domingo, 31 de outubro de 2021

A Constituição e os índios (1)

 

A Constituição e os índios (1)

 

Péricles Capanema

 

Artigo 231. Na momentosa questão do marco temporal, recorre-se sem cessar ao artigo 231 da Constituição, que, muitos o alardeiam, abrigaria verdadeiro estatuto do índio. Reza o caput do mencionado item: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

 

Artigo 3. Sua exegese, a do 231, por coerência constitucional, precisa ser feita de acordo com o artigo 3º que coloca os fundamentos, sobre os quais toda a carta deve ser interpretada ▬ em particular, hermenêuticas sistemática e teleológica. Comanda o mencionado artigo 3: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

 

Construção da sociedade livre. Uma sociedade só é livre se composta de pessoas que à vera são livres, a saber, que podem usar bem de sua liberdade natural. De outro modo, pessoas pelo menos com inteligência razoavelmente desenvolvida, com autonomia, meios, personalidade. Vale para todos, vale, é claro, também para os índios. Aqui se desenha objetivo constitucional fundamental: participação dos índios como cidadãos plenos e para tal estímulos para que alcancem personalidades bem desenvolvidas. Avanços civilizatórios é o que comanda o mandamento constitucional; sem chapinar em estagnações desagregadoras.

 

Obstáculos na caminhada. Vou mencionar como exemplo apenas um obstáculo a tal objetivo. Os índios têm sido vítimas de doutrinas atrofiantes que empapam a sociedade em todo o período republicano: foram reduzidos à condição de servos da gleba, posseiros de terras estatais. Não podem avançar, têm de ficar empantanados no retrocesso, acorrentados pelo obscurantismo. De momento, toda a ação das esquerdas empurra para os algemar indefinidamente na condição de servos da gleba, posseiros em terras estatais. Onde está a liberdade? Onde ficou a construção da sociedade livre? Situação claramente anticonstitucional, s. m. j. Minha proposta, não é só minha, mas certamente de todo brasileiro esclarecido, é a seguinte: com senso de medida, gradualmente, estimular para que os índios alcancem logo que possível a condição plena de cidadãos brasileiros. O contrário é obscurantismo.

 

Restauração regenerativa. É marcha para restauração do que já tiveram no passado colonial. Regenera um tecido social dilacerado. Enfim, extingue o retrocesso, já multissecular, da mera posse perene. Retorna à estrada do avanço, que tem o domínio (a propriedade) em sua chegada, cuja construção foi iniciada pelos primeiros reis do Brasil.

 

Caminho real. Reitero, o caminho real aponta no termo para a propriedade (o domínio) e a inerente posse, representa o fim da sujeição atrofiante ao Estado-patrão ▬ entre nós, é o habitual, desorganizado, inclemente, perdulário, autoritário. Dando s costas para o obscurantismo, petrificado no período republicano, é preciso obedecer realmente ao preceito constitucional, objetivo fundamental (supremo) da Carta de 1988, a construção da sociedade livre: É óbvio, situação a ser legislada com sensatez, e tendo como pano de fundo os institutos do Direito Civil a respeito.

 

Desconfiança com o estatismo. Explico-me, repetindo o que escrevi em artigo anterior, citando o ministro Fachin (no caso, inteiramente insuspeito) em seu voto no RE 1.017.365 ▬ uma hora, espero, acaba entrando, à custa de muita repetição, na cabeça do pessoal que teima em manter os índios agrilhoados ao estatismo: “Assim, as cartas régias de julho de 1609 e de 10 de setembro de 1611, promulgadas por Filipe III, afirmam o pleno domínio dos índios sobre seus territórios e sobre as terras que lhes são alocadas nos aldeamento: ‘os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando eles livremente o quiserem fazer’”. O mesmo reconhecimento do domínio [e posse, claro] dos indígenas sobre as terras, lembra o ministro Fachin, ainda se pode constatar em alvará régio de 1680: “Nada obstante o contexto fático, o reconhecimento de posse e domínio sobre as terras que ocupam ocorre com o Alvará Régio de 1680, o qual consignava: ‘[...] E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer moléstia’”. Foi o Direito contemporâneo que operou a regressão: suprimiu o domínio, esbofeteando o Direito Natural; reconheceu como grande concessão a posse. Da condição de senhores, reconhecida pelos reis, caíram para a situação de servos da gleba. Não estaria na hora de avançar, retomando com prudência e senso da justiça a trilha real? Facilitaria a inserção, a participação, a inclusão dos indígenas na sociedade brasileira. Seriam medidas eficazes contra a exclusão, que nos infelicita há décadas (pelo menos). Voltarei ao assunto.

 

PL 490. Minha proposta requer mudança constitucional, claro, a mais de debates amplos na sociedade. Em resumo, não é simples. Tem a vantagem inestimável, acho, de abrir as cabeças, desenhar uma solução que estimularia os índios a deixarem situações passivas, assumirem protagonismo. Seriam donos do próprio destino, participantes sociais plenos e não condenados a vegetar, para sempre, amarrados por utopias, pobres cobaias de grupos fanatizados e servos da gleba de estatismos delirantes. De momento, temos providência imediata e simples. A saída é começar pelo básico, o factível, procurar aprovar o PL 490. Para tal se requer o esforço de todos, em especial produtores rurais e lideranças indígenas realmente preocupadas com a prosperidade contínua e crescente de suas etnias.

 

Quer casar quanto?

 

Quer casar quanto?

 

Péricles Capanema

 

Saudades instrutivas. Tive um amigo com quem privei pouco, mas foi “quality time” o que passei com ele. Faleceu faz pouco, deixou muitas saudades em que dele foi próximo, irradiava simpatia reservada e esquiva. Era da cidade onde nasci, morava, entretanto, em outra, distante dali, viajava pouco. Emprego modesto, batalhou com dificuldades, ambições limitadas, família direita, caráter de ouro. Boa gente, já disse, trato fácil, observação aguda de muitos aspectos da vida. Foi brasileiro típico de nosso interior, de fundo temperamental pacato, mais raiz que tronco; mais galhos que flores e frutos. Compartilho aqui com os raros leitores um tiquinho de comentários despretensiosos a propósito da vida dele, um “pot-pourri” -de pequenos fatos e reflexões. A singeleza expressiva dele poderá a alguns facilitar ir pelo rumo direito no meio da desorientação provocada pelo exibicionismo vazio de nossos dias. Faz falta o elogio da singeleza, ficou muito atual. Uma coisa não foi, nem lhe passava pela cabeça, ser exibicionista. Era o contrário, meio caramujo. Queria o certo, sofria vendo coisas desmoronar e ele, impotente, julgava nada poder fazer. E não se aproveitava com o “eu avisei”. Sua memória vai além de instrutiva; é edificante.

