quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Clamando no deserto

Clamando no deserto

Péricles Capanema

Vez por outra sucede eu ter a sensação de clamar no deserto. Verifico, entre surpreso e desolado, ninguém está dando bola para aquilo por mim tido por importante. Normal, em ocasiões, errado; em outras, certo. Isso deve acontecer com muita gente em assuntos pessoais, profissionais, familiares, até temas de interesse nacional.

Esse de que vou falar envolve o Brasil, mais diretamente os brasileiros que, parece, infelizmente o observam silenciosos, confusos, ou pior, desinteressados. Vejo com horror o avanço do capital estatal chinês sobre ativos brasileiros. De fato, são gigantescas propriedades no Brasil passando celeremente para o governo do PC, que vai utilizá-la, mais dias, menos dias, para seus objetivos de dominação interna e hegemonia mundial.

Sábado, 13 de fevereiro, li no Estadão, Nelson Barbosa vai à China para reuniões em 26 e 27 de fevereiro com os ministros de Finanças dos países do G-20. Chegará alguns dias antes, porque tem encontros já agendados com investidores chineses. Faço uma aposta sem conhecer nem um dos tais investidores interessados em aplicar no Brasil: a grossa maioria, se não a totalidade das reuniões de nosso ministro da Fazenda será com representantes de empresas estatais chinesas do setor industrial ou do setor financeiro. Sabem por que aposto no escuro? Porque vejo claro o que é a direção petista, de doutrina revolucionária e internacionalista. Não se importa de entregar a preço de banana patrimônio público para estatais comunistas. A recomposição, cada vez mais difícil, do caixa das empresas pilhadas pela cumpanherada ou do Tesouro, exaurido pelas mágicas da nova matriz econômica, nos manietará ainda mais à China. A imprensa noticia, o déficit somado dos quatro fundos de pensão Previ (BB), Petros (Petrobrás), Funcef (Caixa) e Postalis (Correios) é de 46 bilhões de reais. A cumpanherada na direção deles apanhou dinheiro dos segurados e comprou até títulos da Venezuela e da Argentina! Viraram pó, lógico. Quem vai tapar o rombo? Servidores ativos, aposentados e o Tesouro (você, contribuinte). O que torna, cada vez mais urgente a privatização selvagem, com especial presença do capital estatal chinês.
Agravando as cores do quadro, ponho aqui o testemunho de Delfim Netto (Valor, 17/2), no caso insuspeito, pois vem dos mais valiosos apoios que os governos petistas receberam nos últimos 13 anos: “O governo finge esquecer que nos últimos 20 anos estimulou a importação da China para controlar a inflação. Roubou-lhe [à indústria siderúrgica], lentamente, as condições isonômicas de competição [...] Existem, ainda, "idiots savants" que creem que a China é uma economia de mercado que exporta ao custo marginal? Ou que seus preços de exportação vão continuar os mesmos quando destruir seus competidores? [...] Sua mão de obra barata e sem assistência social, permitiu a todos os governos mitigarem a sua inflação importando da China e jogando no lixo as regras do comércio razoavelmente moralizado que se propunha na OMC. [...] Não há como competir com a China, uma economia basicamente estatizada, num setor com incontáveis distorções de preços que nada têm a ver com os de mercado. Em 2003, ela produzia 220 milhões de toneladas de aço bruto (23% da produção mundial) e em 2014 produziu 823 milhões de toneladas (49% da produção mundial). No mesmo período, suas exportações de aço passaram de 7,4 milhões de toneladas para 93 milhões (três vezes a nossa produção), graças a artifícios que todos fingem não ver. Certamente, não por conta da mítica eficiência dos seus burocratas, mas pelo efeito do subsídio adicional visível que só em 2015 foi da ordem de US$ 10 bilhões!”

Em outras palavras, com a conivência do governo, a indústria siderúrgica brasileira vem sendo destruída. No final, lógico, mandaremos minério de ferro para a China e importaremos manufaturados, como qualquer país colonial (ou colonizado). O que padece o setor da siderurgia, sofrem outros setores. Delfim Nettto observa ainda: “Nos últimos anos perdemos a produção de alumínio (onde nossas vantagens relativas eram imensas) e a do níquel (onde a tecnologia era a do estado da arte). Estamos agora a assistir, perplexos, a mesma paralisia governamental levar à destruição o setor siderúrgico nacional”

Em 1984, a participação da indústria manufatureira no PIB nacional estava em torno de 25%. Em 2005, 19%. Em 2015,12%, nível do pós-guerra. É sintoma da regressão para o status de país colônia, sujeito a regras que protegem a manufatura na metrópole. No nosso caso, a metrópole escondida nas brumas do futuro, mas facilmente, discernível, é Pequim. E não será a autocracia das potências coloniais do século 19. Teremos, o caminho não interrompido, como futuro senhor potência mundial imperialista, então talvez a primeira do mundo, dirigida por partido totalitário, ateu, coletivista.

