Ainda é possível
salvar os índios
Péricles Capanema
Os fatos reclamam uma aliança. Vou tratar do marco temporal ▬ fincado em 5
de outubro de 1988, dia da promulgação da Carta Magna. E, lá no fim, tratar da
aliança à qual me referi no início e que, julgo, precisa surgir. Ao artigo. Potencialmente,
temos, à vista, crescentes conflagrações no campo. Dependerá de como terminará a
presente ação do referido marco temporal no STF e ainda de como o Congresso
agirá no caso. Se ganharem as forças da vanguarda do atraso (os agitadores), precipitar-se-ão
inevitáveis queda de investimentos no agro, altas nos preços de produção, no
fim, menos emprego e baixa na renda. No exterior, desconfiança de possíveis investidores
em relação ao Brasil. Em curto, mais pobreza numa nação já enormemente castigada.
A razão primeira é a influência da demagogia, cada vez mais destrambelhada a
propósito dos problemas suscitados pela atualidade candente da questão do marco
temporal. Ela borrifa incerteza a respeito de direitos, agride o agronegócio e
ameaça o futuro dos índios, irmãos nossos. De passagem, esclarecimento para
alguém que ainda não saiba o que é o marco temporal. Em resumo por alto, a tese
do marco temporal (de fato, uma jurisprudência) afirma que as terras indígenas
tradicionalmente ocupadas, passíveis de demarcação, são as que existiam até 5
de outubro de 1988. Há ainda um adendo, do qual não tratarei aqui, o intitulado
esbulho renitente.
Ingenuidade suicida. Após o rumoroso episódio da reserva Raposa Serra
do Sol em 2009, entendeu-se, ingênua (fico por aqui) e falsamente, que o campo
brasileiro, depois do golpe, poderia trabalhar em paz, com base em
jurisprudência pacificada. Ledo engano. A sanha esquerdista, com enfezado apoio
em todos os quadrantes sociais e meios de divulgação, leva adiante agora novo
golpe, já em avançado estado de execução, procurando dinamitar a jurisprudência
tida por já assentada, a ser substituída por outras interpretações que
disseminarão a insegurança jurídica ▬ pipocarão conflitos fundiários. Caso seja
incinerada a tese do marco temporal, vitoriosa em 2009, já se divulga, 829 disputas
estão em posição semelhantes à vivida em Santa Catarina, cujo desenlace será a
entrega de terras à União (e aos índios posseiros), considerando a declaração
de repercussão geral do caso. Virão outras, posteriormente; não sejamos simplórios.
Estatização selvagem no horizonte.
Propriedades estatais, posse indígena
(usufruto). Com
efeito, estamos em caminho que leva à estatização maciça. É a lei, a terra
entregue às comunidades indígenas não lhes será dada em domínio ▬ nunca serão
proprietários e, curiosamente, a respeito disso ninguém reclama, nem os próprios
índios metidos nas agitações. A estatização efetiva paira sobre o assunto como
espécie de intocável cláusula pétrea. Tem mais: a União não vai pagar um tostão
pela terra demarcada, salvo benfeitorias feitas de boa-fé, a ser comprovada.
Torquês dilacerante. A torquês a ser aplicada sobre a economia
nacional, em especial a economia e propriedade agrícolas, apresenta duas hastes
com pontas curvas de corte afiado. Provocarão sangramento, periga hemorragia,
na economia; mais ainda, à vera, no corpo social.
