Union
sacrée
contemporânea
Péricles Capanema
Desculpem-me o título na língua dos outros ▬ a
união sagrada, em português. Justifico-me, a expressividade tem seus direitos, a
elocução francesa aqui torna mais viva a realidade que tomou a França durante a
1ª Guerra Mundial em face das potências centrais, em especial da Alemanha. Proclamou-se
na ocasião a necessidade imperiosa de uma união sagrada, fundada na trégua
interna, que pudesse unir para defesa da pátria agredida todas as correntes de
relevância no país, até então em choque; republicanos, monarquistas, católicos,
ateus, livres-pensadores, socialistas, conservadores, tradicionalistas,
progressistas. A França polarizada daria lugar à França unida na defesa da
pátria atacada. Quem ficasse de fora da coligação de salvação nacional se
sentia mal; rejeitado socialmente, incompreendido mesmo dos seus, poderia até
acabar marcado com o labéu de covarde traidor ▬ um pária. Situações desse tipo acontecem,
não são raras.
Essa aconteceu assim. Em 3 de agosto de 1914,
a Alemanha declarou guerra à França, que penava a derrota humilhante de 1870, com
a consequente perda de importantes províncias. Vieram então as gerações
“revanchardes”, ansiosas por revanche e vingança. A declaração de guerra abria
possibilidade para o acerto de contas, em resumo, parecia, tinha chegado a
hora. Esperava-se guerra rápida, triunfo certo; veio guerra longa, sofrimentos
sem fim, triunfo pela mão dos Estados Unidos.
Um dia antes, 2 de agosto, em ambiente de tensão
altíssima entre os dois países, o estado de sítio já havia sido declarado na
França, com convocação do Parlamento para o dia 4. Em 4 de agosto, René Viviani,
presidente do Conselho de Ministros, leu no Parlamento mensagem de Raymond
Poincaré, presidente da França: “Na guerra que começa, a França terá a seu lado
o direito, do qual os povos, assim como os indivíduos, não podem desconhecer
impunemente o eterno poder moral. Ela será heroicamente defendida por todos os
seus filhos, nada quebrará sua união sagrada; estão hoje fraternalmente
congregados em uma mesma indignação contra o agressor e em uma mesma fé
patriótica”.
Nada quebrará sua união sagrada; aqui nasceu
para a política francesa a expressão “união sagrada”; durou anos, deixou marcas
profundas na vida de cada francês. O ardor da fé patriótica arredondou arestas
anteriores, a aproximação soldou diferenças dos franceses de todas as
tendências. O mais visível símbolo de tal coligação foi a chefia do exército confiada
ao marechal Ferdinand Foch, católico conhecido, e a chefia do governo nas mãos
de Georges Clemenceau, anticlerical, livre-pensador, com raízes na esquerda. Já
em 2 de agosto de 1914 o ministro do Interior mandou suspender a execução de
decretos que atingiam a Igreja Católica. Em outubro de 1915, Aristide Briand
colocou no governo Denys Cochin, católico, encerrando longo período de
hostilidade da república em relação à Igreja, iniciado em 1877.
Essa mesma política, intitulada na França de
“union sacrée”, com base no patriotismo e na defesa da pátria, foi adotada pela
Alemanha (Burgfrieden), Bélgica, Rússia, entre outros. Mas não tiveram a
repercussão e a carga simbólica da “union sacrée” francesa.
Com o triunfo da revolução bolchevista (novembro
de 1917) e o fim da Guerra, os partidos de esquerda, já em parte reticentes em
relação a ela, denunciaram-na por inteiro e o quadro político voltou a ser
tenso e conflitivo. Os anos 20 assistiriam ao fortalecimento dos partidos de
esquerda, que suscitaram violentas reações, capitaneadas em geral pelo nazismo
e fascismo, ou organizações assemelhadas. Tais movimentos atraíram e desviaram
enormes contingentes católicos. Sem contar aqui a desorganização e morticínios
causados pelos quatro anos de guerra.
Em resumo, ponto que ninguém ou quase ninguém
ressalta, porém dever do analista católico salientá-lo, enorme tragédia se
abateu sobre grandes possibilidades de evangelização e restauração social: não
amadureceram de forma saudável em milhões de jovens os frutos de salvação que,
antes da Guerra, prenunciavam colheita de decisiva importância para a Europa ▬
e o mundo. Para tal contribuíram a ingenuidade, a superficialidade, a
precipitação, bem como a má direção, tanto no âmbito eclesiástico, como no
temporal.
