domingo, 27 de dezembro de 2020

Exclusão e empobrecimento

 

Exclusão e empobrecimento

 

Péricles Capanema

 

Dias atrás, 21 de dezembro, o Papa Francisco em mensagem de Natal para a Cúria Romana repentinamente desfechou: “E recordo o que dizia aquele santo bispo brasileiro: ‘Quando me ocupo dos pobres, dizem de mim que sou um santo; mas, quando me pergunto e lhes pergunto: ‘Por que tanta pobreza?”, chamam-me ‘comunista’”.

 

Também vou recordar, apontando evidências. O “santo bispo brasileiro” a quem ele se refere é dom Hélder Câmara (1909–1999). E a frase lembrada não passa de uma “boutade” de dom Hélder, frasista conhecido, foi pirueta para escapar de censura pertinente de que sua ação favorecia o comunismo.

 

 A alusão inesperada do Papa Francisco ▬ é penoso constatar, contudo inevitável, incoercível a lógica, foi propaganda mundial para dom Hélder, reflexo caloroso também recebeu o comunismo, nomeado sem reservas como movimento que luta pelos pobres ▬ suscitou esperada alegria na esquerda. Apenas como exemplo, festejou-a Fernando Haddad, candidato derrotado do PT nas últimas eleições presidenciais: “Dom Hélder foi citado pelo papa Francisco na sua mensagem de Natal. Não poderia ser mais inspirador”. Inspirador aqui significa animador. Em sentido contrário, tais palavras contristaram os setores que temem a ascensão do petismo. Desconcertaram, jogaram muitos no desânimo.

 

De passagem, em perspectiva ampla, a alusão do Pontífice é de molde a agravar a exclusão social, racha a sociedade ainda mais, piora as perspectivas para os menos favorecidos. Na prática, agride a causa dos pobres e bafeja estruturas de opressão. Falarei sobre isso abaixo.

 

Agora, recordações esclarecedoras, pingo sobre alguns dos principais iis. Dom Hélder teve carreira “tous azimuts”. Integralista desenvolto nos primeiros anos de sacerdócio (ordenado em 1931), acabou aclamado por correntes de esquerda no mundo inteiro por sua ação contínua a favor da pauta dela, em especial nos anos de episcopado (sagrado em 1952). Aliás, não saiu do integralismo batendo a porta: “Nunca rompi com o integralismo”, observou em 1983.

 

Assim, depois de alguns anos como ativista saliente do integralismo, migrou resolutamente para se transformar no Brasil no mais decisivo promotor da agenda do progressismo e do esquerdismo nas fileiras do Clero e do Episcopado.

 

Ainda na década de 30 dom Hélder se aproximou do ideário e das propostas de Jacques Maritain (1882-1973), pensador de grande influência na Ação Católica. O filósofo francês, corifeu do liberalismo católico, promovia a junção das doutrinas da Revolução Francesa com o ensinamento da Igreja, expressa de forma concisa em sua formulação “sociedade laica, vitalmente cristã”. Já não se procuraria a ordem temporal cristã, ideal de restauração, mas se aceitaria (ou pelo menos se toleraria) a sociedade nascida da Revolução Francesa, objetivo de acomodação. Nela, na sociedade laica, moldada pelo racionalismo, buscar-se-ia insuflar uma vida evangélica.

 

A Ação Católica no Brasil, profundamente maritainista, da qual dom Hélder foi assistente geral e grande impulsionador, está nas nascentes da esquerdização do Clero e do laicato. Neste quadro, dom Hélder foi ainda o motor da criação da CNBB, da qual foi secretário-geral por muitos anos entre 1952 e 1964. A entidade, todos sabem, tornou-se correia de transmissão das palavras de ordem da esquerda brasileira, do PT tem sido fiel e disciplinada companheira de viagem nos últimos lustros. Da Ação Católica nasceu a JUC; no caldo de cultura da mencionada organização universitária surgiu a AP, marxista e guerrilheira ▬ e aqui lembro o fato apenas como ilustração de realidade generalizada nos ambientes da Ação Católica. Ali também medraram a JEC, JOC, JAC, todas favorecedoras de programas de esquerda radicalizados. O mais simbólico rebento da JEC é frei Betto. Do mesmo modo, daí vieram as comunidades eclesiais de base (CEBs), ali teve seu começo a Teologia da Libertação. Para a gestação e nutrição de todas essas entidades e correntes doutrinárias que pululavam no seio da Igreja Católica colaborou dom Hélder. E por isso, era natural, tornou-se a figura símbolo do esquerdismo católico no Brasil. O PT fincou um de seus esteios em dito universo agitado ▬ as CEBS e a esquerda católica em geral. As outras duas estacas foram o movimento sindical e a esquerda universitária.

 

 “Pelos frutos os conhecereis”, não pelas palavras. Os frutos pestilenciais estão à vista, corrupção, roubalheira e empobrecimento causados pelos anos do PT no poder. E apoio às tiranias na América Latina, Cuba, Venezuela, Nicarágua, onde, em situação totalitária, perpetuam a miséria.

 

Se a mencionada corrente voltar ao poder entre nós, trabalhará para fazer de país, logo que possível, uma cópia da Venezuela ou de Cuba. Para tanto, temos visto já atuando agora a CNBB, a CPT e o MST, todos ligados umbilicalmente à esquerda católica. Nas raízes estão Jacques Maritain, a Ação Católica e o ativismo de dom Hélder.