Jurisprudência nova. A
primeira haste é a interpretação pelo menos controversa (migração
jurisprudencial; talvez caminhemos até para mutação constitucional) do artigo
231 da Constituição Cidadã. Ali se reconhece direito originário dos índios sobre
as terras que “tradicionalmente ocupam”, do que derivaria, país afora, terras
públicas e posse indígena. “São reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Hermenêutica em evolução. A presente hermenêutica do
texto constitucional, exposta no voto do ministro Nunes Marques, poderá migrar para
interpretação muito pior; está pendente do voto de oito ou talvez nove
ministros no processo em curso no
Supremo ▬ já se conhecem as posições do ministro Fachin, mutação radical, e do
ministro Nunes Marques. pela manutenção. Reconhecida a “posse tradicional” por
laudo antropológico, segundo interpretação inovadora e muito ampliada, a
porteira ficará escancarada para a União tomar conta do espaço agrícola e
entregá-lo aos índios. Lembra com pertinência o ministro Kassio Nunes Marques
em seu voto no RE 1.017.365: “A Constituição Federal acolheu a teoria do indigenato
na qual a relação estabelecida entre a terra e o indígena é congênita e, por
conseguinte, originária. [...] De fato, em seu grau máximo, a teoria do indigenato
teria potencial até de eliminar o fundamento da soberania nacional. Se o índio
era senhor e possuidor de toda a terra que um dia fora sua, por direito
congênito, como poderia o Brasil justificar o seu poder de mando sobre o território
que não era senão uma aldeia em processo de devolução aos legítimos senhores?” Está
certo, não haverá limites; com base em interpretações cada vez mais
radicalizadas, toda a terra pertencerá aos índios (na realidade, ao Estado); na
prática, se generalizarão os conflitos e o Estado irá assumindo, ▬ no passo que
julgar tolerável para o público traumatizado ▬, a titularidade das terras.
Opção preferencial pelo entulho
autoritário. Agora, a segunda haste da torquês, dilacera igualmente.
A esquerda toda, CIMI, PT, PSOL, ONGs filo-comunistas internacionais e seus
companheiros de viagem fazem defesa furibunda de um entulho autoritário, a
saber, disposições tecnocráticas e autoritárias da lei nº 6.001 de 19 de
dezembro de 1973 (governo Médici). Para todos eles, xodó intocável em relação
ao ali escrito. Com base nelas, e com adrede interpretação do artigo 231 da Constituição
Cidadã, acima mencionada, esperam gradualmente borrifar o agro brasileiro de
norte a sul de manchas de efetivo comunismo ▬ salpicação crescente de
propriedades estatais entregues a comunidades indígenas. A experiência
histórica mostra, teremos grupamentos humanos vegetando na miséria, lanhados
pela desorganização interna e de órgãos governamentais, torturados pelo crime, a
mais de viver do dinheiro público. É futuro que se deseje?
Tumor de estimação. Pretende-se no caso manter intocado
o caráter tecnocrático da lei 6.001 (procedimento administrativo, basta a bem
dizer um laudo feito por antropólogo escolhido pela FUNAI para a demarcação), ademais
de seu viés autoritário e burocrático (homologação simples). Aqui está o avantesma
intocável: “Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do
órgão federal de assistência ao índio [FUNAI, no caso], serão
administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em
decreto do Poder Executivo. § 1º A demarcação promovida
nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será
registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do
registro imobiliário da comarca da situação das terras”. Acabou, nada de
debate, de participação de interessados, de controle público. A exclusão precisa
ser protegida.
PL 490. O que o projeto de lei 409 de 2007 buscou
(e por isso foi abominado por toda forma de esquerda) foi, no processo de
demarcação, aumentar a participação popular, em particular dos interessados. Aplicar
a inclusão, enfim. A respeito, observou com pertinência o deputado gaúcho
Jerônimo Goergen ao defender a aprovação urgente do PL 490, as áreas
reivindicadas para demarcação envolvem gigantescos e numerosos interesses públicos
e privados. Entre elas, áreas de proteção ambiental, áreas ligadas proximamente
à segurança nacional como as de fronteira, propriedades privadas destinadas à
produção agropecuária, cidades, núcleos urbanos, casarios e núcleos
habitacionais. A mais, ponderou o parlamentar, existem estradas, redes de
energia elétrica, de telefonia, áreas de prospecção mineral, cursos d’água com recursos
hídricos. Abrir a porteira de forma indiscriminada para demarcações, e é o que
está na iminência de acontecer, garante com objetividade o ativo líder gaúcho,
poderá inviabilizar estados e municípios. “Fica até difícil explicar como
conseguimos gerar tanta insegurança jurídica para nós mesmos mantendo o
Congresso Nacional de fora deste debate”, concluiu.
