Alguns pingos em
alguns is
Péricles Capanema
De alguns anos a esta parte, movimentos e partidos
políticos de fundo nacionalista vêm ganhando força em países importantes. Assistimos
a enorme reviravolta no espírito público, pode determinar rumo diferente ao que
o mundo vem trilhando, aos trancos e barrancos, desde o fim da 2ª Guerra
Mundial. Aonde chegaremos?
A corrente não é una, apresenta características
díspares, e não apenas em aspectos acidentais, mas nos nacionalismos se percebe
um fundo comum, sobre o qual, de forma sucinta, tratarei. Nacionalismo vem de nação.
E nação, de natio, natus,
etimologicamente, é o conjunto dos que nasceram em determinado território.
Nação foi palavra inicialmente utilizada pelos
estudantes das universidades medievais, em especial a de Paris. Ali eles se
organizavam em grupos, falavam a língua materna entre si, eram regidos pelas
leis dos próprios países (ou regiões). Existiu a nação da Alemanha, a nação da
Inglaterra, a nação normanda. Outras ainda.
A palavra não designou apenas agrupações de estudantes.
Por exemplo, em fins do século 15, surgiu o acréscimo nação em realidade política
de enorme importância: Heiliges Römisches Reich
deutscher Nation (Em tradução literal, santo império
romano da nação alemã; em português, o Sacro Império Romano Alemão). O Sacro
Império foi oficialmente extinto em 1806 por Napoleão. Importante notar, ali
foram extintos direitos históricos, autonomias multisseculares; essa organização
política de raízes medievais dificultava planos do Corso, centralizadores e
autoritários.
Por que lembro fatos antigos? Para melhor compreendermos no presente o
fenômeno nacionalismo. Quando a palavra nação se difundiu a Era Moderna ainda
não havia começado. No temperante ambiente da Cristandade, era comum, os homens
viviam distantes do absolutismo, da centralização e do autoritarismo unificador.
E de delírios de grandeza, própria ou coletiva. O medieval, respirando ares de civilização cristã, não desatinava
atrás da busca obsessiva da própria grandeza, da de sua família, região ou
reino. Tinha um olhar temperante para as coisas temporais, condicionado ao
“vale de lágrimas”. E sua atenção se fixava de imediato e preferentemente na
família e na região. O imperador do Sacro
Império dispunha de poucos poderes diretos. Sem ser conhecido explicitamente, o
princípio de subsidiariedade, hoje o pilar central da doutrina social católica,
embebia a sociedade. Mesmo em Paris, capital da França, a nação alemã dos
estudantes dispunha de grande autonomia no governo próprio.
Com o avanço
do Estado Moderno, nação foi ganhando significado mais denso. Passou a
significar em geral comunidade estável de indivíduos, historicamente
determinada por origem, costumes, religião e língua comuns. Daí a defesa do
território, fronteiras, língua, cultura, raça, dentre outros. Tais elementos,
ainda que importantes, de fato eram acidentais; o fundamental sempre foi o
sentimento do vínculo comum, a consciência de pertencer a uma entidade com
interesses próprios e necessidades peculiares. O Estado é sua forma política
normal.
Surgiu o
nacionalismo como o conhecemos agora, fruto típico dos Tempos Modernos. Medra bem
nos miasmas do antropocentrismo potencializado com a Renascença. A nação e até
o Estado passaram a ser alucinados ideais de grandeza humana. Não mais eram realidades
benéficas, mas subsidiárias à família, na procura da perfeição humana em todos
os níveis. A nota jacobina, o Estado como o grande instrumento a conquistar
para impor um suposto programa de salvação nacional, sempre esteve muito
presente.
Noto de
passagem: é louvável defender a identidade nacional e lutar pela grandeza
nacional, com base em doutrina razoável e conduta sensata, julgando o Estado
instrumento útil, necessário e importante para a pessoa e a família alcançarem seus
fins.
Volto ao fluxo
principal: não foi assim com o nacionalismo em várias de suas vertentes
importantes: pessoa, família, região passaram a ser meras partes de um todo
coletivo, de valor absoluto. A exacerbação coletivista desemboca no totalitarismo,
o que historicamente aconteceu em várias ocasiões. “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”, foi lema
do fascismo italiano.
Citei Napoleão
Bonaparte. Volto a ele, exemplo de nacionalismo, enorme influência. Chefe
carismático, uniu a aspiração da pátria agigantada com os ideais da Revolução
Francesa. Centralizador, ditatorial, adversário dos direitos históricos de
famílias, regiões, corporações, agiu contra sociedades intermediárias de várias
naturezas, colocadas entre a pessoa e o Estado. Procurou subjugar e utilizar a
Igreja para seus objetivos de ordem e grandeza nacionais. A ele se aplicaria
bem a expressão famosa, falsamente atribuída a Luís 14: “L’État, c’est moi”.
Nas linhas gerais, o bonapartismo ▬ regime republicano imperial, Estado
nacional com Executivo forte e centralizado, populista, recurso frequente ao
plebiscito ▬ foi a tintura mãe dos nacionalismos.
Seus traços principais
continuam até hoje. Um deles, ausente no bonapartismo, foi acrescentado em
alguns nacionalismos: o antissemitismo. O antissemitismo pode ser visto como espécie
do gênero xenofobia, presença constante nos nacionalismos. O estrangeiro (ou o
corpo estranho), eis o inimigo do coletivo nacional, sempre bom e vocacionado
para a grandeza.
Bonaparte prometeu
restaurar a ordem em frangalhos com as convulsões sociais do período, implantar
a racionalidade e a eficiência no governo, eliminar os “lados ruins” da
Revolução Francesa. Perseguiu os monarquistas, recusou o Rei, isolado em
Londres, e a velha nobreza, dispersa pela Europa, tidos por corruptos e
decadentes. Desprezava a cultura refinada e aristocrática do Antigo Regime.
Autoritário, centralizador, populista, confiante no uso da força, arrastou
atrás de si grande parte da França até que suas derrotas o jogaram, exilado, em
Santa Helena.
Historicamente,
o nacionalismo atraiu simpatias de católicos, conservadores, tradicionalistas,
de correntes favoráveis à livre iniciativa e ao empreendedorismo. Foi visto
como adversário do internacionalismo socialista (inimigo da identidade
nacional) e do igualitarismo revolucionário (inimigo das desigualdades de base
natural). Era muitas vezes considerado baluarte na defesa da ordem ameaçada
pela agressão da desordem revolucionária. Milhões de seus seguidores, gente de
bem, colocaram na sombra os traços coletivistas, centralizadores e
autoritários, a negação teórica e prática do princípio de subsidiariedade.
Aderiram ao que lhes parecia a única defesa eficaz contra a avalanche
revolucionária que ameaçava levar de roldão moral, instituições veneráveis e
civilização.
Foi um falso
dilema demolidor. Para milhões, acarretou tragédias das mais variadas
naturezas. Podem voltar a acontecer. É momento de maturidade, exame, argúcia,
equilíbrio, isenção. Claro, não esgotei assuntos, ventilei-os; nem poderia ser
diferente em artigo limitado por espaço. Espero, contudo, ter fornecido
material útil para reflexão. Em resumo, procurei cumprir a promessa: pôr alguns
pingos em cima de alguns is.
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