais chinesas são dirigidas por inteiro pelo governo chinês. O governo chinês, imperialista, coletivista, tirânico e ateu é dirigido de alto a baixo, por dentro e por fora, pelo Partido Comunista Chinês (PCC). Os diretores das estatais são na esmagadora maioria dos casos (e em todos os postos decisivos) membros do PCC, com fidelidade canina às diretrizes governamentais e partidárias.

Continuamos a pisar, dói dizê-lo, as veredas da tragédia anunciada, a servidão. Permito-me lembrar afirmações minhas em “O realejo estridente” de dezembro de 2018: “Desde 2003 até hoje, segundo a Secretaria de Assuntos Internacionais (SEAIN) do Ministério do Planejamento em 269 projetos houve investimentos chineses anunciados e confirmados de 124 bilhões de dólares. Desse total, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China, 87% foram de origem estatal, 13% de origem privada. Vou, de novo, escrever o que ninguém ou quase ninguém põe no papel com clareza: esses 87% é dinheiro de empresas estatais chinesas, que trabalharão pelos objetivos do PCC, e cujos diretores se alinham sempre com a estratégia do partido. Os 13% restantes, via de regra, são de empresas que acertam o passo com o governo chinês”.

Entre outras políticas reveladoras a China apoia na Ásia a Coreia do Norte e na América Latina as ditaduras de Cuba e Venezuela. Maduro não caiu ainda, em parte por causa do apoio chinês. Tivesse Fernando Haddad ganho as presidenciais de 2018, teríamos agora a aliança Rússia-China-Brasil para defender a tirania venezuelana. Seria uma primeira manifestação da aviltante sujeição brasileira aos objetivos chineses, que nos ameaça.

O Brasil não está recebendo capital chinês. Ou, por outra, está recebendo maciço capital chinês estatal. Já é enorme sua presença na infraestrutura. Aqui não vale o mantra dos “setores estratégicos” que devem permanecer em mãos do Estado? Estão sim, mas cada vez mais nas mãos do Estado chinês.

Tudo isso é verdade. Não obstante, aqui vai minha previsão fácil (fiz outras de igual teor, acertei todas), nada vai mudar nos discursos e nos comentários dos meios de divulgação. Vamos continuar a escutar e ler “investidores chineses”, “oportunidades de investimento de capitais chineses”. Não leremos nem ouviremos a realidade inquestionável: é dinheiro de estatais chinesas.

A razão salta incoercível: na prática, mentalmente, em largas faixas falantes, da opinião que se publica, já temos as reações de protetorado chinês. Caminhamos rumo a situação parecida com a da Finlândia da época da Guerra Fria, formalmente soberana, na verdade protetorado efetivo da União Soviética. Finlandizados já também estamos nós em certa medida. A Finlândia não soltava um pio contra os interesses de Moscou. Ainda há tempo para tomar rumo oposto.

Meu teste de tornassol. Quem, ao tratar de economia, soberania, interesses estratégicos, independência nacional, nunca se refere com preocupação à presença crescente das estatais chinesas na economia brasileira, evidencia que mentalmente já vive em atmosfera de protetorado. Tem necrosado o amor à independência brasileira. Quem, ao ventilar os mesmos assuntos, pelo menos de quando em vez faz o contrário e se refere a tal presença, apontando perigos, ainda se vê como cidadão de país soberano. Deu vermelho? Meio ácido, dominante no espírito o complexo do protetorado. Deu azul? Meio alcalino, dominante na alma o ar fresco da soberania.