 

O que tal movimento trouxe para os pobres em todos os lugares em que venceu? Atraso, destruição dos horizontes de crescimento, agravamento da pobreza. O que mais? Estruturas de opressão na sociedade e no Estado. E exclusão social. Onde se instalou se  pavoneia arrogante a casta dirigente e padece manietado décadas afora o povo oprimido, os excluídos. E não nos iludamos, é cenário trágico de retrocesso obscurantista, mas possível, de alto a baixo, toda a América Latina está agora ameaçada por tais programas de destruição. A atuação de dom Hélder os beneficiou de forma relevante e por isso multidões de católicos estão perplexos com seu pregão pelo Papa Francisco.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Union sacrée contemporânea

 

Union sacrée contemporânea

 

Péricles Capanema

 

Desculpem-me o título na língua dos outros ▬ a união sagrada, em português. Justifico-me, a expressividade tem seus direitos, a elocução francesa aqui torna mais viva a realidade que tomou a França durante a 1ª Guerra Mundial em face das potências centrais, em especial da Alemanha. Proclamou-se na ocasião a necessidade imperiosa de uma união sagrada, fundada na trégua interna, que pudesse unir para defesa da pátria agredida todas as correntes de relevância no país, até então em choque; republicanos, monarquistas, católicos, ateus, livres-pensadores, socialistas, conservadores, tradicionalistas, progressistas. A França polarizada daria lugar à França unida na defesa da pátria atacada. Quem ficasse de fora da coligação de salvação nacional se sentia mal; rejeitado socialmente, incompreendido mesmo dos seus, poderia até acabar marcado com o labéu de covarde traidor ▬ um pária. Situações desse tipo acontecem, não são raras.

 

Essa aconteceu assim. Em 3 de agosto de 1914, a Alemanha declarou guerra à França, que penava a derrota humilhante de 1870, com a consequente perda de importantes províncias. Vieram então as gerações “revanchardes”, ansiosas por revanche e vingança. A declaração de guerra abria possibilidade para o acerto de contas, em resumo, parecia, tinha chegado a hora. Esperava-se guerra rápida, triunfo certo; veio guerra longa, sofrimentos sem fim, triunfo pela mão dos Estados Unidos.

 

Um dia antes, 2 de agosto, em ambiente de tensão altíssima entre os dois países, o estado de sítio já havia sido declarado na França, com convocação do Parlamento para o dia 4. Em 4 de agosto, René Viviani, presidente do Conselho de Ministros, leu no Parlamento mensagem de Raymond Poincaré, presidente da França: “Na guerra que começa, a França terá a seu lado o direito, do qual os povos, assim como os indivíduos, não podem desconhecer impunemente o eterno poder moral. Ela será heroicamente defendida por todos os seus filhos, nada quebrará sua união sagrada; estão hoje fraternalmente congregados em uma mesma indignação contra o agressor e em uma mesma fé patriótica”.

 

Nada quebrará sua união sagrada; aqui nasceu para a política francesa a expressão “união sagrada”; durou anos, deixou marcas profundas na vida de cada francês. O ardor da fé patriótica arredondou arestas anteriores, a aproximação soldou diferenças dos franceses de todas as tendências. O mais visível símbolo de tal coligação foi a chefia do exército confiada ao marechal Ferdinand Foch, católico conhecido, e a chefia do governo nas mãos de Georges Clemenceau, anticlerical, livre-pensador, com raízes na esquerda. Já em 2 de agosto de 1914 o ministro do Interior mandou suspender a execução de decretos que atingiam a Igreja Católica. Em outubro de 1915, Aristide Briand colocou no governo Denys Cochin, católico, encerrando longo período de hostilidade da república em relação à Igreja, iniciado em 1877.

 

Essa mesma política, intitulada na França de “union sacrée”, com base no patriotismo e na defesa da pátria, foi adotada pela Alemanha (Burgfrieden), Bélgica, Rússia, entre outros. Mas não tiveram a repercussão e a carga simbólica da “union sacrée” francesa.

 

Com o triunfo da revolução bolchevista (novembro de 1917) e o fim da Guerra, os partidos de esquerda, já em parte reticentes em relação a ela, denunciaram-na por inteiro e o quadro político voltou a ser tenso e conflitivo. Os anos 20 assistiriam ao fortalecimento dos partidos de esquerda, que suscitaram violentas reações, capitaneadas em geral pelo nazismo e fascismo, ou organizações assemelhadas. Tais movimentos atraíram e desviaram enormes contingentes católicos. Sem contar aqui a desorganização e morticínios causados pelos quatro anos de guerra.

 

Em resumo, ponto que ninguém ou quase ninguém ressalta, porém dever do analista católico salientá-lo, enorme tragédia se abateu sobre grandes possibilidades de evangelização e restauração social: não amadureceram de forma saudável em milhões de jovens os frutos de salvação que, antes da Guerra, prenunciavam colheita de decisiva importância para a Europa ▬ e o mundo. Para tal contribuíram a ingenuidade, a superficialidade, a precipitação, bem como a má direção, tanto no âmbito eclesiástico, como no temporal.

 

Por que em traços gerais lembro universo tão vasto? Por necessidade, pela enorme atualidade potencial. “Historia lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae.”

 

Corta. Passo a relatar fato de hoje, distante mais de século dos anos da “union sacrée´´. O caso do COVID-19 explodiu em Wuhan, na China. Um ano depois, “Época” entrevistou um paulistano que lá vive, Kenviti Shindo, 27 anos, estudante de mestrado. A vida em Wuhan é de quase normalidade: “Aqui está praticamente normal, usamos máscara quando entramos em locais fechados, como bares, restaurantes ou shopping centers. Claro que existe uma preocupação de que o vírus volte, mas tudo já funciona como antes", observa Shindo. Não há registros de casos novos na província de Hubei, da qual Wuhan é a capital. Em outubro, a província atraiu 52 milhões de turistas entre os dias 1 e 7, Semana Dourada, época festiva. Em contraste lúgubre, o Ocidente ainda se debate com o vírus. O Brasil, nem falar. Não dá inveja? Dá. Quem tem inveja procura imitar.

 

Corta de novo, terceira matéria em texto reduzido. Em 2018 escrevi um livrinho “Brigo pelos homens atrofiados” sob o pseudônimo de Zeca Patafufo. Um dos personagens do conto, Adamastor Ferrão Bravo, sabido e bom observador, fez advertência que agora ficou candente. Vale apena ouvir Ferrão Bravo:

 

“— O cenário brilhante fica no Oriente. Na paradeira de atores estafados, a China e outros poucos países asiáticos disparam para tomar a boca do palco.

— Vai impingir seus intentos?