A marcha para a servidão tem a colaboração das legiões de inocentes úteis e companheiros de viagem que, por vantagens momentâneas (aqui conta bastante o governismo quase compulsório dos que têm fome das verbas federais para gerir Estados e prefeituras), somam-se aos que empurram o Brasil para o abismo por razões doutrinárias.


Está em jogo imediatamente a soberania nacional. Ainda mais, nosso futuro de nação independente, cristã e de raízes ocidentais. O que são João Batista pedia, dois milênios atrás, ao clamar no deserto, era que endireitassem os caminhos. Atualíssimo para nós, ir no rumo certo; para isso, de começo, recusar com coragem lúcida a submissão.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Encenação confrangedora

Encenação confrangedora

Péricles Capanema

Por volta de abril de 1964 no mensário Catolicismo li “Pensando, criticando, matizando e esperando na borrasca do século XX”, coluna ou artigo, não sei bem, de Plinio Corrêa de Oliveira. O título, fácil de gravar, esboçava programa de vida intelectual, mais ainda, de vida. Ficou na memória.

Até hoje, a todo propósito, a frase me volta ao espírito. Alguma coisa digna de nota caiu debaixo dos olhos? Não a deixe passar em branco. Sobre ela reflita com calma, critique com severa objetividade, mas sem amargor, examine até o fundo as circunstâncias, podem mudar em 180 graus seu juízo a respeito e, mesmo na borrasca, sob a luz da Fé e com esteio no que naturalmente possa existir de bom naquela realidade, não desanime, menos ainda desespere. Com prudência, olhar esperançoso.

Voltou hoje quando lia sobre o dia contra o Aedes aegypti. Todos juntos no sábado, sob as ordens da presidente Dilma Rousseff. Até Alexandre Trombini, presidente do Banco Central, calça jeans e camiseta polo, meio perdido, circulou por umas duas horas por Brazilândia no Distrito Federal. Depois, sumiu. Elivaldo, funcionário público, chutou: ▬ Não conheço. Ele é o ministro da Saúde, né? ▬ D. Rita, ali por perto, garantiu: ▬ Sei quem é. É o ministro da Saúde. ▬ Irmanado no mesmo combate, Sérgio Danese, ministro interino das Relações Exteriores deixou Brasília e chegou a São José dos Campos no final da manhã, já nas ruas as equipes. Acompanhado do prefeito, ele também foi agente de controle e visitou algumas casas, ensinando o pessoal a combater o mosquito. No Rio de Janeiro, depois da visita a algumas residências da comunidade Zepelin, a Presidente iniciou com estudada solenidade a entrevista que marcava o dia com estas palavras: ▬ Nós estamos, a Presidente, o Governador do Rio de Janeiro, o Prefeito do Rio de Janeiro, e as Forças Armadas, os agentes de saúde, enfim, todos mobilizados nessa grande mobilização que nós estamos fazendo no dia de hoje [...] que é o início da campanha mais presencial que o governo federal fará para a questão do mosquito. ▬ É isso aí.

Cenas assim se repetiram Brasil afora. Presidente, vinte e oito ministros, altos funcionários, a maior parte jejuna do assunto, acompanhados sempre da imprensa, varando o Brasil no jato presidencial ou de jatinho para evidenciar a determinação do governo em acabar com os três cavaleiros do Apocalipse que, todos percebem, por desleixo de décadas do governo, vão tomando conta do país: dengue, febre chikungunya e zika vírus.

É modo sério de combater epidemia? País quebrado, dinheiro torrado a rodo num show de triste realização? Como evitar a penosa sensação do disparate?

Houvesse seriedade, uma primeira medida saltaria de imediato: para o ministério da Saúde nomear grande especialista, com prática de gestão, suprapartidário, com carta branca para comandar todos os esforços no combate à epidemia; um outro dr. Adib Jatene, enfim. A situação no público mudaria instantaneamente da água para o vinho. Óbvio ululante, teria impacto maior que a fuzarca toda do Dia Nacional de Mobilização para o Combate ao Mosquito Aedes Aegypti (nome oficial da peça publicitária).