 

Potencialidades adormecidas. Faço uma paradinha, o “pot-pourri” terá algumas. Não aproveitou tudo o que tinha a dar, como tantos de nós, potencialidades nunca desabrochadas, jogadas à beira dos caminhos. Surge natural a advertência na hora de recordar vida relevante e exemplar sob tantos títulos. Advertência que ecoa na parábola dos talentos: “Servo mau e negligente! Você sabia que eu colho onde não plantei e junto onde não semeei? Então você devia ter confiado o meu dinheiro aos banqueiros, para que, quando eu voltasse, o recebesse de volta com juros. Tirem o talento dele e entreguem-no ao que tem dez. Pois a quem tem, mais será dado, e terá em grande quantidade. Mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado” (Mt 25, 24-29). Falo das qualidades individuais, é o foco, mas latem outras. Há talentos que pairam sobre famílias, embebendo sua atividade. Daí, em círculos cada vez mais amplos, qualidades regionais e nacionais. E algumas potencialidades só podem algum dia se transformar em realidades vibrantes se, por décadas, houver rumo correto na vida dos filhos e netos (na vida dos grupamentos humanos). O grande “coach” não é o “coach” das profissões; é o das potencialidades, assunto desconsiderado, nem se pensa nisso. Aqui está, na raiz, a efetiva arte de governar, saber despertar potencialidades de todas as espécies, ser farol delas.

 

“Quer casar quanto?” Volto à figura do amigo. Pacato, era igualmente um manso afirmativo. Brigador, defendia com ardor e com delícias suas posições nos mais variados campos, política, religião, futebol. Discutia com qualquer um, até mesmo especialistas, tinha certeza de seus pontos de vista, em geral corretos e sensatos. Mas, era surpreendente, nunca argumentava a favor deles. Pareceria, achava perda de tempo empilhar razões pelas opiniões que esposava. Talvez entrasse aqui pitada de preguiça mental, explicável em quem se dedicava, noite e dia, a assuntos da vida prática. Não estou certo se em toda sua vida leu um livro. Contudo, observava muito, ruminava e conversava. Daí vinha sua cultura mediana, suficiente para seus deveres de pai de família sério, profissional consciente e cidadão ativo. Ser-lhe-ia então difícil construir silogismos, aparar de arestas a expressão do pensamento. Para ele, bastava a exposição que fazia sempre assertivo, já estavam postas à luz as provas suficientes, roçando na evidência. Se contestado, e acontecia com frequência, respondia sem vacilação: “Quer casar quanto?” Com a maior naturalidade, propunha sempre a aposta como contradita decisiva. Ninguém levava a sério a proposta, claro, todo mundo sabia que a réplica do rapaz era quase um ato reflexo e que ele dali a pouco pacificamente iria mudar de assunto e logo depois puxaria de novo o bordão: “quer casar quanto?”

 

Inovação, originalidade e criatividade. Vou chama-lo de João. O Brasil está carente de Joãos. Melhoraria muito, tivéssemos nós multidões de Joãos. O desafio “quer casar quanto?”, em sua bonomia descompromissada, valeria mais hoje para o esclarecimento dos assuntos do que vai se tornando habitual, a torrente de impropérios boçais, resposta de quem se sente contestado. Em especial nas redes e, é comum ter motivo compreensível. A monetização (isto é o pagamento recebido pelas visualizações), o dinheiro recebido, depende da quantidade e da atividade do site. E a agressividade destrambelhada rende mais reações que a boa educação, de si discreta e contida. Ativismo violento nas redes virou meio de vida. Volto do atalho, de novo. A expressão “quer casar quanto?”, viva e chamativa, revelava aspecto valioso de sua personalidade. Como em muita coisa que fazia, despretensiosas assomavam três características: originalidade, criatividade, inovação. Abria trilhas, tinha jeitão próprio de fazer tudo.

 

Pertransiit benefaciendo (At 10, 38). Como nas bodas de Caná, o vinho melhor será servido no fim. Foi bom católico, deu bom exemplo, deixou memória edificante. Em resumo, andou de lugar em lugar, fazendo o bem. Como Nosso Senhor, nas palavras de são Pedro. Nada tem maior valor que isso. Que Deus o acolha em seus braços misericordiosos.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Ainda é possível salvar os índios

 

Ainda é possível salvar os índios

 

Péricles Capanema

 

Os fatos reclamam uma aliança. Vou tratar do marco temporal ▬ fincado em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Carta Magna. E, lá no fim, tratar da aliança à qual me referi no início e que, julgo, precisa surgir. Ao artigo. Potencialmente, temos, à vista, crescentes conflagrações no campo. Dependerá de como terminará a presente ação do referido marco temporal no STF e ainda de como o Congresso agirá no caso. Se ganharem as forças da vanguarda do atraso (os agitadores), precipitar-se-ão inevitáveis queda de investimentos no agro, altas nos preços de produção, no fim, menos emprego e baixa na renda. No exterior, desconfiança de possíveis investidores em relação ao Brasil. Em curto, mais pobreza numa nação já enormemente castigada. A razão primeira é a influência da demagogia, cada vez mais destrambelhada a propósito dos problemas suscitados pela atualidade candente da questão do marco temporal. Ela borrifa incerteza a respeito de direitos, agride o agronegócio e ameaça o futuro dos índios, irmãos nossos. De passagem, esclarecimento para alguém que ainda não saiba o que é o marco temporal. Em resumo por alto, a tese do marco temporal (de fato, uma jurisprudência) afirma que as terras indígenas tradicionalmente ocupadas, passíveis de demarcação, são as que existiam até 5 de outubro de 1988. Há ainda um adendo, do qual não tratarei aqui, o intitulado esbulho renitente.

