Quer casar quanto?
Péricles Capanema
Saudades instrutivas. Tive um amigo com quem privei pouco, mas
foi “quality time” o que passei com ele. Faleceu faz pouco, deixou muitas saudades
em que dele foi próximo, irradiava simpatia reservada e esquiva. Era da cidade onde
nasci, morava, entretanto, em outra, distante dali, viajava pouco. Emprego
modesto, batalhou com dificuldades, ambições limitadas, família direita,
caráter de ouro. Boa gente, já disse, trato fácil, observação aguda de muitos
aspectos da vida. Foi brasileiro típico de nosso interior, de fundo
temperamental pacato, mais raiz que tronco; mais galhos que flores e frutos. Compartilho
aqui com os raros leitores um tiquinho de comentários despretensiosos a
propósito da vida dele, um “pot-pourri” -de pequenos fatos e reflexões. A singeleza
expressiva dele poderá a alguns facilitar ir pelo rumo direito no meio da desorientação
provocada pelo exibicionismo vazio de nossos dias. Faz falta o elogio da
singeleza, ficou muito atual. Uma coisa não foi, nem lhe passava pela cabeça, ser
exibicionista. Era o contrário, meio caramujo. Queria o certo, sofria vendo
coisas desmoronar e ele, impotente, julgava nada poder fazer. E não se
aproveitava com o “eu avisei”. Sua memória vai além de instrutiva; é edificante.
Potencialidades adormecidas. Faço uma paradinha, o “pot-pourri” terá
algumas. Não aproveitou tudo o que tinha a dar, como tantos de nós, potencialidades
nunca desabrochadas, jogadas à beira dos caminhos. Surge natural a advertência
na hora de recordar vida relevante e exemplar sob tantos títulos. Advertência que
ecoa na parábola dos talentos: “Servo mau e negligente! Você sabia que eu colho
onde não plantei e junto onde não semeei? Então você devia ter confiado o meu
dinheiro aos banqueiros, para que, quando eu voltasse, o recebesse de volta com
juros. Tirem o talento dele e entreguem-no ao que tem dez. Pois a quem tem,
mais será dado, e terá em grande quantidade. Mas a quem não tem, até o que tem
lhe será tirado” (Mt 25, 24-29). Falo das qualidades individuais, é o foco, mas
latem outras. Há talentos que pairam sobre famílias, embebendo sua atividade. Daí,
em círculos cada vez mais amplos, qualidades regionais e nacionais. E algumas
potencialidades só podem algum dia se transformar em realidades vibrantes se,
por décadas, houver rumo correto na vida dos filhos e netos (na vida dos
grupamentos humanos). O grande “coach” não é o “coach” das profissões; é o das
potencialidades, assunto desconsiderado, nem se pensa nisso. Aqui está, na
raiz, a efetiva arte de governar, saber despertar potencialidades de todas as
espécies, ser farol delas.
“Quer casar quanto?” Volto à figura do amigo. Pacato, era igualmente
um manso afirmativo. Brigador, defendia com ardor e com delícias suas posições
nos mais variados campos, política, religião, futebol. Discutia com qualquer um,
até mesmo especialistas, tinha certeza de seus pontos de vista, em geral corretos
e sensatos. Mas, era surpreendente, nunca argumentava a favor deles. Pareceria,
achava perda de tempo empilhar razões pelas opiniões que esposava. Talvez
entrasse aqui pitada de preguiça mental, explicável em quem se dedicava, noite
e dia, a assuntos da vida prática. Não estou certo se em toda sua vida leu um
livro. Contudo, observava muito, ruminava e conversava. Daí vinha sua cultura
mediana, suficiente para seus deveres de pai de família sério, profissional
consciente e cidadão ativo. Ser-lhe-ia então difícil construir silogismos,
aparar de arestas a expressão do pensamento. Para ele, bastava a exposição que
fazia sempre assertivo, já estavam postas à luz as provas suficientes, roçando
na evidência. Se contestado, e acontecia com frequência, respondia sem
vacilação: “Quer casar quanto?” Com a maior naturalidade, propunha sempre a
aposta como contradita decisiva. Ninguém levava a sério a proposta, claro, todo
mundo sabia que a réplica do rapaz era quase um ato reflexo e que ele dali a
pouco pacificamente iria mudar de assunto e logo depois puxaria de novo o bordão:
“quer casar quanto?”
Inovação, originalidade e criatividade. Vou chama-lo de João. O Brasil está carente
de Joãos. Melhoraria muito, tivéssemos nós multidões de Joãos. O desafio “quer
casar quanto?”, em sua bonomia descompromissada, valeria mais hoje para o
esclarecimento dos assuntos do que vai se tornando habitual, a torrente de
impropérios boçais, resposta de quem se sente contestado. Em especial nas redes
e, é comum ter motivo compreensível. A monetização (isto é o pagamento recebido
pelas visualizações), o dinheiro recebido, depende da quantidade e da atividade
do site. E a agressividade destrambelhada rende mais reações que a boa educação,
de si discreta e contida. Ativismo violento nas redes virou meio de vida. Volto
do atalho, de novo. A expressão “quer casar quanto?”, viva e chamativa, revelava
aspecto valioso de sua personalidade. Como em muita coisa que fazia, despretensiosas
assomavam três características: originalidade, criatividade, inovação. Abria trilhas,
tinha jeitão próprio de fazer tudo.
Pertransiit benefaciendo (At 10, 38). Como nas bodas
de Caná, o vinho melhor será servido no fim. Foi bom católico, deu bom exemplo,
deixou memória edificante. Em resumo, andou de lugar em lugar, fazendo o bem. Como
Nosso Senhor, nas palavras de são Pedro. Nada tem maior valor que isso. Que
Deus o acolha em seus braços misericordiosos.
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