sábado, 11 de março de 2017

Alguns pingos em alguns is

Alguns pingos em alguns is

Péricles Capanema

De alguns anos a esta parte, movimentos e partidos políticos de fundo nacionalista vêm ganhando força em países importantes. Assistimos a enorme reviravolta no espírito público, pode determinar rumo diferente ao que o mundo vem trilhando, aos trancos e barrancos, desde o fim da 2ª Guerra Mundial. Aonde chegaremos?

A corrente não é una, apresenta características díspares, e não apenas em aspectos acidentais, mas nos nacionalismos se percebe um fundo comum, sobre o qual, de forma sucinta, tratarei. Nacionalismo vem de nação. E nação, de natio, natus, etimologicamente, é o conjunto dos que nasceram em determinado território.

Nação foi palavra inicialmente utilizada pelos estudantes das universidades medievais, em especial a de Paris. Ali eles se organizavam em grupos, falavam a língua materna entre si, eram regidos pelas leis dos próprios países (ou regiões). Existiu a nação da Alemanha, a nação da Inglaterra, a nação normanda. Outras ainda.

A palavra não designou apenas agrupações de estudantes. Por exemplo, em fins do século 15, surgiu o acréscimo nação em realidade política de enorme importância: Heiliges Römisches Reich deutscher Nation (Em tradução literal, santo império romano da nação alemã; em português, o Sacro Império Romano Alemão). O Sacro Império foi oficialmente extinto em 1806 por Napoleão. Importante notar, ali foram extintos direitos históricos, autonomias multisseculares; essa organização política de raízes medievais dificultava planos do Corso, centralizadores e autoritários.

Por que lembro fatos antigos? Para melhor compreendermos no presente o fenômeno nacionalismo. Quando a palavra nação se difundiu a Era Moderna ainda não havia começado. No temperante ambiente da Cristandade, era comum, os homens viviam distantes do absolutismo, da centralização e do autoritarismo unificador. E de delírios de grandeza, própria ou coletiva. O medieval, respirando ares de civilização cristã, não desatinava atrás da busca obsessiva da própria grandeza, da de sua família, região ou reino. Tinha um olhar temperante para as coisas temporais, condicionado ao “vale de lágrimas”. E sua atenção se fixava de imediato e preferentemente na família e na região. O imperador do Sacro Império dispunha de poucos poderes diretos. Sem ser conhecido explicitamente, o princípio de subsidiariedade, hoje o pilar central da doutrina social católica, embebia a sociedade. Mesmo em Paris, capital da França, a nação alemã dos estudantes dispunha de grande autonomia no governo próprio.

Com o avanço do Estado Moderno, nação foi ganhando significado mais denso. Passou a significar em geral comunidade estável de indivíduos, historicamente determinada por origem, costumes, religião e língua comuns. Daí a defesa do território, fronteiras, língua, cultura, raça, dentre outros. Tais elementos, ainda que importantes, de fato eram acidentais; o fundamental sempre foi o sentimento do vínculo comum, a consciência de pertencer a uma entidade com interesses próprios e necessidades peculiares. O Estado é sua forma política normal.

Surgiu o nacionalismo como o conhecemos agora, fruto típico dos Tempos Modernos. Medra bem nos miasmas do antropocentrismo potencializado com a Renascença. A nação e até o Estado passaram a ser alucinados ideais de grandeza humana. Não mais eram realidades benéficas, mas subsidiárias à família, na procura da perfeição humana em todos os níveis. A nota jacobina, o Estado como o grande instrumento a conquistar para impor um suposto programa de salvação nacional, sempre esteve muito presente.

Noto de passagem: é louvável defender a identidade nacional e lutar pela grandeza nacional, com base em doutrina razoável e conduta sensata, julgando o Estado instrumento útil, necessário e importante para a pessoa e a família alcançarem seus fins.

