Na contramão do
Carnaval
Péricles Capanema
Não é politicamente correto criticar o Carnaval. Na
mitologia corrente, seria quase tão-só a maravilhosa e desinibida manifestação
da alegria popular. Nesse rumo desembesta a cobertura da imprensa, maciça, laudatória.
Trilho caminho oposto e invado a contramão. De início, dois pontos.
Primeiro: a maior festa popular do Brasil é o Carnaval.
Outra verdade: a maior parte dos brasileiros quer distância dele. Mais, não se
sente representada pelo que ali vê e ouve. Um sintoma, as filas sem fim de
automóveis para o litoral e para o interior. Entre 24 de fevereiro e 1º de
março dois milhões de veículos deixaram São Paulo, fugindo do Carnaval. E a
maioria dos carros não levava só o motorista. O fenômeno se repete país afora. A
realidade, num planalto de indiferença e até de hostilidade, grassam zonas do
Carnaval de grande efervescência, muito trombeteadas, como Salvador e Rio de
Janeiro. Celebração popular, admito sem problema. Nos números, festa de
minorias de representatividade controvertida.
Segundo ponto. O Carnaval, fora das fronteiras, em
geral visto com lentes deformantes, mais piora que ajuda nosso bom nome no
Exterior. A respeito, enterremos ilusões ufanistas, como faz o derreado folião,
que na 4ª feira de Cinzas soca na lata de lixo a fantasia rasgada. Transcrevo pequeno
trecho da reportagem da Sputinik France
(elucida, é o tom geral lá fora): “O Carnaval é o acontecimento mais importante
do ano para cada brasileiro, uma festa que representa a alma e a mentalidade do
Brasil. Todos os anos, antes do começo da quaresma, o Brasil inteiro mergulha
na atmosfera da festa mais marcante da Terra”.
Viu? Faça o teste sincero com você e os seus. O
Carnaval para seus familiares é o fato mais importante do ano? Representa sua
alma e mentalidade? Todos os brasileiros, Oiapoque ao Chuí, mergulham na
atmosfera da festa carnavalesca por cerca de uma semana?
Fácil perceber, estamos agredidos por enorme mentira, divulgada
ano pós ano no mundo inteiro. E, relativa a nós, o que essa mentira esconde particularmente
daninho no bojo? Somos figurados como povo meio primitivo, em estágio de há
muito ultrapassado pelos países mais civilizados, que celebra enfatuado a libertinagem,
leniente com a devassidão moral, a bebedeira, a blasfêmia, o deboche, a caçoada;
enfim, com o total desatarraxo. E assim, nas horas graves, propende por
escolher o irracional, o inconsequente e o mágico (pelo menos nas eleições, tal
juízo depreciativo estaria sempre longe da verdade?).
Não terei a ingenuidade de negar que existe parte verdadeira
na pintura exagerada há pouco esboçada. Alguns dados evidenciam a “atmosfera”
na qual mergulharia toda a população: o ministério da Saúde, até o Carnaval
(intensificação no período de festas) distribuiu 77 milhões de preservativos. Só
em Salvador, os órgãos públicos repartiram 5 milhões. A Secretaria Municipal de
Saúde do Rio de Janeiro, 700 mil. Na primeira noite do Carnaval, em Campo
Grande, Mato Grosso do Sul, dez pessoas entraram em coma alcoólico. Amplie para
o Brasil todo. Pense no aumento, durante o Carnaval, do consumo de drogas, alcoolismo,
homicídios, roubos, estupros, gravidez precoce, desastres nas estradas,
ressacas. O clima de aprovação revela tolerância injustificável com
decorrências devastadoras das festas momescas entre nós. Lazer autêntico?
O europeu, quando mergulhado na atmosfera serena da
civilização cristã, entende o lazer como alegria temperante que restaura as
forças para o trabalho produtivo. É o grande segredo da recreação saudável:
repousa e restaura. As canções e danças populares de várias nações do Velho
Continente expressam tal ambiente, em parte hoje recriado por algumas
apresentações dos musicais de André Rieu. A propósito, a palavra alemã Erholung exprime a ligação entre
recreação e esforço intenso. Erholung
significa recreio, recreação, repouso, descanso. Significa ainda recuperação,
restabelecimento, convalescença, relançamento. Afastado daí está o Carnaval,
com suas sequelas de abatimento e esgotamento; e vamos aqui deixar de lado a
corrupção moral.
Enveredo uma vez mais pelo politicamente incorreto, só
que por outra trilha, desenterrando no caminho tesouros escondidos. Se este
artigo puder ser comparado a uma moeda, falei da cara. Trato a partir de agora
da coroa, o outro lado. O Carnaval brasileiro passa longe da luta de classes.
Existem, artificiais, aqui e ali manifestações de esquerdismo radicalizado, nada
representativas do clima geral. Paira no ar cordialidade real, um desejo de
ajudar, alimentado por aspiração de convívio harmonioso, em que uma pessoa compreenda
e estimule o que na outra exista de melhor. “Cidade maravilhosa, coração do meu
Brasil, terra que a todos seduz” é uma cidade ideal, imaginada com delícias por
gente que vive áspera realidade quotidiana. A pobre mocinha desdentada da
favela não apenas visualiza uma cidade maravilhosa, quer nela se vestir de princesa,
de heroína, para partilhar fugazmente no sonho um mundo de convívio perfeito,
trato elevado e alta cultura. Aqui está aspecto positivo pouco ventilado.
Lembrei atrás, o Carnaval mais piora que ajuda nosso
bom nome. Para equilibrar o quadro, recordo fato que atrai, a justo título,
admiração no Exterior. Fernand Braudel (1902-1985), francês, que para muitos da
área reinventou a História, analisando o fenômeno humano globalmente, viveu
como professor em São Paulo entre 1935 e 1937. Dizia: “Foi no Brasil que me
tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal
espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi
a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida passei no Brasil”. Perguntavam-lhe
o que quis dizer com o “me tornei inteligente”? Deu várias respostas: “Fiquei
menos banal, eu me tornei o que sou hoje. [Sem minha estadia lá] não teria feito
sobre o Mediterrâneo um livro diferente dos outros já escritos”. Às vezes
respondia sorrindo: “Talvez seja porque lá eu aprendi a ser feliz”. Na prática,
notou admirado em muitos com quem tratava um olhar de enorme compreensão, fruto
de uma mentalidade. Braudel o entendeu, a partir daí mudou sua noção da vida, foi
instrumento para viver melhor e alcançar a celebridade intelectual. O
espetáculo de gentileza social que transformou Braudel tem relação com a
aspiração da pobre mocinha desdentada da favela que sonha um dia desfilar como
princesa. São valores ricos, formativos, geradores de cultura e lazer, diante
deles não caminhemos desatentos; imitemos aqui Fernand Braudel, por tantos letrados
tido como o maior historiador e pensador social do século XX.
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