 

Ingenuidade suicida. Após o rumoroso episódio da reserva Raposa Serra do Sol em 2009, entendeu-se, ingênua (fico por aqui) e falsamente, que o campo brasileiro, depois do golpe, poderia trabalhar em paz, com base em jurisprudência pacificada. Ledo engano. A sanha esquerdista, com enfezado apoio em todos os quadrantes sociais e meios de divulgação, leva adiante agora novo golpe, já em avançado estado de execução, procurando dinamitar a jurisprudência tida por já assentada, a ser substituída por outras interpretações que disseminarão a insegurança jurídica ▬ pipocarão conflitos fundiários. Caso seja incinerada a tese do marco temporal, vitoriosa em 2009, já se divulga, 829 disputas estão em posição semelhantes à vivida em Santa Catarina, cujo desenlace será a entrega de terras à União (e aos índios posseiros), considerando a declaração de repercussão geral do caso. Virão outras, posteriormente; não sejamos simplórios. Estatização selvagem no horizonte.

 

Propriedades estatais, posse indígena (usufruto). Com efeito, estamos em caminho que leva à estatização maciça. É a lei, a terra entregue às comunidades indígenas não lhes será dada em domínio ▬ nunca serão proprietários e, curiosamente, a respeito disso ninguém reclama, nem os próprios índios metidos nas agitações. A estatização efetiva paira sobre o assunto como espécie de intocável cláusula pétrea. Tem mais: a União não vai pagar um tostão pela terra demarcada, salvo benfeitorias feitas de boa-fé, a ser comprovada.

 

Torquês dilacerante. A torquês a ser aplicada sobre a economia nacional, em especial a economia e propriedade agrícolas, apresenta duas hastes com pontas curvas de corte afiado. Provocarão sangramento, periga hemorragia, na economia; mais ainda, à vera, no corpo social.

 

Jurisprudência nova.  A primeira haste é a interpretação pelo menos controversa (migração jurisprudencial; talvez caminhemos até para mutação constitucional) do artigo 231 da Constituição Cidadã. Ali se reconhece direito originário dos índios sobre as terras que “tradicionalmente ocupam”, do que derivaria, país afora, terras públicas e posse indígena. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

 

Hermenêutica em evolução. A presente hermenêutica do texto constitucional, exposta no voto do ministro Nunes Marques, poderá migrar para interpretação muito pior; está pendente do voto de oito ou talvez nove ministros no processo em curso no Supremo ▬ já se conhecem as posições do ministro Fachin, mutação radical, e do ministro Nunes Marques. pela manutenção. Reconhecida a “posse tradicional” por laudo antropológico, segundo interpretação inovadora e muito ampliada, a porteira ficará escancarada para a União tomar conta do espaço agrícola e entregá-lo aos índios. Lembra com pertinência o ministro Kassio Nunes Marques em seu voto no RE 1.017.365: “A Constituição Federal acolheu a teoria do indigenato na qual a relação estabelecida entre a terra e o indígena é congênita e, por conseguinte, originária. [...] De fato, em seu grau máximo, a teoria do indigenato teria potencial até de eliminar o fundamento da soberania nacional. Se o índio era senhor e possuidor de toda a terra que um dia fora sua, por direito congênito, como poderia o Brasil justificar o seu poder de mando sobre o território que não era senão uma aldeia em processo de devolução aos legítimos senhores?” Está certo, não haverá limites; com base em interpretações cada vez mais radicalizadas, toda a terra pertencerá aos índios (na realidade, ao Estado); na prática, se generalizarão os conflitos e o Estado irá assumindo, ▬ no passo que julgar tolerável para o público traumatizado ▬, a titularidade das terras.

 

Opção preferencial pelo entulho autoritário.  Agora, a segunda haste da torquês, dilacera igualmente. A esquerda toda, CIMI, PT, PSOL, ONGs filo-comunistas internacionais e seus companheiros de viagem fazem defesa furibunda de um entulho autoritário, a saber, disposições tecnocráticas e autoritárias da lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973 (governo Médici). Para todos eles, xodó intocável em relação ao ali escrito. Com base nelas, e com adrede interpretação do artigo 231 da Constituição Cidadã, acima mencionada, esperam gradualmente borrifar o agro brasileiro de norte a sul de manchas de efetivo comunismo ▬ salpicação crescente de propriedades estatais entregues a comunidades indígenas. A experiência histórica mostra, teremos grupamentos humanos vegetando na miséria, lanhados pela desorganização interna e de órgãos governamentais, torturados pelo crime, a mais de viver do dinheiro público. É futuro que se deseje?

 

Tumor de estimação. Pretende-se no caso manter intocado o caráter tecnocrático da lei 6.001 (procedimento administrativo, basta a bem dizer um laudo feito por antropólogo escolhido pela FUNAI para a demarcação), ademais de seu viés autoritário e burocrático (homologação simples). Aqui está o avantesma intocável: “Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio [FUNAI, no caso], serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo. § 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras”. Acabou, nada de debate, de participação de interessados, de controle público. A exclusão precisa ser protegida.

 

PL 490. O que o projeto de lei 409 de 2007 buscou (e por isso foi abominado por toda forma de esquerda) foi, no processo de demarcação, aumentar a participação popular, em particular dos interessados. Aplicar a inclusão, enfim. A respeito, observou com pertinência o deputado gaúcho Jerônimo Goergen ao defender a aprovação urgente do PL 490, as áreas reivindicadas para demarcação envolvem gigantescos e numerosos interesses públicos e privados. Entre elas, áreas de proteção ambiental, áreas ligadas proximamente à segurança nacional como as de fronteira, propriedades privadas destinadas à produção agropecuária, cidades, núcleos urbanos, casarios e núcleos habitacionais. A mais, ponderou o parlamentar, existem estradas, redes de energia elétrica, de telefonia, áreas de prospecção mineral, cursos d’água com recursos hídricos. Abrir a porteira de forma indiscriminada para demarcações, e é o que está na iminência de acontecer, garante com objetividade o ativo líder gaúcho, poderá inviabilizar estados e municípios. “Fica até difícil explicar como conseguimos gerar tanta insegurança jurídica para nós mesmos mantendo o Congresso Nacional de fora deste debate”, concluiu.