— Para lá somos arrastados. [Observou Ferrão Bravo]. Não demora, o provável, assistiremos a multidões babando de admiração pelo país que se deu bem e aí bamboleando atrás e remedando. Tem aquele tanto de sortilégio, acho. A França, quando primeira no mundo, foi trend-setter. Os Estados Unidos, passante de cem anos, ditam moda. São povos constituintes. Ainda vai escutar um bucado de mães falando: — Aula de inglês? Não é tanta prioridade, quente agora é o menino igual aprender o mandarim.

— Os Estados Unidos vão continuar na testa, está no DNA deles, seu Adamastor. Lá o pelotão da frente não brinca em serviço.

— É conforme, deix’eutifalá, têm energia para manter a mão na rédea. O século 20 foi o século americano-do-norte; o século 21 vai ser também, depende de os gringos quererem.

— A China periga dar certo? — o Cisco, espantado.

— No mundo da lua, vão agigantar tudo pela propaganda. Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imantada, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista; via nos intentos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza apavorante, a construção da utopia socialista dos ‘amanhãs que cantam’; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores.

— Tem exorcismo contra tais modismos?

— Conheço um, destrinchar e divulgar preto no branco essas alquimias de fundo totalitário. Cadê o esforço intelectual e a valentia?

— Entendi, o enfeitiçamento bafeja situações ditatoriais.”

 

Flui o conto, Adamastor Ferrão Bravo ali continua com braveza aferroando, mas paro por aqui. Chamei a atenção de tal realidade para quê? Para a possibilidade de manobra de soft power. No combate ao vírus, a China sai na frente, elimina o problema, resolve. Cara da moeda. Na coroa, chapina o resto do mundo; mortes, fechamentos, abatimentos, desorientação. O mundo vai preferir cara ou coroa?  “Multidões babando de admiração e remedando”. E então poderia acontecer uma nova e adaptada “union sacrée” em nossos dias, voltada contra a pandemia, no desenrolar da qual a China despertaria admiração, atrairia simpatias e abateria barreiras, isolaria opositores. Lucro evidente para os desígnios totalitários e imperialistas do Partido Comunista Chinês. Olho vivo, moreno, seguro morreu de velho, desconfiado ainda vive.

domingo, 20 de dezembro de 2020

São Francisco de Assis, santo de todas as épocas e situações

 

São Francisco de Assis, santo de todas as épocas e situações

 

Péricles Capanema

 

Presépios estão sendo montados aos milhões mundo afora; nas casas de família, em praças, nos caminhos, nos bares e restaurantes, nas lojas, nos museus e escolas. Existem para todos os gostos, simples, suntuosos, artísticos, famosos, feito por mãos anônimas de grande talento ou sem nenhum.

 

Lá estão sempre a manjedoura, Nossa Senhora, o Menino Jesus, são José, o Anjo mensageiro, os pastores, os animais. E já bastam. Mesmo presépios modestos têm a estrela de Belém a orientar os Reis Magos. Ali se colocam os mencionados três reis, Belchior, Gaspar e Baltazar, que chegam do Oriente para adorar o Menino Deus. Também de forma estilizada se veem os presentes dos três reis, representando o ouro, incenso e mirra, a realeza, a divindade e o sofrimento, respectivamente. Mas as figuras e cenas (laguinhos, morros, ruas, animais, pessoas) podem ser multiplicadas indefinidamente. O presépio animado de Cavalinho chegou a ter mais de sete mil figuras, quase quatro mil metros quadrados, foi visitado por milhões ao longo dos anos. Via de regra, montado no 1º domingo do Advento, é desmontado em 6 de janeiro. Tornou-se ocasião de reencontro das famílias, maravilhamento de crianças, recurso catequético. Muitos pais se aproveitam da ocasião e do maravilhamento para ensinar o catecismo aos filhos.

 

Vamos às origens do costume piedoso que marca o Ocidente. Foi montado (e criado) em 1223 pela primeira vez por são Francisco de Assis em uma gruta em Greccio, convidado pelo senhor da região para ali reviver o ambiente do nascimento de Cristo em Belém. Seu amigo Giovani preparou o local conforme as instruções do santo. O pobrezinho de Assis celebrou o Natal entre o boi e o jumento para destacar a simplicidade do local escolhido por Jesus para nascer. Reviveu o ambiente.

 

Por momentos retiremos o olhar do presépio e o fixemos na origem. Fosse outro o criador do presépio, teria ele tido essa ressonância universal? Sei não, pode até ser que sim. Sei outra coisa, a enorme capacidade de irradiação de tudo o que são Francisco tocava. Por quê?

 

Filho de um simples comerciante, moço mundano, abandonou tudo para servir aos pobres, em especial os mais pobres entre os pobres, os leprosos, modo em que melhor amava a Deus. Aos poucos, por disposição providencial, como um novo rei Midas das vias da graça, tudo o que tocou virou ouro sobrenatural, fontes da salvação. Revivia, restaurava, animava.

 

Nada parecia lhe destinar tal missão histórica; mais que simplesmente histórica de fato, ocupa lugar central na história da salvação, acontecimentos de raiz sobrenatural. Não teve estudos, quis vida apagada, morreu cedo, antes dos 45 anos (1181 ou 1182 — 3 de outubro de 1226). Giovanni di Pegro di Bernardone foi o nome secular de são Francisco. A origem do nome Francisco é incerta; era João. Para alguns, depois de uma viagem à França, onde o menino teria ficado encantado pela vida francesa, poesia, música, povo, o pai passou a chamá-lo Francesco (francês). Pouco importa, o certo é que ficou Francisco para os pósteros.

 

Foi monge doente, olhos e intestinos atingidos por enfermidade dolorosa, que lhe acometeu nos meses em que serviu como militar. Com efeito, em 1202 se alistou como soldado de Assis na guerra que a cidade empreendia contra a Perugia. Foi capturado, esteve preso por cerca de um ano. Ficou doente. A partir daí sempre teve problemas de visão e no aparelho digestivo. Em 1205 se alistou outra vez, agora no exército do Papa, cujas tropas lutavam contra Frederico II. As sequelas na saúde se agravaram e o acompanharam a vida inteira.