Volto ao fluxo principal: não foi assim com o nacionalismo em várias de suas vertentes importantes: pessoa, família, região passaram a ser meras partes de um todo coletivo, de valor absoluto. A exacerbação coletivista desemboca no totalitarismo, o que historicamente aconteceu em várias ocasiões. “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”, foi lema do fascismo italiano.

Citei Napoleão Bonaparte. Volto a ele, exemplo de nacionalismo, enorme influência. Chefe carismático, uniu a aspiração da pátria agigantada com os ideais da Revolução Francesa. Centralizador, ditatorial, adversário dos direitos históricos de famílias, regiões, corporações, agiu contra sociedades intermediárias de várias naturezas, colocadas entre a pessoa e o Estado. Procurou subjugar e utilizar a Igreja para seus objetivos de ordem e grandeza nacionais. A ele se aplicaria bem a expressão famosa, falsamente atribuída a Luís 14: “L’État, c’est moi”. Nas linhas gerais, o bonapartismo ▬ regime republicano imperial, Estado nacional com Executivo forte e centralizado, populista, recurso frequente ao plebiscito ▬ foi a tintura mãe dos nacionalismos.

Seus traços principais continuam até hoje. Um deles, ausente no bonapartismo, foi acrescentado em alguns nacionalismos: o antissemitismo. O antissemitismo pode ser visto como espécie do gênero xenofobia, presença constante nos nacionalismos. O estrangeiro (ou o corpo estranho), eis o inimigo do coletivo nacional, sempre bom e vocacionado para a grandeza.

Bonaparte prometeu restaurar a ordem em frangalhos com as convulsões sociais do período, implantar a racionalidade e a eficiência no governo, eliminar os “lados ruins” da Revolução Francesa. Perseguiu os monarquistas, recusou o Rei, isolado em Londres, e a velha nobreza, dispersa pela Europa, tidos por corruptos e decadentes. Desprezava a cultura refinada e aristocrática do Antigo Regime. Autoritário, centralizador, populista, confiante no uso da força, arrastou atrás de si grande parte da França até que suas derrotas o jogaram, exilado, em Santa Helena.

Historicamente, o nacionalismo atraiu simpatias de católicos, conservadores, tradicionalistas, de correntes favoráveis à livre iniciativa e ao empreendedorismo. Foi visto como adversário do internacionalismo socialista (inimigo da identidade nacional) e do igualitarismo revolucionário (inimigo das desigualdades de base natural). Era muitas vezes considerado baluarte na defesa da ordem ameaçada pela agressão da desordem revolucionária. Milhões de seus seguidores, gente de bem, colocaram na sombra os traços coletivistas, centralizadores e autoritários, a negação teórica e prática do princípio de subsidiariedade. Aderiram ao que lhes parecia a única defesa eficaz contra a avalanche revolucionária que ameaçava levar de roldão moral, instituições veneráveis e civilização.


Foi um falso dilema demolidor. Para milhões, acarretou tragédias das mais variadas naturezas. Podem voltar a acontecer. É momento de maturidade, exame, argúcia, equilíbrio, isenção. Claro, não esgotei assuntos, ventilei-os; nem poderia ser diferente em artigo limitado por espaço. Espero, contudo, ter fornecido material útil para reflexão. Em resumo, procurei cumprir a promessa: pôr alguns pingos em cima de alguns is.

terça-feira, 7 de março de 2017

Brincando com fogo

Brincando com fogo

Péricles Capanema

O de que vou falar não é brincadeira. Já tratei do assunto quatro vezes, “O Brasil servo”, “Clamando no deserto” (18.2.2016), “Tumores de estimação” (2.4.2016) e “Ocultando a realidade ameaçadora” (17.10.2016).