 

Alarma no agronegócio. Uma visão a “vol d’oiseau”. Conforme venha a sentença (acórdão) da ação em curso no STF, teremos paz no campo, mesmo que passageira e ameaçada, ou punhaladas imediatas no agronegócio. O ministro Alexandre de Moraes, que havia pedido vista nos autos, devolveu o Recurso Extraordinário 1.107.365. A colocação em pauta depende agora apenas de decisão do ministro Luiz Fux. De um lado, está o voto do relator Edson Fachin. Nega que exista o chamado marco temporal, data limite para a aplicação do conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas (5 de outubro de 1988). De outro, o ministro Nunes Marques. Afirma, existe o marco temporal, está claro na jurisprudência reiterada do Supremo. Observando com isenção os atores em movimento, a situação no palco não se apresenta tranquilizadora. Infelizmente, parece, falta rumo no Executivo e atuação enérgica de lideranças rurais no Congresso ou fora dele que, oxalá, serão óbices que evaporem logo, e possamos constatar tomadas de posição norteadoras que afastem as perspectivas trágicas.

 

Saída óbvia. De um óbvio ululante. A medida factível, rápida e simples, é clara: aprovar já o substitutivo do PL-490, fazê-lo lei. Os textos dormem no Congresso desde 2007-2008 ▬ constituem, parece, tentativa (frustrada, infelizmente), um emplastro de ocasião, para evitar o desastre que foi a decisão judicial no episódio Raposo Serra do Sol. O PL-490 é de lei ordinária, não requer quórum qualificado, nem maioria absoluta; exige apenas quórum regulamentar e maioria simples.

 

A aliança que está fazendo falta. Afirmei acima, faz falta uma aliança. Deveras, uma “santa aliança”, para lembrar o pacto entre as potências conservadoras no começo do século XIX. Urge conjunção de esforços proficientes entre produtores rurais e índios. Lideranças dos dois lados promoveriam seus interesses, além de ajudarem o bem comum, se somassem esforços, procurassem esclarecer o público e ampliar apoios. Os interesses são confluentes, a disputa é artificial e contra a natureza das coisas. O produtor rural deve ser amigo do índio. O índio deve ser amigo do produtor rural. Ambos trabalham para crescer na vida no mesmo ambiente, utilizam-se dos mesmos meios, com apoio estatal sem dúvida, mas sobretudo com forças próprias.

 

Recordações necessárias. A maior parte dos índios (imensíssima maioria), mesmo mantendo usos e costumes, quer posto de saúde, escola, estrada, maior instrução e maiores possibilidades de aperfeiçoamento para os filhos. Abomina retrocesso e paradeiras; assim como os produtores rurais, querem avançar.

 

Índio não é porquinho-da-Índia. Os indígenas não podem ser presas virtualmente passivas de organizações tomadas por delírios ideológicos, que os tratam como verdadeiros porquinhos-da-Índia de experimentações sociais que deram errado em todos os lugares em que foram impostas, causa contínua de sofrimentos, miséria e retrocessos civilizatórios. Ainda é possível evitar a derrocada do engate dos povos indígenas às organizações do atraso, cenário dantesco que se esboça, proporcionando assim aos índios os instrumentos de avanço para que assumam o próprio destino nas mãos. No fim, salvem-se a si mesmos, tendo, é claro, dos demais brasileiros toda a ajuda de que queiram ou precisem. Prosperem, busquem o aperfeiçoamento. A felicidade vem da autonomia crescente, do vento forte da liberdade, fundamentos de crescimento pessoal, nunca da condição de cobaias de experiência sociais utópicas. Melhorando o tema, ainda é possível ajudar os índios para que rumem na via que escolherem e que nós sabemos pela  experiência, é a do aperfeiçoamento. Voltarei ao tema.

 

domingo, 17 de outubro de 2021

Imperialismo chinês mundial

 

Imperialismo chinês mundial

 

Péricles Capanema

 

Imperialismo e colonialismo. Característica importante das potências colonizadoras e ainda das imperialistas, tantas vezes decisiva, têm créditos enormes a receber dos países sob seu domínio. Melhorando, créditos a receber de empréstimos normais ou subsidiados, bem como a agradecer donativos; são várias as formas de retribuição. Essa teia amarra e subjuga. Quem pede dinheiro emprestado e tem dificuldades de pagar, torna-se facilmente vítima de chantagem, perde pelo menos parte da liberdade. Devedor acaba ficando na mão do credor. É real entre indivíduos, é real entre países. Uns, os credores, tendem a agir como potências colonizadoras (ou imperialistas); os mutuários, os devedores, sobretudo quando não estão conseguindo pagar, como colônias, protetorados, satélites, estados clientes, confessados ou não, pouco importa, a realidade é o que conta. De alguma maneira, a situação se repete e até se agrava com créditos subsidiados e doações.

 

Créditos para 165 países. Grupo internacional de pesquisadores, (AidData), mais de 135 pessoas altamente qualificadas, ligado ao Global Research Institute (William & Mary’s), antiga e prestigiada instituição dos Estados Unidos, publicou em setembro último pesquisa iniciada “grosso modo” em 2013 sobre o intenso financiamento de projetos de várias naturezas realizado nos últimos anos pelo governo chinês, em especial por meio de bancos estatais e de empresas estatais do país. Em resumo, assevera a pesquisa, até o presente momento foram ou estão sendo financiados 13.427 projetos em 165 países, em especial de baixa e média renda per capita. No Brasil, apenas como exemplo, estão em curso vários projetos bancados com dinheiro chinês, de modo particular destaco por sua influência na cultura a instalação de numerosos “Instituto Confúcio” em universidades e grandes cidades. A instituição estatal chinesa oferece de modo sobressalente cursos de chinês e intercâmbios. Por exemplo, em São Paulo, o mencionado instituto está presente em 13 cidades. É trabalho contínuo, anos e décadas a fio, de derrubada de barreiras ideológicas. No Brasil, no conjunto, estão financiados pelos chineses 134 projetos, totalizando 39 bilhões de dólares ▬ empréstimos normais e empréstimos subsidiados. O total de financiamento chineses hoje no mundo está por volta de 843 bilhões de dólares (os dados estão na rede, relatório de 166 páginas, arquivo PDF, título “Banking on the Belt and Road: insight from a new global dataset of 13,427 Chinese development projects”). Desses 165 países, 42 têm dívidas com a China que excedem 10% de seu Produto Nacional Bruto. 334 instituições chinesas estão envolvidas na concessão dos empréstimos, dentre as quais se sobressaem ministérios, gigantes estatais e dois bancos estatais: CDB (China Development Bank) e China Eximbank, o banco destinado ao financiamento das exportações. De outra fonte (Refinitiv) vem a informação, existem 2.600 projetos vinculados à iniciativa Belt and Road, para os quais seriam necessários 3,7 trilhões de dólares em financiamentos.