 

Deu início a uma espiritualidade que marcou não apenas a ordem que fundou, mas todo o mundo desde então. Amor à pobreza (casou-se com a “dama Pobreza”), despretensão exterior e interior, obediência, austeridade, pureza, dedicação aos pobres, pregação sobretudo pelo exemplo. E dava o bom exemplo no meio de ações infiéis, pagãs, zelo missionário imitado pelos seguidores até hoje. Emespecial, sua espiritualidade olhou de forma nova a natureza, se quisermos, a Criação, adorando a Deus pela sua contemplação, a animada e a inanimada, considerada parceira no louvor ao Criador. Irmão Sol, irmã Lua, irmã água:

 

Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas,

especialmente o senhor irmão Sol,

que clareia o dia e que, com a sua luz, nos ilumina.

E ele é belo e radiante, com grande esplendor:

de ti, Altíssimo, é a imagem.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e pelas Estrelas,

que no céu formaste, claras, preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento,

e pelo ar, e nuvens, e sereno e todo o tempo

em que dás às tuas criaturas o sustento.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Água.

que é tão útil e humilde, preciosa e casta.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo,

com o qual iluminas a noite,

E ele é belo e alegre, vigoroso e forte.

 

Continua. São Francisco é o iniciador da poesia vernacular italiana. Escreveu poesias em outros idiomas. Comentando o impacto de sua vida e personalidade, Jackson de Figueiredo observou: “Não há figura histórica em todo o Ocidente, que tenha conseguido interessar tanto a inteligência contemporânea, como a do criador dos frades menores”. Compara-o com são Domingos de Gusmão e pondera: “Mas são Domingos não fez o cântico do sol”. Na mesma direção, não são poucos os estudiosos que o consideram a maior figura do Cristianismo desde Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Por que tanta influência? Por que tanta irradiação? Estão ligadas de forma preponderante à vocação providencial, sem dúvida. Deus assim o quis. Mas a escolha providencial tem relação próxima com o exemplo de vida, despretensão, humildade, simplicidade, pureza, a espiritualidade franciscana cria uma atmosfera natalina que não se detém em dezembro; perpassa e perfuma o ano inteiro e todos os ambientes. Revive, restaura, anima.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

O cardeal Raymond Burke adverte contra o perigo chinês

 

O cardeal Raymond Burke adverte contra o perigo chinês

 

Péricles Capanema

 

O cardeal Raymond Burke em 12 de dezembro último fez importante sermão, com ampla repercussão, no santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, localizado em La Crosse, nos Estados Unidos. Das palavras do combativo cardeal, destaco o seguinte: “Para obter ganhos econômicos, nós, como nação, permitimos que nos tornássemos dependentes do Partido Comunista chinês, ideologia totalmente oposta aos fundamentos cristãos, sobre os quais as famílias e nossa nação permanecem seguros e prosperam. Falo dos Estados Unidos da América, mas é evidente que muitas outras nações passam por semelhante e alarmante crise”.

 

O Purpurado é claro, sem rebuços, os Estados Unidos tornaram-se dependentes do Partido Comunista Chinês. De outro modo, a política adotada em relação a Pequim, que vem de décadas ▬ começou publicamente com a viagem secreta (na ocasião) de Henry Kissinger a Pequim em 1971 ▬ lesou gravemente a independência e a soberania da nação líder do Ocidente.

 

Compete agora à administração Joe Biden enfrentar tal problema, o mais grave e sensível da política externa dos Estados Unidos. Analisando o grupo político que ascendeu ao poder em Washington, à vera gigantesca coligação com orientações e reivindicações díspares, o cardeal manifestou preocupações. Tal coligação, é o receio ▬ muito fundado ▬ de dom Edmond Burke, abriga em seu bojo doutrinas e posições, que o levam a temer entreguismos, traições, aplicação de programas que ameacem a posição dos Estados Unidos como nação livre de raízes cristãs.

 

De fato, na coligação do democrata Joe Biden há setores, cujo programa, se aplicado, trará demolição generalizada do que representam os Estados Unidos, pois uns ali são declaradamente socialistas, outros declaradamente libertários: “Aproximamo-nos de Nossa Senhora de Guadalupe no dia de sua festa com corações angustiados e perplexos. Nossa nação passa por uma crise que ameaça seu futuro como povo livre e democrático. A disseminação mundial do materialismo marxista já provocou destruição e morte na vida de muitos e o que ameaçou os fundamentos de nossa nação por décadas, agora parece tomar o poder de governo em nosso país”.

 

“Parece tomar o poder de governo em nosso país”, a advertência não poderia ser mais clara. E está se referindo ao materialismo marxista. Dois pontos merecem destaque nas palavras do cardeal norte-americano. O primeiro, a dependência dos Estados Unidos em relação à China comunista. Dependência que ele mostra como terrivelmente perigosa, mas lembra que outros países já a sofrem de maneira semelhante.

 

A ganância econômica cegou os dirigentes e a classe econômica diante do perigo que viria do inimigo que eles estavam ajudando a fortalecer. O Partido Comunista Chinês, que totalitariamente dirige a China, agora tem uma mão nos negócios dos Estados Unidos. Reitero, outras nações do mundo padecem do mesmo problema. E é preciso reagir, a demora tornará cada dia mais difícil a reação.

 

Dom Raymond Burke tem em vista a perseguição que os cristãos sofrem na China. Nem poderia ser diferente. Mira também, e de forma preponderante no caso, as ameaças internas e externas que sofrem os Estados Unidos, a nação sobre cujos ombros pesa hoje a vocação imposta pelas circunstâncias de defensora natural dos restos de civilização cristã no mundo inteiro. Enfim, escudo do Ocidente. Com sua tomada de posição ele defende a ordem temporal cristã, mais precisamente, o que dela remanesce no mundo. É atitude corajosa, imprescindível, digna de apoio e grande louvor.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Ano Novo na desorientação

 

Ano Novo na desorientação

 

Péricles Capanema

 

2021 está na esquina. Quantas diferenças em um ano! Sobre um ponto quero abaixo compartilhar reflexões. Continuo. Quase mais nada existe da generalizada atmosfera de superficial otimismo que perpassava dezembro de 2019. Em linhas muito gerais, a economia crescia, Trump tinha a reeleição provável, a via de novas conquistas parecia aberta para grande parte da população. O que gerava a sensação de segurança, de rumo e de perspectivas realizáveis, condições favoráveis ao equilíbrio emocional. Dava para caminhar.