Volto hoje ao tema. O Estadão de 3 de março estampa em manchete: “Shangai Electric fará proposta para assumir obras de R$ 3,3 bi da Eletrosul”. Em destaque gráfico o jornal recorda fatos relacionados: “Últimas compras feitas por chineses: CPFL. Em julho de 2016 a State Grid comprou fatia de 23% da Camargo Corrêa na CPFL por R$ 5,8 bilhões. Neste ano, concluiu a compra do controle por R$14 bi. Estrela. Em agosto de 2015, a China Three Gorges (CTG) comprou duas hidrelétricas da Triunfo Participações e Investimentos por quase R$ 2 bilhões. Leilão. Em novembro de 2015, CTG venceu o leilão da Ilha Solteira e Jupiá (CESP), por R$ 13,8 bilhões. Em 2016, comprou a Duke Energy por US$ 1,2 bilhão”.

Informa a reportagem assinada por Renée Pereira, a Shangai Electric deve apresentar até  10 de março proposta para assumir várias concessões de linhas de transmissão de energia da Eletrosul, subsidiária do grupo Eletrobrás.

Em nenhum momento, o texto elucida que a Shangai Electric é controlada pelo governo chinês. Também não esclarece que a China Three Gorges e a State Grid são estatais chinesas. Outro modo, são empresas controladas pelo Partido Comunista Chinês (PCC). Nenhum leitor terá visto o PT condenar a tomada paulatina do setor elétrico brasileiro pelo capital estrangeiro (no caso, o capital comunista chinês). Convém-lhe o fato.

Passo agora à reportagem de agosto de 2016, revista Exame, assinada por Maria Luiza Filgueiras. Título “O setor elétrico brasileiro caiu no colo dos chineses”. A jornalista lembra que a State Grid fatura 340 bilhões de dólares por ano, tem 1,5 milhão de funcionários. Outra empresa gigantesca, a Huadian gera o equivalente a toda a energia elétrica produzida no Brasil. Está negociando a compra da Santo Antônio Energia. A reportagem ainda menciona a SPIC e a CGN, ainda de origem chinesa.

A State Grid tem hoje no Brasil 7 mil quilômetros de linhas em funcionamento e 6,6 mil quilômetros em construção. É o sintoma de um fenômeno em estágio inicial, a dominação do mercado por empresas chinesas, afirma a citada jornalista. “Eles vão comprar tudo”, disse a ela um banqueiro de investimentos. Nos últimos cinco anos (matéria de agosto de 2016), os chineses investiram 40 bilhões de dólares no setor elétrico brasileiro.

Todas essas empresas são estatais chinesas (na grande maioria das vezes, fato ocultado do leitor brasileiro). A diretoria delas, nomeada pelo governo, tem o aval do PCC, que governa ditatorialmente em regime de partido único aquele desventurado país. De outro modo, está caindo no colo do Partido Comunista Chinês o setor elétrico brasileiro.

Adiante. O governo brasileiro começa a discutir a venda de terras para estrangeiros. Em entrevista à GloboNews, 15 de fevereiro, o ministro Henrique Meirelles afirmou que o governo liberaria nos próximos 30 dias a venda de terras brasileiras para estrangeiros. “O Brasil precisa de crescimento e de investimento. O agronegócio foi a área que mais cresceu em janeiro. Temos que investir, gerar mais empregos”. É tema delicado, requer debates de entendidos, do livro e da prática. Que se ouça com especial atenção o produtor rural, aqui também quem trabalha em terras arrendadas, que poupa na esperança de comprar seu pedaço de terra. Li em fontes várias, a proposta do governo virá com nota demagógica: 10% da terra comprada por estrangeiro terá que ser dedicada a projetos de reforma agrária. Soa como barretada ao MST, CNBB, e entidades similares, medida na certa prejudicial ao campo e à produção, e que em nada ajudará o trabalhador rural. Exprimo o temor de que o PCC, por meio de estatais e fundos de investimento, acabe comprando centenas de milhares de hectares, se não milhões. E a imprensa na certa vai noticiar na cantilena: “grupos chineses”, “investidores chineses”.

