Orfandade
Péricles Capanema
Fiquei órfão de pai aos cinco anos.
Esconderam-se a perda, era natural não me quisessem ciente, evitavam sofrimentos
de um toquinho despreparado para o choque. Estava viajando, voltaria logo,
menino acredita em tudo. Um primo, seis meses mais novo, revelou-me a verdade no
meio da rua. Ele nunca se deu conta que dele veio a revelação atroz. Até hoje
tenho nítida a cena, navalha na carne, das dilacerações mais traumáticas da
vida. Contudo vou tratar hoje de outra orfandade, também dilacerante e trágica,
não a de um menino desconhecido do interior mineiro, afeta multidões mundo
afora.
Fernando Haddad, calculista como todo
político de muita estrada, vem se posicionando como intelectual com tintas de moderação,
procura atrair a atenção no palco por desvestir em ocasiões escolhidas a capa
do PT e enfiar no lugar a toga do professor; sob aspectos um Fernando Henrique
uns 30 anos mais moço. O prócer petista falou sobre as últimas eleições e, no
meio de enxurrada de reflexões carregadas de segundas intenções, veio o que
ninguém ou quase ninguém quis dizer: “Houve um deslocamento do eleitorado para
direita e para a extrema direita”. Haddad também em tais declarações tinha
segundas intenções, mas não julgo o momento de destacá-las. Em política, nada é
ocioso.
Ele caminhou na contramão das opiniões em
geral divulgadas: “Houve um deslocamento do eleitorado para a direita e para a
extrema direita”. É natural, nada poderia irritar mais um político de esquerda.
E por isso procura macular tal migração. Não embarco aí, meu foco é outro.
Concordo com Fernando Haddad em um ponto. Apesar de todas as decepções, apesar
de todas as contrafações, apesar de todas e piores surpresas, o sentimento
conservador resiste. Permanece um substrato na opinião pública que recusa a
desordem, antipatiza com a desonestidade, anseia por rumo estável de decência e
crescimento. É a parte que mais presta, de outro modo a parte mais saudável, a
“sanior pars”; e boa parte dela hoje está órfã. Não tem em quem confiar, nem vê
perspectivas no horizonte. Provavelmente continuará órfã, é longo e difícil
trabalho resgatá-la da orfandade; ou, pior, temo muito, a experiência anterior
me deixa escaldado, embarque em algum momento em alguma nova aventura destrutiva,
engolindo utopias, que intoxicarão esperanças sadias.
Curto, os órfãos (órfãos políticos, fique
claro) do Brasil, assim como os órfãos da Argentina, os órfãos dos Estados
Unidos, os órfãos mundo afora, em geral sentem faltam de ideal sistematizado e
alcançável; e em decorrência de tal ausência, de um programa e de um caminho. Em
duas palavras, não está claro o ponto de chegada; digo logo, deveria ser a
ordem temporal cristã. E não enxergam quem a ele deverá conduzir.
E então, muitas vezes no passado, na correria
irrefletida e atabalhoada em busca da solução [espécie de pai mítico], agarraramm-se
a uma pessoa ou movimento que lhes parecia ter pelo menos um ponto favorável em
relação a todo o resto: com ele podia dar certo, podiam conseguir pelo menos
parte do que almejavam. A aparente eficácia encobria em geral defeitos que
depois se revelariam, acabariam destruindo o personagem fictício, tornariam inviável
a obtenção das soluções esperadas e lançariam descrédito, desânimo e dúvidas
sobre o movimento.
Terrível e repetido desfecho, filme que se assiste
desde pelo menos o começo do século XIX. De passagem deixa ver a profundidade do
enraizamento conservador. Desde o século XIX? Sim, desde o começo. Pelo menos. Exemplo,
com Napoleão foi assim, talvez o maior exemplo. O vivido chefe militar aproveitou-se
do horror que a Revolução Francesa tinha provocado, o povo estava exausto de
sangue e anarquia. Puxou para si as simpatias de grande parte dos que queriam
reagir. O Corso era forte e próximo, Luís XVIII era distante e fraco; o Corso
não mostrava escrúpulos, prendia e arrebentava, Luís XVIII ainda tinha hábitos
da corte do “Ancien Régime”; o Corso sabia mandar, Luís XVIII parecia indeciso.
A comparação deprimente continuava sem fim. Em resumo, no jovem e enérgico
general se farejavam vitórias, Luís XVIII, liderança mofada, cheirava a naftalina.
O bonapartismo triunfante impôs sua concepção de ordem, estatizante e autoritária
rescendendo a solução genial. Por alguns anos fez delirar parte da França,
despertou admiradores no exterior, formou imitadores. Depois vieram as
decepções, a derrota, a humilhação da França invadida, a juventude sacrificada
nas batalhas, as famílias destroçadas. Luís XVIII assumiu, ainda arrumou um
pouco a casa. A transposição com adaptações para outros personagens ao longo da
história\ não será difícil.
Realço um dos motivos dessa anomalia mortal. Talvez
seja o verso mais famoso do “Cantar de Mio Cid”: “Dios, qué buen vassalo, si
oviesse buen señor”. O vassalo ansiava por bom senhor, via nele ocasião de
ótimos serviços e aperfeiçoamentos. Empurro de lado as disputas eruditas a
respeito e jogo para o primeiro plano a importância central do bom senhor naquela
canção de gesta. O anelo, o sonho, o sebastianismo “avant la lettre”, aqui e em
tantos outros lugares, evidenciam um lado louvável, a disposição da adesão fácil
e entusiasmada a uma liderança que leva a bom porto. De outro lado, no reverso
da medalha, muitas vezes tal postura esconde deficiências, entre os quais
desponta a preguiça demolidora de desconfiar das soluções fáceis e de olhar de
frente riscados nas testas de supostos salvadores os sintomas preocupantes, na
verdade claros sinais precursores de desastres futuros. É penoso sondar
autenticidade e rumo certo em chefes aclamados que irradiam atmosfera de
vitória.
Um rumo certo, um sintoma de autenticidade. Lembrei
acima, um teste do tornassol para reação conservadora salutar: a defesa da ordem
temporal cristã, fundada na família, no princípio de subsidiariedade, (entre
outras instituições e princípios); enfim, buscar a continuidade e
aperfeiçoamento do que a civilização cristã produziu no Ocidente. Na presente
quadra histórica, não vejo outro bom começo. Sem o trânsito por este vestíbulo,
repetiremos fracassos do passado, passando da ilusão para a orfandade, da orfandade
para a ilusão; serão descaminhos e derrotas. Pensemos todos nisso neste fim de
ano. Pelo menos para isso serviram as observações de Fernando Haddad: aviso e desabafo.
Feliz e Santo Natal, bom ano novo para todos.
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