 

De repente se fechou o carreiro ascensional, o mundo afundou, apareceram abismos antes encobertos pelo otimismo generalizado. Já em fevereiro a pandemia do COVID-19 veio forte, logo depois as cidades foram fechadas e as ruas ficaram desertas. Empresas faliram explodiu o desemprego, milhões e milhões despencaram na pobreza. Os governos abriram as burras para auxílios emergenciais e o déficit fiscal disparou. De outro lado, a pandemia provocou intensas disputas entre grupos políticos, o choque das opiniões esgarçou ainda mais a sociedade. A recuperação, se vier, será difícil. E não deveria ser apenas econômica. Comentarei abaixo a respeito.

 

Joe Biden ganhou nos Estados Unidos à frente de coligação que inclui correntes radicalizadas, socialistas e libertárias. Ele terá que satisfazê-las (e já as está contemplando na alta administração) ao cumprir compromissos assumidos na campanha. O que virá dali? É ponto que exige atenção e preocupa. Observei, a recuperação econômica, se vier, será difícil. Como todo sabem, suporá a aplicação generalizada das vacinas, fazendo realidade a imunidade de rebanho. Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, advertiu, os investimentos em vacinas contra a COVID-19 são muito mais baratos que as aplicações em auxílios emergenciais. Deseja aplicações maiores e urgentes. É preocupação do mercado, lembrou ainda: “Há uma disputa por vacinas. Quem terá a vacina primeiro e como a logística será feita muda todos os dias. Estamos concentrados nas vacinas e o mercado também”. Na mesma direção, advertiu Marcelo Pacheco, secretário executivo do ministério da Fazenda: “Com a vacina a população vai se sentir mais segura e, com isso, a economia vai se recuperar. Temos feito de tudo para prover os recursos necessários para a vacinação”.

 

População protegida, disseminação controlada, é o objetivo. Canadá, Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra já estão vendo luz na boca do túnel. Outros países vão no mesmo rumo. Nós também, só que com passos lerdos. Ainda preparamos a caminhada; brigas, desleixo, obsessões, cegueira, incompetência, impediram-nos de atender populações expostas, como, por exemplo, agora o fazem Estados Unidos, Inglaterra e tantos outros. Quanto tal fato se dará no Brasil? Ninguém sabe ao certo; é triste, chapinamos no pântano dos palpites.

 

Com a vacinação generalizada, teremos o fim do distanciamento social, de momento obrigatório. Haverá aproximação das pessoas, conversas sem máscara, abraços, carinhos. (e reaproximação) Caminharemos para a normalidade, chamada por muitos de nova normalidade, pelo que ainda contém de misterioso. Duas características que provavelmente permanecerão: o “home office” e o aumento dos pagamentos e compras pela rede. Não tratarei aqui de modificações psicológicas, morais, políticas, tema muito vasto.

 

Falei de equilíbrio emocional, sensação de segurança, sensação de rumo, perspectivas realizáveis. Acabaram, veio a desorientação. E há motivos. Será dura a recuperação, tempos difíceis pela frente, o déficit fiscal vai pesar por anos. Empregos melhores e rendas em aumento, se vierem, chegarão em conta-gotas. Medidas que poderiam ajudar a retomada do crescimento, com o consequente alívio em especial para os mais pobres, comportariam enérgico programa de privatizações, diminuição do tamanho do Estado, cancelar programas malucos como a reforma agrária. Mas temos tumores de estimação no corpo social, parece que não podem ser tocados. E aqui se unem gente de todas as correntes, congregadas pelo objetivo de preservar dentro do corpo social os tumores de estimação. As advertências melancólicas do dr. Salim Mattar são apenas um sintoma, significativo embora, de tal realidade desoladora.

 

Agora, o ponto que pretendo destacar, tem relação com o equilíbrio emocional. Seria trágico repetirmos o que aconteceu nos anos 20, “les années folles”, os anos loucos O povo, cansado da guerra, cansado da gripe espanhola, jogou pela janela o sofrimento, não fez dele pedestal para a formação do caráter e raiz de vida temperante; e lançou-se na folia, quis esquecer tudo o que havia passado.  Poucos anos depois o sofrimento e as privações voltaram multiplicadas, era a 2ª Guerra Mundial. Não lancemos nós agora o sofrimento pela janela. Não passou ainda, pode demorar algum tanto a volta à normalidade e 2021 começa com a sensação de falta de rumos. Desorientação. Um ponto deveria estar sendo cogitado, não desperdiçar o confinamento, o sofrimento e as privações, fazendo desse depósito pedestal para a formação do caráter. Nutrimento da temperança. Já será grande coisa. Que Deus nos ajude. Bom Ano Novo a todos.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Legitimidade

 

Legitimidade

 

Péricles Capanema

 

Assisti ao vídeo do XXX Encontro Monárquico Nacional ▬ encontro virtual, online, imposto pelas presentes circunstâncias. Foi postado no YouTube. Embora mais viva e calorosa a realização presencial, houve no recurso escolhido certa compensação pela apresentação bem cuidada e bonita do empreendimento monarquista. Ali se trataram temas de relevo, houve informações que é preciso conhecer, tanta coisa que poderia com proveito ser destacada e elogiada.

 

Não irei entrar pela divulgação das informações, propostas e esclarecimentos doutrinários; de qualquer modo, estão na rede. Se por aí enveredasse, estou certo, poderia ser útil a muitos. Contudo, tais objetivos desbordam os limites estreitos de um artigo. Escolhi então outra via, tentar descrever, precisando melhor, explicitar, o que fui sentindo, com intensidade crescente, ao longo do vídeo.  Não é o trajeto do evento, é a minha viagem mental à medida que observava seu desenrolar.