Claro, dessa medida não se fala, as prioridades são outras. O ministro não é o roliço Alexandre Trombini, como achavam transeuntes interessados na movimentação rara em Brazilândia. O esguio Marcelo Castro é o autêntico titular. Médico psiquiatra, três mandatos de deputado estadual e cinco de deputado federal, é membro antigo do baixo clero, pinçado para o cargo para garantir votos do PMDB em eventual processo de impeachment.

Apesar da escolha fisiológica, o ministro teve, dias atrás, o mérito inegável de pôr o preto no branco no grave assunto, proclamando que o Brasil estava perdendo a guerra contra o mosquito. Completou: ▬ Não podemos correr o risco de termos no futuro uma geração de sequelados, de retardados mentais. O problema é alarmante porque está acontecendo no Nordeste, vai acontecer no Brasil inteiro, vai acontecer nos países tropicais inteiros. É uma epidemia de perspectivas mundiais, temos 30 anos de convivência com o mosquito. Não quero culpar ninguém, mas houve uma contemporização com o mosquito.

Sei, ainda não está provado que o zika vírus causa a microcefalia. A Organização Mundial de Saúde prometeu para as próximas semanas a confirmação (ou o contrário). De qualquer maneira, é urgente o combate ao mosquito e é sensato o temor do dr. Marcelo. Em 2015 tivemos 1,6 milhão de casos de dengue no Brasil, 836 mortes (só considerando a dengue). E, nesse sentido, a gigantesca movimentação propagandística do sábado último ajudou muita gente a tomar medidas saneadoras. Avanço positivo num objetivo fundamental, o aumento da conscientização, mas executado de maneira abusiva, por alguns vista até como inescrupulosa.

Marcelo Castro falou em geração de sequelados, de retardados mentais. Linguagem dura, evidencia que o assunto exige a maior seriedade. Por respeito, em especial às mães de bebês atingidos pelas sequelas do zika (admitida a relação de causa e efeito) é urgente poupar ao povo brasileiro novos e custosos espetáculos midiáticos como o que o Brasil presenciou consternado no último dia 11. Infelizmente, o governo petista é useiro e vezeiro em grandes shows publicitários no lançamento de programas que depois são executados na bagunça e na irresponsabilidade, com farta roubalheira, haja vista os vários PACs.


Pensar, criticar, matizar, esperar. O chocante Dia Nacional de Mobilização para o Combate ao Mosquito Aedes Aegypti me relembrou o “pensar, criticar, matizar, esperar”. Reconheço, para todos nós, teria sido melhor a ausência da ocasião.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Caldo de cultura deletério

Caldo de cultura deletério

Péricles Capanema

Dia desses, numa banca de jornal, ouvi de velhote espevitado: ▬ Quem é o maior responsável moral pela roubalheira no governo? Arriscou uma moça baixinha: ▬ O big? Os políticos do PT e também os mandachuvas dos outros partidos com eles. ▬ A dona da banca, altona, meio enfezada: ▬ Só bandalheira? Tem a carestia, desemprego. ▬ Ficou por aí a conversa. Pesadão, pensei com meus botões: ▬ Tem ainda o projeto totalitário, a agenda libertária, a busca obsessiva da hegemonia.

Responsabilidade moral, não a imediata, foi a pergunta. Ontem, por acaso, passei os olhos em subsídios preciosos para uma boa resposta. Vieram de José de Souza Martins, celebrado sociólogo, aposentado da USP, 45 livros publicados. Foi ainda professor em cursos promovidos pela CNBB. Na década de 80, discípulos seus participaram da fundação do PT e, quatro anos depois, do MST. Do ramo, se vê.

Com a segurança do grande estudioso, garante ele (Veja 2.463, páginas amarelas): ▬ O Partido dos Trabalhadores surgiu no ABC paulista. Tratava-se, do ponto de vista formal, de um partido católico. O PT foi gestado desde os anos 50 pelo primeiro bispo de Santo André, dom Jorge Marques de Oliveira. Dom Jorge me disse que os trabalhadores do ABC ficavam no Centro Operário Católico jogando pingue-pongue. Ele os incentivava a ir para a porta da fábrica. Dom Jorge inventou Lula, antes que Lula soubesse disso, ao criar as bases para o surgimento do PT”.