 

US$385 bilhões de dívidas com a China desconhecidas de organismos internacionais. Do total das dívidas, cerca de US$385 bilhões de dólares não estão sendo contabilizados ou aparecem subcontabilizados nos órgãos de controle internacionais. A maior parte dos financiamentos envolve países que estão incluídos na implantação da chamada BRI (The Belt and Road Initiative – um cinturão, uma rota, em tradução livre), política do governo chinês iniciada em 2013, comportando gigantescas aplicações de capital para construção em particular de obras de infraestrutura (estradas, portos, hidrelétricas, aeroportos), com término previsto para 2049. Estabelecerá mastodôntica malha comercial centrada na China. Oficialmente, envolve 142 países, aqui incluídos países da América Latina e do Caribe. A China, concluída a presente iniciativa em curso, passará a ter papel semelhante à Inglaterra no século XIX e aos Estados Unidos no século XX. Seria uma nova Rota da Seda, malha comercial de intenso comércio entre 206 a. C e 220 d. C. De outro modo, tendo a China como centro, uma nova era de imperialismo comercial.

 

Contra-ataque ocidental. De momento, a China está aplicando aproximadamente 85 bilhões de dólares por ano em tais projetos, mais que o dobro das verbas destinadas a iniciativas semelhantes pelos Estados Unidos, por volta de 37 bilhões de dólares anuais. Contudo, com estímulo bipartidário e ainda apoio dos aliados mais importantes (Canadá, Reino Unido, Alemanha, Itália, França e Japão), a Casa Branca começou a pôr em prática o programa “Build Back Better World - B3W” (Construa de volta (ou de novo) um mundo melhor, em tradução livre), anunciado em junho de 2021 na reunião do G-7. O presidente Biden colocou como meta, até 2035, aplicar até 40 trilhões de dólares em tal iniciativa, de modo geral, obras de infraestrutura em países pobres ou de renda média. Óbvio, a execução ainda depende de numerosos fatores. Alternativa ao BRI chinês, será antídoto poderoso contra o retrocesso representado pelo expansionismo comunista, veneno mortal. Poderá significar a permanência da liberdade e da prosperidade para dezenas de países, talvez mais de cem. Esperemos que a recente decisão política, ainda sujeita a muitas chuvas e trovoadas, tenha eficácia, de outro modo, que barre o neocolonialismo chinês. Seria grande avanço civilizatório. Todas essas iniciativas de contenção do expansionismo chinês dependerão da vivacidade da reação do público. Reatividade popular, aqui deve estar nossa maior atenção.

 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Abre as cortinas do passado

Abre a cortina do passado

 

Péricles Capanema

 

Ah, abre a cortina do passado

Tira a mãe preta do cerrado

Bota o rei congo no congado

Brasil, Brasil

 

Quero ver essa dona caminhando

Pelos salões arrastando

O seu vestido rendado

Brasil, Brasil

 

Uma sociedade ideal. “Aquarela do Brasil”, canção de Ary Barroso (1903-1964), composta em 1939, já se vão mais de oitenta anos, é conhecida no mundo inteiro e de todo mundo. Nenhuma canção da música popular brasileira marcou tão longe e tão fundo. Carlos Heitor Cony (1926-2018), em 2008, escreveu: “Na virada do ano 2000, a Rede Globo fez uma enquete para saber qual teria sido a música popular mais importante do século 20. Deu ‘Aquarela do Brasil’ na cabeça, votação que só não foi unânime porque um dos questionados votou em outra”. Um dos motivos de seu enorme prestígio salta à vista. A melodia evoca uma sociedade ideal, ainda no nascedouro, forte em raízes. mas que já apresentava traços característicos marcantes. Começava a se firmar e a se afirmar, apresentando a todos uma forma de relacionamento humano com potencialidades regenerativas. Num mundo dilacerado pela guerra, surgia uma canção cicatrizante.

 

Censuras sulfurosas. Hoje, contudo, a letra provoca críticas acerbas e rejeições totais; é politicamente incorreta. Um resumo delas poderia ser “país ideal da era ufanista”; “mera criação cultural o Brasil idealizado”. Procedem? São pelo menos injustas em sua parcialidade, cerebrinas, feitas com viseira. A aquarela é pintura de país ideal, sem dúvida. Existia certo ufanismo no ar, refletido no texto, correto. Houve muita criação cultural deslocada dos fatos reais, desprovida de observação social; também é verdadeiro. Mas tais censuras, em parte amontoado de frases feitas e slogans canhestros, não abarcam a realidade inteira. “Aquarela do Brasil” assenta suas bases mais fundas em um substrato real, presente na sociedade do Brasil, mais naqueles anos que agora, que não merece ser empurrado para o corredor da morte, à espera da cadeira elétrica ou da injeção letal. Merece outra coisa, de sentido contrário: viver, ser nutrido, prosperar, afirmar-se. E o encanto que a canção despertou em grande parte foi pela percepção da realidade incipiente que retratava. O que lhe trouxe a perenidade no prestígio não foi o ufanismo oco nem a idealização postiça, foi o substrato palpitante da existência que exprimia. Dela evolou um aroma que a perenizou na memória dos homens.

 

O Brasil, verde que dá

Para o mundo se admirar

O Brasil do meu amor

Terra de Nosso Senhor

Brasil! Brasil! Pra mim! Pra mim!