 

A simplicidade e despretensão perpassaram o evento. Digo mais, a modéstia de meios, apresentada sem disfarces, causou efeito favorável. Pôs em evidência a seriedade da conduta, a veracidade das palavras, a clareza e segurança das posições. Não se buscou inflar realidades. E o que apresenta é inestimável: a legitimidade. Sem legitimidade, nada se faz de verdadeiramente proveitoso. E foi o que senti do começo ao fim, era a legitimidade em movimento. Uma bênção, chuva em terra sáfara.

 

Havia nela clara nota de continuidade. As exposições, abertas por dona Maria Gabriela, salientaram-na. A princesa, em rápidos traços, recordou três ascendentes, inspiração de vida: a imperatriz Leopoldina, a imperatriz Teresa Cristina, “mãe de todos os brasileiros”, a princesa Isabel. Maneira simpática e pedagógica de iniciar a caminhada. Balizou.

 

Outra continuidade. O Segundo Império, se quisermos, o período monárquico, recordado em algumas de suas características exemplares, e aí colocado como ponto de partida de onde, com adaptações e aperfeiçoamentos, se poderia avançar.

 

A continuidade fulgurava em especial com três tonalidades: familiar, respeitosa e doméstica. Dom Rafael, irmão de dona Maria Gabriela, falou do bisavô, o Príncipe Dom Luís, “o Príncipe Perfeito”, visto por ele como modelo de fidalgo, de batalhador, de seu amor pelo Brasil. Para dom Rafael, o ancestral ilustre, a tantos títulos, é inspirador de conduta, formador de mentalidade, pregoeiro de objetivos. O pai de dom Rafael, dom Antônio, piedoso e grave, tratou das características por ele desejadas em eventual restauração monárquica. E que podem se resumir em uma expressão, ele almeja a ordem temporal cristã. Tratou com desassombro de um tema, antes tido até como anacrônico, mas que vem ganhando crescente atualidade, o Direito Natural. Outro ponto a salientar, reiterou a nota religiosa do encontro: obediência a princípios católicos, devoção a Nossa Senhora Aparecida.

 

Vida pública saudável tem como caldo de cultura atmosfera familiar calorosa, respeitosa e pujante de valores domésticos ▬ nasce dali. Como no encontro se manifestaram os temas da vida pública? Em certa medida estavam nas palavras de dom Antônio. Contudo, de forma muito especial, apareceram na intervenção do dr. Evaristo de Miranda, que discorreu sobre especialidade sua, a agricultura. Houve na intervenção acento de modernidade salutar, empreendedora, ciência e experiência juntas, descreveu realidade pujante, dotada de vantagens comparativas extraordinárias em relação a outras nações. Estadeou o douto pesquisador, uma vez mais, o comprometimento do movimento monárquico com o campo brasileiro, com um Brasil de confluência harmônica das várias atividades econômicas, mas que tenha base muito assentada na produção agropecuária, vocação natural da qual nunca deve fugir.

 

Outros falaram bem, mas o espaço pequeno impede alusões a eles. E, recordo, o objetivo não é o relato do fato, mas minha caminhada interior. Que terá sido parecida com a de vários que viram o vídeo.

 

Continuo no tema central por mim escolhido. Várias legitimidades confluíam no encontro. Pairava serena a legitimidade dinástica de dom Luiz. Existia mais. Tudo era perpassado pela legitimidade da ordem apregoada pelos palestrantes. Qualquer legitimidade deita raízes na legitimidade da ordem. Nenhuma pode admitir ruptura com tal legitimidade originária. Destroçados os laços com ela, caem como galhos sem vida, podres, todas as demais legitimidades. Em seus reflexos sociais, a legitimidade da ordem tem como base a sanidade e força da instituição familiar, das quais decorrem o respeito aos direitos existentes em todos os âmbitos sociais.

 

Chamava a atenção a ênfase em duas características históricas do Brasil, hoje bastante depreciadas, a bondade e a cordialidade. Foram postas em destaque; mais ainda, apresentadas como modeladoras da vida familiar e na raiz de realidades sociais. Pois delas decorrem logicamente o desvelo pelo próximo, a busca de uma organização social inclusiva, harmoniosa, respeitosa das benéficas diferenças nascidas, entre outras fontes, do mérito, da História, da continuidade familiar, da instrução e da idade. São vacinas eficazes contra retrocessos e preconceitos desagregadores.

 

É claro, em tal quadro, o golpe de 15 de novembro de 1889 ▬ de passagem embora e com espírito ordeiro ▬ foi considerado, e não podia deixar de sê-lo, como regressão, ruptura trágica com rumo de progresso contínuo, dotado de gigantesco potencial. Tolamente, em parte por mimetismos irrefletidos, tomamos o atalho do atraso.

 

No evento online, sob o alvor da legitimidade, que rutilava no fundo, foi posto óleo novo na candeia da restauração. A luz não bruxuleou, brilhou firme, ainda que seus raios tenham alcançado, de momento, proporções modestas. Não pode se apagar tal cintilação (vai depender dos assistentes), portadora de esperanças. O pavio aceso reflete bem a doutrina segura, as perspectivas esboçadas, bem como a vida admirável de seus representantes mais expressivos, cujo eco o Brasil do futuro recolherá.

 

Utopia? Utopia é palavra enganadora. Não era o caso. Havia outra coisa, um ânimo mobilizador, enfunado pelo sopro da legitimidade.

 

sábado, 12 de dezembro de 2020

Pústulas diletas

 

Pústulas diletas

 

Péricles Capanema

 

Escrevi alguns artigos sobre tumores de estimação, fixações obscurantistas de parte da opinião nacional, frutos de décadas de propaganda enganosa, que repercute nas instituições de ensino, imprensa, legislação e, consequentemente, nas políticas de Estado. Os temas enganosamente trabalhados viram xodós dos bem-pensantes, ícones do politicamente correto. Acabam como crenças enraizadas e muito generalizadas que dão origem a credulidades ▬ metástases que tomam o organismo. São tumores de estimação. Infeccionam tudo, a política, as normas vigentes, a economia. Em geral, feitas as contas, representam crueldade para todos, em especial sofrem os mais desassistidos. É o caso da reforma agrária, tumor de estimação, fator de pobreza e atraso. A embusteirice pelo estatismo é outra.