Relembro abaixo o que adverti meses atrás. A compra de gigantescos ativos pelas estatais chinesas traz o Partido Comunista Chinês para dentro da economia brasileira; para dentro da política brasileira. Tais empresas serão instrumentos para alinhar o Brasil aos interesses do comunismo chinês, no caso, de imediato, fortalecer na região os intuitos de Pequim e minar a influência norte-americana. Os mesmos objetivos, com métodos iguais, estão sendo levados a cabo na Argentina, Venezuela, Equador, Peru, Bolívia. E em outros países.

Por que tanto silêncio? Ponho a nu razão que morde no bolso. Em razão de longa política exterior de hostilidade aos Estados Unidos e à União Europeia, a China hoje é o maior parceiro comercial do Brasil, cerca de 20% de nosso comércio exterior. Vendemos em especial matérias-primas (commodities), sobretudo minério de ferro, soja, óleos brutos do petróleo, em geral por volta de 80% do total, itens com pouco valor agregado. E compramos mercadorias com alto valor agregado, máquinas, aparelhos elétricos, aparelhos mecânicos, produtos químicos orgânicos, em torno de 60% do total. Conta ainda na pauta de exportações a presença crescente de produtos do agronegócio, como carnes, couro, açúcar. É um imenso universo de fornecedores, de cujo vigor depende a sanidade da balança comercial brasileira.


De alguma maneira nos tornamos reféns da China. Ela pode trocar fornecedores, contratá-los em outros países, caso Brasília e setores privados atuem eficazmente contra sua crescente presença, ainda sobretudo econômica, entre nós. Concebível, setores privados e autoridades governamentais então prefeririam, para salvar vantagens econômicas, o silêncio confrangido (acovardado) sobre o avanço imperialista chinês dentro de nossa casa. No fato, conveniências de momento seriam fatores determinantes para conduta que desagua na independência condicionada e na limitação da soberania. Nenhum país sério tolera arranhões em sua independência e em sua soberania. A omissão a respeito caracteriza descumprimento dos deveres de defesa nacional. Se não for cortado esse passo de forma sensata, com lucidez e determinação, no horizonte, já antevisto, desenha-se para nós o estado vergonhoso de protetorado efetivo.

domingo, 5 de março de 2017

Definições e indefinições de Donald Trump

Definições e indefinições de Donald Trump

Péricles Capanema

Em 28 de fevereiro o presidente Donald Trump fez o seu até agora mais importante discurso como Chefe de Estado. A fala, tom presidencial, foi apelo para harmonizar setores e propostas em torno de união nacional, harmonia social e prosperidade. Merece análise atenta, o que faço logo abaixo, ainda que de maneira sintética, por limitação de espaço.

O começo. Sou brasileiro, meu artigo, se lido por alguém, terá em sua maioria leitores brasileiros. Em longo e bem preparado pronunciamento, nem uma palavra sobre o Brasil. Nem uma palavra sobre a América do Sul. Muitas vezes, num discurso, até em conversas simples, o calado é mais importante que o falado.

Em parte, culpa nossa. Patinamos, décadas esticadas, no mesmo local. Em 1978, o Brasil representava 1,5% do comércio internacional. Em 2015, índice igual, 1,5%. Em artigo de 14 de novembro, “Esperança e preocupação”, eu dizia, o Brasil não seria prioridade da nova administração norte-americana e observava: “O Brasil será prioridade se, no estradão certo, caminhar por longos anos para se colocar à altura de seu destino natural. Para isso, será preciso ordenar o apavorante ensino básico, médio e universitário. Nas várias pesquisas internacionais sempre ficamos na rabeira. E ainda melhorar a infraestrutura, reformar a legislação fiscal, previdenciária, trabalhista, diminuindo o ‘custo Brasil’, estimulando investimentos. O intervencionismo socialista trava nosso crescimento há décadas. Voltando a crescer na estabilidade o país será tomado a sério pelos Estados Unidos”. Não vejo rumo realista diferente.