Por que em traços gerais lembro universo tão
vasto? Por necessidade, pela enorme atualidade potencial. “Historia lux
veritatis, vita memoriae, magistra vitae.”
Corta. Passo a relatar fato de hoje, distante
mais de século dos anos da “union sacrée´´. O caso do COVID-19 explodiu em
Wuhan, na China. Um ano depois, “Época” entrevistou um paulistano que lá vive,
Kenviti Shindo, 27 anos, estudante de mestrado. A vida em Wuhan é de quase
normalidade: “Aqui está praticamente normal, usamos máscara quando entramos em
locais fechados, como bares, restaurantes ou shopping centers. Claro que existe
uma preocupação de que o vírus volte, mas tudo já funciona como antes",
observa Shindo. Não há registros de casos novos na província de Hubei, da qual
Wuhan é a capital. Em outubro, a província atraiu 52 milhões de turistas entre
os dias 1 e 7, Semana Dourada, época festiva. Em contraste lúgubre, o Ocidente
ainda se debate com o vírus. O Brasil, nem falar. Não dá inveja? Dá. Quem tem inveja
procura imitar.
Corta de novo, terceira matéria em texto
reduzido. Em 2018 escrevi um livrinho “Brigo pelos homens atrofiados” sob o
pseudônimo de Zeca Patafufo. Um dos personagens do conto, Adamastor Ferrão
Bravo, sabido e bom observador, fez advertência que agora ficou candente. Vale
apena ouvir Ferrão Bravo:
“— O cenário brilhante fica no Oriente. Na
paradeira de atores estafados, a China e outros poucos países asiáticos
disparam para tomar a boca do palco.
— Vai impingir seus intentos?
— Para lá somos arrastados. [Observou
Ferrão Bravo]. Não demora, o provável, assistiremos a multidões babando de
admiração pelo país que se deu bem e aí bamboleando atrás e remedando. Tem
aquele tanto de sortilégio, acho. A França, quando primeira no mundo, foi trend-setter.
Os Estados Unidos, passante de cem anos, ditam moda. São povos constituintes.
Ainda vai escutar um bucado de mães falando: — Aula de inglês? Não é tanta
prioridade, quente agora é o menino igual aprender o mandarim.
— Os Estados Unidos vão continuar na testa,
está no DNA deles, seu Adamastor. Lá o pelotão da frente não brinca em serviço.
— É conforme, deix’eutifalá, têm energia para
manter a mão na rédea. O século 20 foi o século americano-do-norte; o século 21
vai ser também, depende de os gringos quererem.
— A China periga dar certo? — o Cisco,
espantado.
— No mundo da lua, vão agigantar tudo pela
propaganda. Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais
do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas
reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imantada,
veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente
modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin,
besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis;
décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista;
via nos intentos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza
apavorante, a construção da utopia socialista dos ‘amanhãs que cantam’; para
tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores.
— Tem exorcismo contra tais modismos?
— Conheço um, destrinchar e divulgar preto no
branco essas alquimias de fundo totalitário. Cadê o esforço intelectual e a
valentia?
— Entendi, o enfeitiçamento bafeja situações
ditatoriais.”
Flui o conto, Adamastor Ferrão Bravo ali continua
com braveza aferroando, mas paro por aqui. Chamei a atenção de tal realidade para
quê? Para a possibilidade de manobra de soft power. No combate ao vírus,
a China sai na frente, elimina o problema, resolve. Cara da moeda. Na coroa, chapina
o resto do mundo; mortes, fechamentos, abatimentos, desorientação. O mundo vai
preferir cara ou coroa? “Multidões
babando de admiração e remedando”. E então poderia acontecer uma nova e
adaptada “union sacrée” em nossos dias, voltada contra a pandemia, no
desenrolar da qual a China despertaria admiração, atrairia simpatias e abateria
barreiras, isolaria opositores. Lucro evidente para os desígnios totalitários e
imperialistas do Partido Comunista Chinês. Olho vivo, moreno, seguro morreu de
velho, desconfiado ainda vive.
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