 

Desde os anos 50 a reforma agrária vem sendo alardeada como panaceia para os problemas do campo. Ao ser imposta, invariavelmente traz produtividade baixíssima, produção, quando há, pequena e instável, vira foco de roubalheira e trambiques, poço sem fundo onde se joga irresponsavelmente dinheiro público, bem como ocasião de brigas, ilegalidades e demagogia comunista. Em duas palavras, estimula a desordem no agro e agrava a pobreza. É só visitar os assentamentos [chamados por tantos e com razão de favelas rurais] Brasil afora. Há relatório do TCU a respeito, estudos sérios de especialistas, não vou aqui tratar deles.

 

Por que empreguei pústulas diletas? Arranjei outra expressão, foi só para não repetir tumores de estimação, usada anteriormente. Mas é a mesma coisa, são morbidezes que intoxicam a imprensa, o mundo político, a legislação. Ninguém mexe nelas, como incompreensivelmente alguns doentes não deixam ninguém tocar nas pústulas. Ficam lá, intactas, diletas, infeccionando o corpo inteiro, sinais precursores da morte.

 

Tudo isso vem a propósito de notícia recente, o governo Bolsonaro paralisou 413 processos de reforma agrária. A razão, explica em ofício Geraldo Melo Filho, presidente do INCRA, é a falta de recursos orçamentários, cada vez mais escassos. De outro modo, existindo dinheiro em caixa, voltariam as vistorias, o passo inicial; e continuaria a maluquice destruidora da implantação ampla da reforma agrária, com base na legislação vigente. Quase 900 mil quilômetros quadrados, mais que a área somada dos estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, mais do que utiliza o agronegócio para enriquecer o Brasil, já foram esperdiçados nesse disparate empobrecedor que não cessa nunca. E seus promotores querem mais, mais e mais.

 

“Nada aprenderam, nada esqueceram”, teria comentado Talleyrand a respeito da nobreza exilada que voltava à França com a derrota de Bonaparte e ascensão de Luís XVIII. Entre nós também a aplicação da reforma parece nada ter ensinado ▬ nada igualmente teriam ensinado os desastres de sua aplicação em outros países. Em mentes misteriosamente refratárias à realidade óbvia, continuam ativos os germes da propaganda enganosa, que nos intoxicam há quase um século. São pústulas deletérias sem dúvida, mas diletas.

 

A reação natural à paralisação dos tais 413 projetos seria de alívio ▬ hosana, pelo menos a destruição será menor. Geraldo Mello Filho, e aqui ele ecoa opinião difundida em meios oficiais e de divulgação, julgou necessária uma segunda justificativa, como se a primeira ▬ a falta de recursos ▬ que soou como desculpa, não fosse suficiente: “Isso não significa que toda e qualquer vistoria será proibida. Em casos devidamente justificados, fundamentando o caso concreto pela necessidade de interesse público e social, as vistorias seriam autorizadas pela administração central”. Triste; a observação da realidade dantesca da reforma agrária é míope e desfocada; assim dos fatos embaçados e romantizados não nasce o juízo objetivo. Ele brota de opiniões impostas, crenças quase inamovíveis. Curto, em ambiente opressivo, escutamos o recitar monótono de mantras e slogans; são preconceitos que alimentam retrocessos.

 

Também um órgão de expressão, o CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos), ligado ao Ministério da Mulher, está querendo saber por qual motivo a reforma agrária está parada. Onde já se viu? Parada? Horror. À vera, os direitos humanos ficariam bem mais protegidos se tal parada se prolongasse indefinidamente. Em poucos lugares do Brasil se agridem mais os direitos humanos que nos assentamentos e seu entorno. Perguntem aos infelizes vizinhos deles.

 

De passagem sustento o óbvio ululante. O lógico e benéfico ao bem comum seria acabar com a reforma agrária assentada na legislação vigente. E ajudar de outra maneira, então efetiva, quem precisar: o Brasil tem muita terra pública, que seja entregue com critério a particulares que queiram e possam trabalhá-la.

 

Volto ao assunto. É claro, diante de tal situação, não poderia faltar a moxinifada dos partidos de esquerda e de organizações a eles ligadas. Eriçaram-se. A CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e a CONTRAF (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar) propuseram no STF uma ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental). O governo, ao não levar adiante a reforma agrária, estaria descumprindo preceitos constitucionais fundamentais. A ADPF vem com pedido de liminar: anulação do memorando que determina a interrupção do processo de reforma agrária no Brasil. Que se arranje o dinheiro não importa onde, a reforma agrária precisa ser executada sem parar. A ADPF é copatrocinada pelo PT, PSOL, PC do B, PSB e Rede Sustentabilidade.

 

Não sei que efeito prático terá a tal ADPF. A propósito, tenho repetido a necessidade de reforma ▬ limpeza de entulho ▬ da legislação constitucional e infraconstitucional, envenenada durante décadas por mentalidade totalitária, intervencionista e coletivista. Salvador Allende implantou enérgico programa de comunistização do Chile sem recorrer a legislação nova. Com base em legislação de governos burgueses, “los resquicios legales”, pôde impor sua pauta.

 

No Brasil, nesse particular, nada mudou nesses dois anos de governo. Infelizmente, não acho que vai mudar proximamente. Os setores dirigentes estão com a cabeça posta, via de regra, em outros problemas. E assim é previsível, continuará intacta a legislação constitucional e infraconstitucional que pode levar o Brasil, sob governo de orientação diferente da atual, a viver situação parecida à da Venezuela. Onde está a cabeça? Por exemplo, temos o espírito tomado pelos despautérios escritos no whatsApp pelo demitido ministro do Turismo que insultou o colega: “Ministro Ramos, o Sr é exemplo de tudo que não quero me tornar na vida, quero chegar ao fim da minha jornada EXATAMENTE como meus pais me ensinaram, LEAL aos meus companheiros e não um traíra como o senhor”. Ou pela formação de grupos para disputar a presidência da Câmara. Ou do Senado. Etcétera, problemas emocionantes, superficiais e efêmeros não faltam. O problema que tenho levantado não desperta emoções, não é superficial, não é efêmero. Demanda solução longa e difícil. Contudo, é fundamental caminhar na direção da solução inteira. Resolvido, equiparia o Brasil, por décadas, de condições muito favoráveis ao crescimento na liberdade.