 

Evocação de convívio exemplar. E como o autor fez isso? Inicialmente, abrindo as cortinas do passado e ali recolhendo sementes do que poderia ser chamada com alguma liberdade a fórmula brasileira de convívio. Do passado o autor retira em primeiro lugar a mãe preta e a apresenta. Vejam, admirem, entendam, imitem, mesmo que ainda no grão, a elevação de sentimentos e a compreensão correta da vida. Chama a atenção para o afeto da preta que nutre o menino branco, o que faz lembrar a estima mútua que permanecia entre eles; ia pela vida afora. Suscita ainda a recordação da proximidade entre as duas mães, a natural, branca, e a ama de leite, preta, igualmente vida afora. E observem agora o rei congo que canta no congado, vejam o gingado, o que expressa, o que auspicia. Perpassa a letra a benevolência mútua entre as raças, da qual florescerá, se bem entendida e aperfeiçoada, convívio racial benéfico a todos, favorecedor do bem comum.

 

Negrume com cintilações. Foi horrível a escravidão? Foi, deixou feridas de difícil cicatrização, sequelas das quais devemos nos livrar. Mas naquele ambiente carregado de senões, coloquemos olhos lúcidos, por exemplo nas relações entre a mãe preta, a mãe branca e a criança, como fez Ary Barroso. Observemos também a beleza da dama do 1º ou 2º Reinado bailando em salões ainda tão desprovidos de recursos. Fixemos o olhar no tom, na elegância e educação que ali nascem. Está surgindo uma nação, proporções gigantes, respeitam-na. Todos nela têm seu lugar; entre outros, o mulato ardiloso, com ginga: “Meu Brasil brasileiro / Meu mulato inzoneiro Vou cantar-te nos meus versos / Ah, este Brasil lindo e trigueiro”. Hoje, não seria admitida tal versificação, proibida pela patrulha ideológica.

 

Evocações que embalam. A música suscita evocações. Todos as sentem no clima criado pela melodia e letra, aquarela de muitas cores, deixam-se embalar por elas, ninguém ou quase ninguém as explicita. Mas elas existem fortes, enleantes e encantadoras. É uma aquarela de muitas cores que começa a ser pintada.

 

Não fechemos as cortinas do passado. Deixemos cantar de novo o trovador. Um trovador, não de trovas, mas de textos esclarecedores sobre o Brasil, publicados na mesma época de “Aquarela do Brasil” foi Stephan Zweig, insuspeito no caso. Membro da burguesia judaica rica e culta de Viena, escritor consagrado, viveu o fim da vida em Petrópolis. Percebeu e descreveu o clima retratado por “Aquarela do Brasil”. A visita que ele fez às favelas, mais pobres que as atuais, é expressiva: “Tinha um mau pressentimento. Esperava receber um olhar raivoso ou uma palavra injuriosa. Mas para esses indivíduos de boa-fé um estrangeiro que se dá ao trabalho de subir aqueles morros, é um hóspede bem-vindo e quase um amigo”. Visitasse-as hoje, sem autorização do chefe do tráfico, no mínimo seria depenado. Sequestro ou morte não seriam surpresas. Comenta ainda Stephan Zweig o convívio entre os vários tipos de brasileiro: “O Brasil, por sua estrutura etnológica, se tivesse aceito o delírio europeu de nacionalidades e raças, seria o país mais desunido, menos pacífico e mais intranquilo do mundo”. Discorre a seguir sobre a imensa diversidade de raças e continua: “Da maneira mais simples o Brasil tornou absurdo o problema racial que perturba o mundo europeu, ignorando simplesmente o presumido valor de tal problema”. Ou seja, constatou ambiente de benquerença generalizada, hoje desaparecido infelizmente. Tal ambiente traz no bojo, incoativa, a resolução do problema do racismo. Não fechemos as cortinas do passado, repito. Ali se descobrem raízes de seiva preciosa. 

domingo, 10 de outubro de 2021

Bem-aventurados os mansos

 

Bem-aventurados os mansos

 

Péricles Capanema

 

Paradoxos estonteantes. “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (Mt, 5, 4). “Mas os mansos possuirão a terra” (Sl 36, 11). “On ne règne sur les âmes que par le calme” (só se reina nas almas pela calma). Três citações, origens diferentes, as duas primeiras da Sagrada Escritura, a última de Talleyrand (1754-1838) (cito de memória, li em texto dele, pode ter origem diversa). Sempre me impressionaram pelo paradoxo atordoante. Aos mansos, não aos violentos e aproveitadores, está destinada a terra. Contrassenso à primeira vista, a sabedoria convencional diria o contrário: mansos não possuem nada, não conquistam nada, são presa fácil de oportunistas e ferozes. Quando os mansos conquistaram alguma coisa? Nunca, dir-se-ia. A terra não é dos conquistadores? O salmista afirma igual: “Os mansos possuirão a terra”. E o domínio dos espíritos (das almas) pertence aos calmos, serenos e sossegados, nunca aos endurecidos, enfurecidos e irrequietos, é convicção de um dos grandes diplomatas franceses. E de tantos outros. Tudo à primeira vista, repito, agride a sabedoria convencional. Quanto aos dois textos da Escritura, escrevo, claro, como observador comum, não pretendo entrar em exegeses bíblicas.

 

Exasperação suicida. Afundo no presente. No Brasil (de modo semelhante no mundo, “servata proportione”) fermentar exasperações de moralismo duvidoso tornou-se recurso usual dos que esperam com elas angariar adesão popular maciça. Em especial por meio das redes sociais, onde campeia a desinformação e a má-fé; o vale-tudo, enfim. “Eu vim para confundir e não para explicar”, a boutade de Chacrinha ganhou surpreendente atualidade, virou bússola para numerosos ativistas. Ficaram comuns as ondas de insultos e ataques, repito, de modo marcante nas redes sociais, em que a falta de escrúpulos, o relativismo moral, a boçalidade ufana, bem como o garganteio de argumentos toscos, a linguagem chula e a catadupa de palavrões se destacam como recurso habitual do embate político. Tudo isso pode gerar popularidade em certa faixa do público, contudo cria repulsa em outras; desprestigia. “On ne règne sur les âmes que par le calme”, advertiu o ladino Talleyrand.

 

O decoro esbofeteado na ânsia da popularidade. Não só o decoro; também a correção. No sopesamento de vários fatores, tal tipo de popularidade, parece, mantém abertas as possibilidades para vitórias eleitorais em 2022. Vai valer a pena lá na frente? Não creio. Popularidade evapora fácil; sua perda pode deixar sequelas graves.