O professor Souza Martins simplifica. Propriamente, o PT é filho da esquerda católica, nunca medraria nos campos do catolicismo conservador ou tradicional. O que houve (e há) foi condescendência, complacência, às vezes cumplicidade, do catolicismo mainstream em relação à esquerda católica.

Volto aos trilhos. Dom Jorge (1915-1989), dos expoentes dessa orientação, está entre os oito signatários brasileiros, junto com dom Hélder e dom José Maria Pires, do Pacto das Catacumbas, de cujas doutrinas nasceu a Teologia da Libertação. Com efeito, o antigo antístite de Santo André foi assistente eclesiástico da JUC, de onde, prestigiado, saltou em 1946, aos 31 anos, para o episcopado, na ocasião o bispo mais novo do mundo. Foi sempre presença destacada nos círculos da Ação Católica a partir dos anos 40 até ser substituído em 1975 na direção da diocese de Santo André [responsável pelo Grande ABC] por dom Cláudio Hummes quem, aliás, caminhou na trilha aberta por dom Jorge.

Dois pontos importantes nas observações de Souza Martins. Primeiro, dom Jorge ▬ e, digo eu, como ele, outros bispos ▬ fez com que numerosos operários católicos, antes apáticos, se tornassem ativistas, passassem a bafejar a esquerda sindical e depois nela militassem. Segundo, sem descer até tal detalhe, está no bojo das palavras de Souza Martins, o PT germinou no caldo de cultura da Ação Católica. Dom Jorge em Santo André, à vera, cultivou tais germes com maior aplicação que outros bispos de orientação parecida. E por isso ali no ABC, como em casa própria, firmaram-se lideranças de esquerda, em particular Lula.

Convém destacar aqui, para melhor entender as observações de Souza Martins, na Ação Católica eram particularmente virulentos os germes do progressismo. Na sociedade e na política, alguns de seus seguidores se radicalizaram mais, outros ficaram pelo caminho, estacionando em diferentes graus de esquerdismo. O PDC, com faixas condicionadas por hábitos conservadores, se nutriu naquelas águas. Já a Ação Popular, de mesma raiz (saiu da JUC) foi além e, na lógica dos demolidores princípios esposados, desembocou, já marxista, na guerrilha comunista.

Agora, a resposta à pergunta do velhote. A grande responsabilidade moral pela degradação generalizada causada pelos desgovernos petistas repousa nos ombros dos dirigentes da Ação Católica que, com seus vários ramos, desde a década de 30, produziu no Brasil gigantesca mudança de convicções e mentalidades, em graus diferentes favorecedoras da esquerda. É claro, o PT teve ainda o setor intelectual e o setor sindical de raízes laicas. Mas teriam importância reduzida, inexistisse o caldo de cultura produzido pela Ação Católica.


Em 1943, o prof. Plinio Corrêa de Oliveira, então presidente da Ação Católica em São Paulo, publicou com grande repercussão o livro “Em defesa da Ação Católica”, denúncia contra o progressismo e o modernismo, então em disfarçada e rápida expansão nos ambientes católicos. Sem essa vacina (e a ação subsequente de Plinio Corrêa de Oliveira na mesma direção) a situação nacional hoje seria bem pior. Com efeito, a esquerda católica ocupou espaços, conquistou posições importantes, como apontei aqui, criou o caldo de cultura no qual nasceu o PT, mas teve seu passo prejudicado pelo olhar desconfiado de muita gente que, esclarecida pelas posições do livro, com lucidez ali não via luta por justiça, mas ação favorecedora do socialismo, sempre flagelo dos pobres a quem enganadoramente proclama defender.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A imaginação no poder

A imaginação no poder

Péricles Capanema

Em maio de 1968 os estudantes na Paris convulsionada proclamavam comunismo de face nova, autogestionário e utópico, oposto ao socialismo burocrático da União Soviética. Dois slogans provocaram coceira mais intensa: L’imagination au pouvoir e Soyons réalistes, demandons l’impossible (a imaginação ao poder; sejamos realistas, reclamemos o impossível). Têm algo de boutade, mas eram anúncio de enorme mudança.