Um agravante, evitável, ainda na nossa conta. José Serra, até há pouco chanceler, foi infeliz ao analisar para o “Correio Braziliense” a campanha presidencial norte-americana (assunto interno deles): “Eu considero a hipótese do Trump um pesadelo. Pesadelos, às vezes, se materializam? Se materializam, mas eu prefiro não pensar nisso, fazer o jogo do contente. Eu, nos EUA, sempre torci pelos democratas, no atacado. Não que os republicanos tenham sido sempre desastrados, mas sempre fui democrata lá, contudo, agora não se trata nem de ser democrata, trata-se de ser sensato, de querer o bem do mundo. Todos que querem o bem do mundo devem apoiar a Hillary, a meu ver”.

Desnecessário comentar, a declaração fala por si. Também em nada ajudam declarações de novembro de 2016 do novo chanceler, Aloysio Nunes Ferreira, então líder do governo no Senado: “Trump é o partido republicano de porre. É o que há de pior, de mais incontrolado, de mais exacerbado entre os integrantes de seu partido”. Estamos bem servidos.

Comento, agora sim, passagens do discurso de Donald Trump. Sobre política externa e defesa, em primeiro lugar. “Nossos aliados verificarão que os Estados Unidos, de novo, estão prontos para liderar. Todas as nações do mundo ▬ amigas ou inimigas ▬ se certificarão que os Estados Unidos estão fortes, orgulhosos e livres. Daremos aos nossos militares os recursos que esses bravos guerreiros merecem enormemente. Estamos tomando medidas enérgicas para proteger a nação do terrorismo islâmico radical. Como prometi, determinei ao Departamento de Defesa que faça um plano para demolir e destruir o Estado islâmico. Impus novas sanções a entidades e indivíduos que apoiam o programa balístico do Irã. A liderança norte-americana está baseada em interesses de segurança vitais que compartilhamos com nossos aliados no mundo inteiro. Apoiamos firmemente a OTAN. Não é meu dever representar o mundo, meu dever é representar os Estados Unidos”.

Presente na linguagem a determinação que fazia falta nos anos anteriores. Ficou claro o desejo de reconstruir o poderio militar dos Estados Unidos, a ordem de destruir o Estado islâmico, o apoio à OTAN.

Nem uma palavra sobre a Rússia. Nem uma palavra sobre a Ucrânia. Nem uma palavra sobre a Crimeia. Não é silêncio tranquilizador, pode estar dizendo muito. O que estarão agora pensando os países bálticos? Os ucranianos e kosovares? Os povos que fazem fronteira com a antiga União Soviética? Julgarão suficiente a manifestação de apoio à OTAN? Mais um sobressalto: “não é meu dever representar o mundo”. Correto, em termos. Por sua posição, cabe aos Estados Unidos o dever de proteção e manutenção da ordem mundial. Pode sinalizar rumo isolacionista. O slogan America First, pela forma como vem sendo empregado, vai na mesma direção. Essas são as maiores indefinições da política de Washington.

Um aspecto ainda a observar: “Retiramos os Estados Unidos da Parceria Transpacífico”. Se no futuro significar aumento da influência da China no Pacífico, a medida terá sido catastrófica. Pode levar a isso, é o temor de numerosas figuras de importância na vida pública dos Estados Unidos. Respigo entre elas advertência de John McCain, dos mais importantes senadores republicanos, conhecido especialista em segurança e política externa: “Minha preocupação é que entreguemos a região da Ásia-Pacífico para a China. Eles têm agora um papel muito significativo na região Ásia-Pacífico e estamos em retirada”.

Donald Trump determinou medidas de combate ao tráfico de drogas. Quanto às leis e providências referentes aos imigrantes, nada de especial, o tema está sendo estudado no governo. A indicação do juiz Neil Gorsuch para a Corte Suprema, apenas aludida na fala, sugere conduta contrária à agenda libertária; acontecendo, repercutirá bem no futuro dos Estados Unidos.