 

Afastamento, desgaste, cansaço, desilusão. Consequência da estratégia acima esboçada em traços rápidos, hoje a popularidade de algumas correntes e líderes está se nutrindo largamente no pântano da exasperação. Não irei aqui analisar aspectos do fenômeno no âmbito da esquerda, limitar-me-ei à direita e ao centro. Nas possibilidades de expansão do centro e da direita deixará feridas de cura difícil, já que provoca aversão no brasileiro decente, acostumado com correção e bons modos, segmento gigantesco. Agastamento que se manifesta no afastamento, cansaço, desilusão. E, com isso, no debate público, já agora, está órfã faixa sadia do público; “sanior pars” autêntica, sobre a qual discorri em artigo anterior. Esta parte, uma “cathédrale engloutie” no mar da opinião brasileira, pode decidir o rumo das eleições em 2022 ▬ não nos surpreendamos, ojo! Tentemos ouvir o bimbalhar de seus sinos, pois os mansos possuirão a terra. Faço um desvio: a catedral submersa é um prelúdio de Claude Debussy, que tem como inspiração lenda bretã. Existiria, perto da ilha de Ys, submersa, uma catedral que mostra as flechas de suas torres nas manhãs claras e bimbalha seus sinos. “Nos dias de tempestade, dizem os pescadores, vê-se, no oco das ondas, as pontas das flechas de suas igrejas (da cidade de Is); nos dias de calma, escuta-se subindo do abismo das águas o som dos sinos”, escreveu Ernest Renan (1823-1892) sobre a lenda.

 

A pacatez enjeita exasperações. Volto ao tema. Arrisco-me a estar completamente errado, mas desconfio que hoje, políticos dos mais variados quadrantes que apostam na tensão artificial e tantas vezes oca, perdem contato, cada vez mais, com o que qualifiquei de “sanior pars”, a faixa mais sadia do público. Ela gosta do decoro, da compostura, da boa educação, da inteligência e da argúcia na cena pública. Abomina ambientes convulsionados ▬ o setor é aparentado com os mansos, têm relações próximas. Busca a resolução de dificuldades de seu quotidiano, desinteressa-se pela encenação postiça e grandiloquente de disputas sem conteúdo. Em 14 de dezembro de 1982 em artigo na “Folha de S. Paulo”, o prof. Plinio Corrêa de Oliveira analisou os resultados eleitorais de pleito recente, em que ele reconhece, a esquerda tinha levado a melhor: “O fato palpável, certo, indiscutível, sobre o qual mais diretamente incide nossa atenção, é esse inegável progresso da esquerda. [...] Desdenho o procedimento do avestruz que, quando se aproxima o inimigo, mete a cabeça num monte de areia.” Mas observa, havia perigo para todos no aproveitamento dos resultados: “Em outros termos, se os esquerdistas, ora tão influentes no Estado (Poderes 1, 2 e 3), na Publicidade (Poder 4) e na estrutura da Igreja (Poder 5), não compreenderem a presente avidez de distensão do povo brasileiro, deixarão de atrair e afundarão no isolamento. Falarão para multidões silenciosas no começo, e pouco depois agastadas”. Os perigos continuam a existir na presente quadra histórica. Os pacatos também têm parentesco com os mansos.

 

Avidez de distensão. Continua o prof. Plinio Corrêa de Oliveira: “A História dá inúmeros exemplos de regimes que não se mantiveram porque não souberam entender coisas destas. Soube compreendê-las, por exemplo Luís XVIII o monarca criptoesquerdista, voltairiano e ladino. Por isto morreu tranquilamente no trono da França em 1824. Sucedeu-lhe Carlos X, seu irmão cavalheiresco, distinto e gentil como um raio de sol, deleitável no trato como um favo de mel. Mas ele era um bom direitista, ao qual faltava (como isso é frequente entre direitistas) qualquer sutileza política. Pôs-se ele a governar contra a esquerda com um afinco e uma precipitação que pôs aos berros o setor visado. A bem-amada modorra se foi rarefazendo. A maioria abandonou Carlos X que caiu no vácuo. Substituiu-o – grande "virtuose" em operar distensões – Luís Felipe, o rei burguês, o "rei-guarda-chuva", o qual ficou no trono até que, cansada por fim de pacatez, em 1848 a França o atirou ao chão”.

 

Quem avisa, amigo é. Vai adiante o artigo: “O Brasil de hoje quer absolutamente pacatez. Se a esquerda vitoriosa não souber oferecê-la, esvanecer-se-á. Se o centro e a direita não souberem conduzir sua luta num clima de pacatez, terá chegado a vez deles se esvanecerem. Bem concebo que algum leitor exasperado me pergunte: mas, afinal, quem ganha com essa pacatez? – Até aqui não tratei disto. Mostrei que perderá quem não a souber ter. Quem ganhará: a direita? o centro? a esquerda? ▬ Quem conhecer as verdadeiras fibras da alma brasileira e souber entrar em diálogo pacato com essas fibras”

 

2022 terá muito de 1982. Sei, 1982 era uma realidade, 2022, outra. Tanto assim diferente? No frigir dos ovos, lá na frente, os pacatos, triunfantes, (aparentados com os mansos) podem empurrar os exasperados, vencidos, para fora do tabuleiro. E que sejam preservados o ânimo e a capacidade de ação em especial da “sanior pars”, mansa, em boa parte pacata. O futuro do Brasil depende de como ela se fortaleça e prospere. Bem-aventurados os mansos.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Sanior pars

 

Sanior pars

 

Péricles Capanema

 

Setores mais sadios. De caso pensado coloquei no título expressão latina, “sanior pars” ▬ a parte mais sã. Foi dito comum durante já distantes anos, qualifica o setor mais sadio de qualquer instituição, grupo social ou situação; saiu de moda. Não inteiramente, contudo. Por vezes, é empregado o brocardo “maior et sanior pars”, a parte maior e mais sã, em especial na língua inglesa, via de regra para designar vitória eleitoral, com participação do voto qualificado. À primeira vista, pode parecer exagerado, mas, à vera, dar ouvidos à “sanior pars” ▬ as formas são diversas ▬ é assunto capital em virtualmente todos os âmbitos da vida. Assunto que merece ser posto diante dos olhos de todo mundo, e, por isso, vou dar pinceladas rápidas no quadro agora. A complementação ficará por conta dos eventuais leitores, ao longo das semanas.