 

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Lista de Natal

 

Lista de Natal

 

Péricles Capanema

 

A COVID-19 vai prejudicar dos mais simpáticos costumes das festas natalinas. Em geral a mãe de família faz uma relação de pessoas próximas a quem os seus querem regalar, compra os brindes, distribuídos, por vezes, no fim da ceia de Natal. Distensão, alegria de estar juntos, afeto mútuo. Este ano, pandemia ainda ativa, tudo vai ser diferente, os médicos aconselham evitar aglomerações, a ida a locais de muita gente, reunião com numerosas pessoas em casa.

 

Alimentar reflexões. Pensando nessas listas e na atmosfera de afeto que as origina, imaginei fazer a minha, mas não sobre amigos a presentear. Nela também estaria presente o afeto, expresso pela preocupação da advertência contra armadilhas ocultas nas esquinas do amanhã. Versaria sobre questões momentosas, analisadas em especial sob aspectos dos quais pouco ou nada se ouve falar. Seria modo de estimular reflexões dos leitores, maneira modesta de presentear, nenhuma outra está a meu alcance. Talvez algum dia a publique. Abaixo, um item de minha pequena lista, exposto de forma resumida.

 

O primeiro e principal assunto do rol, em certa medida obrigatório, são as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Mais propriamente, como já estão no passado, com exceção da próxima disputa de duas cadeiras do Senado no Estado da Geórgia, o que delas esperar? Joe Biden caminha para tomar posse em 20 de janeiro e nada parece indicar que Donald Trump interromperá sua série (para muitos já irritante) de medidas legais e de manifestações públicas alegando fraudes maciças na contagem dos votos; toda esta movimentação dirigida por Donald Trump é supostamente destinada a permanecer no cargo que ocupa há quatro anos. Vejamos.

 

“Four more years”. A transição entre os dois governos vem sendo traumática, pressagia tumultuada administração futura, comentarei abaixo sobre este ponto. As mencionadas medidas para anular parte ou o total do processo eleitoral teriam mesmo o fim de garantir a permanência de Trump na Presidência? Convém notar, Trump é político experimentado, seus assessores não são sonhadores. Desde o início da proclamação dos (projetados) resultados no Colégio Eleitoral pelas principais redes de televisão, a bem dizer todos os observadores percebiam que Trump já não estaria na Casa Branca em fins de janeiro. Só o magnata novaiorquino não percebia? Se o antigo showman da televisão não tem esperança séria de virar o jogo, o que visa ele então? Entramos na areia movediça das conjeturas. Um primeiro ponto, a atitude desafiante e belicosa desperta simpatias em largas faixas de sua base de apoio; consolida a liderança. E então, é plausível, ele vai continuar neste rumo ▬ a primeira preocupação de qualquer político é não perder apoio entre os seus. Está jogando para a plateia, dir-se-ia em linguagem informal. Mas cria um ambiente de babel, prenunciando mudança profunda, que pode ser duradoura, na vida pública dos Estados Unidos. Que efeitos de longo prazo tais atitudes produzirão na mente de largas faixas do público norte-americano? É tema ao qual também aludirei abaixo, ainda que de forma muito rápida.

 

Volto à situação presente. Com sua conduta, Trump já se coloca como o principal competidor na disputa pela vaga republicana nas eleições de 2024. Muita água vai passar ainda debaixo da ponte, pode levá-lo de cambulhada, mas hoje ele está na dianteira. O “four more years”, gritado obsessivamente em seus comícios, tanto vale para as reivindicações de agora, quanto para 2024. No mesmo trilho, as contribuições arrecadadas para financiar o esforço legal, por disposições das cláusulas contratuais da associação criada para tal, podem ser utilizadas futuramente na campanha para a indicação da vaga republicana em 2024. No momento em que escrevo, mais de 200 milhões de dólares já foram coletados, boa soma para se manter em evidência por muito tempo.

 

Dois senadores determinarão o rumo do Senado. Finalmente, é imprescindível lembrar, a grande preocupação dos líderes republicanos está na Geórgia. O Partido Republicano já tem 50 senadores. Se conseguir pelo menos uma vaga das duas ali disputadas em 5 de janeiro, irá para 51 senadores, fará a maioria numa casa de 100 representantes. E terá condições de brecar muitas das iniciativas do governo Biden. Se perder as duas vagas em disputa, haverá empate no Senado, 50 a 50, mas a vice-presidente Kamala Harris, por lei presidente do Senado, desempataria as disputas em favor dos democratas. E destravaria a pauta legislativa do governo Biden, promovendo a aprovação das leis consideradas perniciosas pelos republicanos. Assim, até 5 de janeiro, o que o Partido Republicano fizer, dificilmente não terá como prioridade estimular o eleitor republicano da Geórgia a ir votar e fazer campanha pelos dois candidatos. E claro, as atitudes de Donald Trump devem ser consideradas muito particularmente sob este prisma, motivar o eleitor republicano da Geórgia.

 

Desorientação e exasperação. Tudo o que se disse acima, de uma maneira ou de outra, tem sido veiculado pela imprensa. Ventilo agora o que não vi tratado na imprensa, o perigo do aprofundamento do caos mental. A forma caótica e atordoante instaurada na vida pública dos Estados Unidos, que pode continuar anos a fio, irrita, exaspera, estontece, desorienta. O que daí poderá vir? Um país rachado, desgastado por embates políticos confusos e contínuos, minado em suas energias vitais, esquecido de seus deveres primordiais. Em tal quadro dificilmente cumprirá sua função de líder natural do Ocidente. Talvez este seja o efeito mais maléfico de toda a crise presente. Tarefa urgente para o norte-americano patriota: trabalhar para dissipar a confusão e clarear a cena pública. Observemos. “Qui vivra, verra”. Terminou o esboço do primeiro assunto da minha lista de Natal.