Para terminar, alguns pontos de política interna ali mencionados: “O mercado de ações ganhou quase três trilhões de dólares desde o dia da eleição, 8 de novembro. Levamos a cabo um esforço histórico para reduzir regulamentações que destroem empregos. Limpamos o caminho para a construção dos oleodutos de Keystone e Dakota. Minha equipe econômica está pondo no papel uma reforma fiscal que reduzirá os impostos para a empresas. Ao mesmo tempo, diminuiremos energicamente os impostos para a classe média. O primeiro presidente republicano, Abraham Lincoln, advertiu que ‘o abandono da política protecionista pelo governo norte-americano produzirá pobreza e ruina no povo’. Estou enviando ao Congresso proposta para rejeitar e substituir o Obamacare com reformas que aumentarão a possibilidade de escolha, o acesso, baixarão custos e, ao mesmo tempo, melhorarão o atendimento médico. Precisamos ajudar os norte-americanos a comprar o plano que eles querem e não o plano imposto a eles pelo governo”

O plano econômico de diminuição do intervencionismo, estímulo à iniciativa privada, menos impostos teve resposta positiva. O mercado de ações, um dos sintomas, vem subindo, em 27 de fevereiro o índice Dow Jones alcançou seu 12º recorde consecutivo. Os agentes econômicos manifestam confiança no futuro da economia. A nota protecionista da fala justifica sobreaviso.


Em resumo, repito com matizes o que coloquei no título do artigo de 14 de novembro: Esperança e preocupação. Foram tomadas medidas que justificavam a esperança. As nuvens não sumiram do horizonte.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Na contramão do Carnaval

Na contramão do Carnaval

Péricles Capanema

Não é politicamente correto criticar o Carnaval. Na mitologia corrente, seria quase tão-só a maravilhosa e desinibida manifestação da alegria popular. Nesse rumo desembesta a cobertura da imprensa, maciça, laudatória. Trilho caminho oposto e invado a contramão. De início, dois pontos.

Primeiro: a maior festa popular do Brasil é o Carnaval. Outra verdade: a maior parte dos brasileiros quer distância dele. Mais, não se sente representada pelo que ali vê e ouve. Um sintoma, as filas sem fim de automóveis para o litoral e para o interior. Entre 24 de fevereiro e 1º de março dois milhões de veículos deixaram São Paulo, fugindo do Carnaval. E a maioria dos carros não levava só o motorista. O fenômeno se repete país afora. A realidade, num planalto de indiferença e até de hostilidade, grassam zonas do Carnaval de grande efervescência, muito trombeteadas, como Salvador e Rio de Janeiro. Celebração popular, admito sem problema. Nos números, festa de minorias de representatividade controvertida.

Segundo ponto. O Carnaval, fora das fronteiras, em geral visto com lentes deformantes, mais piora que ajuda nosso bom nome no Exterior. A respeito, enterremos ilusões ufanistas, como faz o derreado folião, que na 4ª feira de Cinzas soca na lata de lixo a fantasia rasgada. Transcrevo pequeno trecho da reportagem da Sputinik France (elucida, é o tom geral lá fora): “O Carnaval é o acontecimento mais importante do ano para cada brasileiro, uma festa que representa a alma e a mentalidade do Brasil. Todos os anos, antes do começo da quaresma, o Brasil inteiro mergulha na atmosfera da festa mais marcante da Terra”.

Viu? Faça o teste sincero com você e os seus. O Carnaval para seus familiares é o fato mais importante do ano? Representa sua alma e mentalidade? Todos os brasileiros, Oiapoque ao Chuí, mergulham na atmosfera da festa carnavalesca por cerca de uma semana?

Fácil perceber, estamos agredidos por enorme mentira, divulgada ano pós ano no mundo inteiro. E, relativa a nós, o que essa mentira esconde particularmente daninho no bojo? Somos figurados como povo meio primitivo, em estágio de há muito ultrapassado pelos países mais civilizados, que celebra enfatuado a libertinagem, leniente com a devassidão moral, a bebedeira, a blasfêmia, o deboche, a caçoada; enfim, com o total desatarraxo. E assim, nas horas graves, propende por escolher o irracional, o inconsequente e o mágico (pelo menos nas eleições, tal juízo depreciativo estaria sempre longe da verdade?).