Alarma no agronegócio. Uma visão a “vol d’oiseau”. Conforme venha a
sentença (acórdão) da ação em curso no STF, teremos paz no campo, mesmo que
passageira e ameaçada, ou punhaladas imediatas no agronegócio. O ministro
Alexandre de Moraes, que havia pedido vista nos autos, devolveu o Recurso
Extraordinário 1.107.365. A colocação em pauta depende agora apenas de decisão
do ministro Luiz Fux. De um lado, está o voto do relator Edson Fachin. Nega que
exista o chamado marco temporal, data limite para a aplicação do conceito de
terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas (5 de outubro de 1988). De
outro, o ministro Nunes Marques. Afirma, existe o marco temporal, está claro na
jurisprudência reiterada do Supremo. Observando com isenção os atores em
movimento, a situação no palco não se apresenta tranquilizadora. Infelizmente, parece,
falta rumo no Executivo e atuação enérgica de lideranças rurais no Congresso ou
fora dele que, oxalá, serão óbices que evaporem logo, e possamos constatar tomadas
de posição norteadoras que afastem as perspectivas trágicas.
Saída óbvia. De um óbvio ululante. A medida factível,
rápida e simples, é clara: aprovar já o substitutivo do PL-490, fazê-lo lei. Os
textos dormem no Congresso desde 2007-2008 ▬ constituem, parece, tentativa
(frustrada, infelizmente), um emplastro de ocasião, para evitar o desastre que
foi a decisão judicial no episódio Raposo Serra do Sol. O PL-490 é de lei
ordinária, não requer quórum qualificado, nem maioria absoluta; exige apenas quórum
regulamentar e maioria simples.
A aliança que está fazendo falta. Afirmei acima, faz falta uma aliança.
Deveras, uma “santa aliança”, para lembrar o pacto entre as potências
conservadoras no começo do século XIX. Urge conjunção de esforços proficientes entre
produtores rurais e índios. Lideranças dos dois lados promoveriam seus
interesses, além de ajudarem o bem comum, se somassem esforços, procurassem
esclarecer o público e ampliar apoios. Os interesses são confluentes, a disputa
é artificial e contra a natureza das coisas. O produtor rural deve ser amigo do
índio. O índio deve ser amigo do produtor rural. Ambos trabalham para crescer
na vida no mesmo ambiente, utilizam-se dos mesmos meios, com apoio estatal sem
dúvida, mas sobretudo com forças próprias.
Recordações necessárias. A maior parte dos índios (imensíssima
maioria), mesmo mantendo usos e costumes, quer posto de saúde, escola, estrada,
maior instrução e maiores possibilidades de aperfeiçoamento para os filhos. Abomina
retrocesso e paradeiras; assim como os produtores rurais, querem avançar.
Índio não é porquinho-da-Índia. Os indígenas não podem ser presas virtualmente
passivas de organizações tomadas por delírios ideológicos, que os tratam como verdadeiros
porquinhos-da-Índia de experimentações sociais que deram errado em todos os
lugares em que foram impostas, causa contínua de sofrimentos, miséria e
retrocessos civilizatórios. Ainda é possível evitar a derrocada do engate dos
povos indígenas às organizações do atraso, cenário dantesco que se esboça, proporcionando
assim aos índios os instrumentos de avanço para que assumam o próprio destino
nas mãos. No fim, salvem-se a si mesmos, tendo, é claro, dos demais brasileiros
toda a ajuda de que queiram ou precisem. Prosperem, busquem o aperfeiçoamento. A
felicidade vem da autonomia crescente, do vento forte da liberdade, fundamentos
de crescimento pessoal, nunca da condição de cobaias de experiência sociais
utópicas. Melhorando o tema, ainda é possível ajudar os índios para que rumem
na via que escolherem e que nós sabemos pela experiência, é a do aperfeiçoamento. Voltarei
ao tema.
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