Para os estudantes, era hora de a fantasia chegar ao poder. De outro modo, a inteligência vencida, perdia o governo isolado, que passava a ser compartilhado pela imaginação, até então la folle du logis (a louca da casa). E ela tornaria alcançáveis aspirações outrora consideradas delirantes. Para ambiente político novo, novas forças mobilizadoras. Turbinadas pelas emoções, se tornou crescente a importância do sonho e da utopia. Empurram para o fundo do palco os antigos programas de conteúdo estruturado, bafejados no fundo pelo iluminismo, esteado no culto da razão.

Na ocasião, como reagiu a França, vista em geral como o país do racionalismo? No primeiro momento, com pasmo e horror. O presidente Charles de Gaulle comandou gigantesca mobilização e manifestações populares contra o que chamou de chienlit (o desbordamento, a bagunça). As eleições parlamentares resultaram em enorme maioria gaullista, nunca antes alcançada, 394 deputados de um total de 487. Parecia a derrota definitiva do programa novo. Mas o maio de 1968 não era sobretudo parlamentar, nem acontecimento restrito à França.

Era parte de fenômeno universal, que visava modificar doutrinas, mas também hábitos, mentalidades, cultura. Nesses anos o movimento hippie levava ao paroxismo costumes libertários que depois, em versão menos espinhenta, tomaram o mundo inteiro. John Lennon a ele emprestou sua voz em Imagine (composta em 1971), canção recebida em delírio pela juventude burguesa no mundo inteiro:

Imagine, não existe o Paraíso [...]
Imagine todas as pessoas
Vivendo apenas para o presente

Imagine não existir países [...]
Nada pelo que matar ou morrer
E nenhuma religião também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz

Você pode dizer
Que sou um sonhador
Mas não sou o único
Tenho a esperança de que um dia
Você se juntará a nós
E o mundo será como um só

Imagine não existir propriedades [...]
Uma irmandade do homem
Imagine todas as pessoas
Compartilhando todo o mundo

Em 1975 Paulo VI advertiu que “psicólogos e sociólogos afirmam ter o homem moderno ultrapassado já a civilização da palavra [...] e viver a civilização da imagem”. Repito, a palavra, expressão da lógica, decaía; a imagem, aninhada na fantasia, subia. Em consequência, na política, de forma crescente, o inesperado e o despropositado vão estar presentes no cenário, com riscos evidentes.

Em 2011, dois movimentos, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos e os Indignados na Espanha, ecos longínquos do maio de 1968, repercutiram mundo afora, com apelos contestatários e anticapitalistas. Na Espanha, efeito imediato, surgiu o Podemos que, nas últimas legislativas, obteve 20,6% dos votos e 69 cadeiras numa câmara de 350. Nos Estados Unidos, o Occupy Wall Street tem sensível influência nas posições do senador Bernie Sanders, que disputa com Hillary Clinton a indicação democrata. A eleição de Barack Obama já se deveu muito à emoção e ao sonho.

Não só à esquerda se aninha a coceira pelas fórmulas salvadoras, de grande carga emocional. Contamina também a área conservadora. Exemplo, a ascensão desnorteante de Donald Trump. Jeb Bush, em certo momento, com seu ar razoável, meio sem graça, foi o candidato com maiores chances. Dificilmente se reerguerá, escrevo logo depois das primárias de Iowa.


Donald Trump muda de partido, muda de opinião, tem posições claramente irrealizáveis, agride sem razão, por vezes desagrega o universo conservador. Nada em seu passado afiança que no poder será fiel à pregação de campanha. Mas desperta sonhos. Continua formigando no público conservador o comichão de apoiá-lo. Outro traço preocupante, pregação com indisfarçável nota bonapartista, o chamarisco da eficiência simplificadora. Lembro, diante do país esfacelado pela Revolução Francesa, o povo buscava desesperadamente um salvador; para restabelecer a ordem se apresentou um general jovem, resoluto, vitorioso (nada faz tanto sucesso como o sucesso). Outra possibilidade, a França tinha, longe, esfumaçado, um pretendente (o conde de Provença, futuro Luís XVIII) imerso nas brumas inglesas, ornado apenas com os encantos da legitimidade. Aclamou Napoleão, vieram a seguir, de cambulhada, cerca de quinze anos de guerras e convulsões sociais. Finalmente foi chamado Luís XVIII que, na pátria devolvida a seus limites naturais, repôs as coisas num caminho de normalidade. A propósito, difícil negá-lo, Jeb Bush em algo lembra Luís XVIII. Moral da história, sempre arriscado a imaginação tomar o poder.