Não terei a ingenuidade de negar que existe parte verdadeira na pintura exagerada há pouco esboçada. Alguns dados evidenciam a “atmosfera” na qual mergulharia toda a população: o ministério da Saúde, até o Carnaval (intensificação no período de festas) distribuiu 77 milhões de preservativos. Só em Salvador, os órgãos públicos repartiram 5 milhões. A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, 700 mil. Na primeira noite do Carnaval, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, dez pessoas entraram em coma alcoólico. Amplie para o Brasil todo. Pense no aumento, durante o Carnaval, do consumo de drogas, alcoolismo, homicídios, roubos, estupros, gravidez precoce, desastres nas estradas, ressacas. O clima de aprovação revela tolerância injustificável com decorrências devastadoras das festas momescas entre nós. Lazer autêntico?

O europeu, quando mergulhado na atmosfera serena da civilização cristã, entende o lazer como alegria temperante que restaura as forças para o trabalho produtivo. É o grande segredo da recreação saudável: repousa e restaura. As canções e danças populares de várias nações do Velho Continente expressam tal ambiente, em parte hoje recriado por algumas apresentações dos musicais de André Rieu. A propósito, a palavra alemã Erholung exprime a ligação entre recreação e esforço intenso. Erholung significa recreio, recreação, repouso, descanso. Significa ainda recuperação, restabelecimento, convalescença, relançamento. Afastado daí está o Carnaval, com suas sequelas de abatimento e esgotamento; e vamos aqui deixar de lado a corrupção moral.

Enveredo uma vez mais pelo politicamente incorreto, só que por outra trilha, desenterrando no caminho tesouros escondidos. Se este artigo puder ser comparado a uma moeda, falei da cara. Trato a partir de agora da coroa, o outro lado. O Carnaval brasileiro passa longe da luta de classes. Existem, artificiais, aqui e ali manifestações de esquerdismo radicalizado, nada representativas do clima geral. Paira no ar cordialidade real, um desejo de ajudar, alimentado por aspiração de convívio harmonioso, em que uma pessoa compreenda e estimule o que na outra exista de melhor. “Cidade maravilhosa, coração do meu Brasil, terra que a todos seduz” é uma cidade ideal, imaginada com delícias por gente que vive áspera realidade quotidiana. A pobre mocinha desdentada da favela não apenas visualiza uma cidade maravilhosa, quer nela se vestir de princesa, de heroína, para partilhar fugazmente no sonho um mundo de convívio perfeito, trato elevado e alta cultura. Aqui está aspecto positivo pouco ventilado.


Lembrei atrás, o Carnaval mais piora que ajuda nosso bom nome. Para equilibrar o quadro, recordo fato que atrai, a justo título, admiração no Exterior. Fernand Braudel (1902-1985), francês, que para muitos da área reinventou a História, analisando o fenômeno humano globalmente, viveu como professor em São Paulo entre 1935 e 1937. Dizia: “Foi no Brasil que me tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida passei no Brasil”. Perguntavam-lhe o que quis dizer com o “me tornei inteligente”? Deu várias respostas: “Fiquei menos banal, eu me tornei o que sou hoje. [Sem minha estadia lá] não teria feito sobre o Mediterrâneo um livro diferente dos outros já escritos”. Às vezes respondia sorrindo: “Talvez seja porque lá eu aprendi a ser feliz”. Na prática, notou admirado em muitos com quem tratava um olhar de enorme compreensão, fruto de uma mentalidade. Braudel o entendeu, a partir daí mudou sua noção da vida, foi instrumento para viver melhor e alcançar a celebridade intelectual. O espetáculo de gentileza social que transformou Braudel tem relação com a aspiração da pobre mocinha desdentada da favela que sonha um dia desfilar como princesa. São valores ricos, formativos, geradores de cultura e lazer, diante deles não caminhemos desatentos; imitemos aqui Fernand Braudel, por tantos letrados tido como o maior historiador e pensador social do século XX.