 

Autoajuda. Então, complementem, pensem sobre isso. Ter tal realidade (bem entendida, ruminada sem demasias nem subestimas) no radar do pensamento areja o raciocínio, as reflexões surgem com mais vida, mordem mais a realidade, torna-se antídoto contra retrocessos. Contudo, para prejuízo de todos, referida sentença e, sobretudo a realidade à qual remete, vem sendo esquecida e enterrada; chega a ser antipatizada e perseguida. O artigo é um trabalho de limpeza e restauração, ainda que incipiente, de um quadro bonito, merece ser contemplado. Na verdade, paisagem arrebatadora e denegrida.

 

Caminhar na contramão. Ainda que levantar o tema “sanior pars” pareça para muitos trazer à baila matéria politicamente incorreta, incorreto de fato seria o silêncio a respeito, dificulta o desenvolvimento de qualidades pessoais. Para ajudar a limpar o quadro, busco auxílio em outra locução, igualmente latina, vem da espiritualidade inaciana: “agere contra”. Significa agir contra, isto é, ter conduta contrária a hábitos ruins (vícios) que nos afastam da virtude ▬ da saúde, em qualquer campo.

 

Olhar interessado em desvãos da História. Admito, não será tema fútil ao gosto de espíritos dispersivos; passa ao lado de preocupações de muita gente na onda, que só gosta de obras de superfície. Pouco importa. Reitero, o assunto da “sanior pars” tem significado enorme. E não é de agora. Um exemplo, Jean-Louis Kupper no livro “Liège et l’église impériale – XIe – XIIe siècles” trata da influência da regra de são Bento em várias ocasiões importantes da vida medieval. Vou ao que interessa aqui: “Gradualmente, a maioria ▬ noção do Direito Romano ▬ se impõe. Seu rigor quantitativo foi atenuado por um princípio qualitativo que a Regra de são Bento contribuiu para difundir: para ser eleito, necessariamente, não era suficiente reunir os votos da maioria ▬ de outro modo, da ‘major pars’ ▬, mas era ainda necessário conseguir o apoio dos mais prudentes e dos melhores. Sobretudo era preciso ser escolhido pela ‘sanior pars’. A partir de fins do século XI, cada vez mais, são usados conjuntamente o sistema da maioria e o sistema da ‘sanior pars’”. Ele destacou ponto importante ▬ é um princípio qualitativo. Por isso vai na contramão dos temas aquecidos bafejados pela grande publicidade.

 

Costumes frutíferos. O espírito beneditino bafejava regimes de vida e governo que aproveitavam qualidades presentes, em tantas ocasiões ainda latentes, na sociedade. Por exemplo, não se jogavam fora, como frutos pecos, as vantagens da ciência e da experiência; eram atitudes inclusivas, mais que atitudes, hábitos de vida inclusivos, com grande repercussão social. E assim, mesmo que minoritária, contavam às vezes decisivamente as opiniões do que se entendia ser a parte mais saudável da comunidade que assim escolhia seus dirigentes. Enfim, como tudo que é humano, é tema perpassado por luzes e sombras. De qualquer modo, sempre presente no direito temporal e no direito canônico, como defesa contra tolices, aventuras e demagogia. Minha ênfase aqui não é o aparelho legal; o foco meu são os costumes. Costumes generalizados embebidos por tal princípio. No caso, com coloração beneditina. Não nos esqueçamos, nas raízes da Europa, vivificando-as, estão são Bento, a ordem beneditina, o espírito beneditino. De outro modo, a santidade de são Bento perfumou, séculos afora, a sociedade e as instituições do Velho Continente. E um dos componentes do aroma foi tornar viva a noção da importância da “sanior pars”. Depois de perfumar costumes, embeber gradualmente instituições e moldar com peso e medida as legislações, aqui está o desenvolvimento proficiente no caso.

 

Matéria de relevo. Costume elitista, alguém poderia comentar, até com nota de censura. Devagar. Privilegia de certo modo a qualidade sobre a quantidade, certo. Bem entendido, estamos diante de reconhecimento de si saudável do mérito, da aptidão, da competência, da maestria. Sob o halo evangélico, é conduta salutar, crescentemente inclusiva, com força difusiva, embebida na compaixão; enfim, com potencial para avanços de toda ordem Como exemplo, e carregado de estímulos para avanços de toda ordem. Temos e devemos levar em conta em nossas atividades a parte mais sadia da família, da empresa, da escola; enfim, levar a todos os âmbitos, com medida e largamente, a influência da boa conduta, da boa educação, da ciência e da experiência.

 

Tirania da maioria. Com isso se evita a tirania da maioria, cada vez mais presente em nossos dias. O conceito não é novo; já os gregos falavam da oclocracia. Ecoa\ na literatura política como questão grave; tirania da maioria foi expressão utilizada, entre outros, por John Adams, depois empregada por Alexis de Tocqueville e John Stuart. A realidade, sim, tornou-a moderníssima. Em livro publicado em 2019, “Brigo pelos homens atrofiados”, observei: “A seu tempo os iluministas, crédulos seguidores da deusa Razão, supostamente para suprimir o arbítrio, enxotaram o rei, governante absoluto, e enfiaram no lugar o povo, o novo soberano absoluto. Melhorando, em antes o absolutismo monárquico; agora o absolutismo da vontade popular, volta e meia apelidada com artifício de vontade geral. É a doutrina da soberania popular, exercida via de regra mediante o sufrágio universal. Sobre tudo pode dispor o povo soberano, entidade coletiva, instável, manipulável — tanto ou mais que eram os reis —, ou representantes seus falando em nome dele. Em princípio, poder não limitado por leis. Alarma. Inafastável, aqui se aninha o totalitarismo”.

 

Atualidade. Aparentemente, em nenhum texto aludi aos lancinantes problemas contemporâneos. Engano. A todo momento pensava neles, as relações são imediatas. “Sanior pars” é tema atual, mais que atual, permanente, importância capital. Por tudo isso, merece reflexão, lucraríamos todos enormemente se a temática animasse conversas, perfumasse costumes; depois, instituições e leis.