Pústulas diletas
Péricles Capanema
Escrevi alguns artigos sobre tumores de
estimação, fixações obscurantistas de parte da opinião nacional, frutos de
décadas de propaganda enganosa, que repercute nas instituições de ensino, imprensa,
legislação e, consequentemente, nas políticas de Estado. Os temas enganosamente
trabalhados viram xodós dos bem-pensantes, ícones do politicamente correto. Acabam
como crenças enraizadas e muito generalizadas que dão origem a credulidades ▬
metástases que tomam o organismo. São tumores de estimação. Infeccionam tudo, a
política, as normas vigentes, a economia. Em geral, feitas as contas,
representam crueldade para todos, em especial sofrem os mais desassistidos. É o
caso da reforma agrária, tumor de estimação, fator de pobreza e atraso. A
embusteirice pelo estatismo é outra.
Desde os anos 50 a reforma agrária vem sendo alardeada
como panaceia para os problemas do campo. Ao ser imposta, invariavelmente traz
produtividade baixíssima, produção, quando há, pequena e instável, vira foco de
roubalheira e trambiques, poço sem fundo onde se joga irresponsavelmente dinheiro
público, bem como ocasião de brigas, ilegalidades e demagogia comunista. Em duas
palavras, estimula a desordem no agro e agrava a pobreza. É só visitar os assentamentos
[chamados por tantos e com razão de favelas rurais] Brasil afora. Há relatório
do TCU a respeito, estudos sérios de especialistas, não vou aqui tratar deles.
Por que empreguei pústulas diletas? Arranjei
outra expressão, foi só para não repetir tumores de estimação, usada
anteriormente. Mas é a mesma coisa, são morbidezes que intoxicam a imprensa, o
mundo político, a legislação. Ninguém mexe nelas, como incompreensivelmente alguns
doentes não deixam ninguém tocar nas pústulas. Ficam lá, intactas, diletas, infeccionando
o corpo inteiro, sinais precursores da morte.
Tudo isso vem a propósito de notícia recente,
o governo Bolsonaro paralisou 413 processos de reforma agrária. A razão, explica
em ofício Geraldo Melo Filho, presidente do INCRA, é a falta de recursos
orçamentários, cada vez mais escassos. De outro modo, existindo dinheiro em
caixa, voltariam as vistorias, o passo inicial; e continuaria a maluquice
destruidora da implantação ampla da reforma agrária, com base na legislação
vigente. Quase 900 mil quilômetros quadrados, mais que a área somada dos
estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, mais do que utiliza o agronegócio
para enriquecer o Brasil, já foram esperdiçados nesse disparate empobrecedor
que não cessa nunca. E seus promotores querem mais, mais e mais.
“Nada aprenderam, nada esqueceram”, teria
comentado Talleyrand a respeito da nobreza exilada que voltava à França com a derrota
de Bonaparte e ascensão de Luís XVIII. Entre nós também a aplicação da reforma parece
nada ter ensinado ▬ nada igualmente teriam ensinado os desastres de sua
aplicação em outros países. Em mentes misteriosamente refratárias à realidade
óbvia, continuam ativos os germes da propaganda enganosa, que nos intoxicam há
quase um século. São pústulas deletérias sem dúvida, mas diletas.
A reação natural à paralisação dos tais 413
projetos seria de alívio ▬ hosana, pelo menos a destruição será menor. Geraldo
Mello Filho, e aqui ele ecoa opinião difundida em meios oficiais e de
divulgação, julgou necessária uma segunda justificativa, como se a primeira ▬ a
falta de recursos ▬ que soou como desculpa, não fosse suficiente: “Isso não
significa que toda e qualquer vistoria será proibida. Em casos devidamente
justificados, fundamentando o caso concreto pela necessidade de interesse
público e social, as vistorias seriam autorizadas pela administração central”.
Triste; a observação da realidade dantesca da reforma agrária é míope e
desfocada; assim dos fatos embaçados e romantizados não nasce o juízo objetivo.
Ele brota de opiniões impostas, crenças quase inamovíveis. Curto, em ambiente opressivo,
escutamos o recitar monótono de mantras e slogans; são preconceitos que alimentam
retrocessos.
Também um órgão de expressão, o CNDH
(Conselho Nacional dos Direitos Humanos), ligado ao Ministério da Mulher, está
querendo saber por qual motivo a reforma agrária está parada. Onde já se viu?
Parada? Horror. À vera, os direitos humanos ficariam bem mais protegidos se tal
parada se prolongasse indefinidamente. Em poucos lugares do Brasil se agridem
mais os direitos humanos que nos assentamentos e seu entorno. Perguntem aos
infelizes vizinhos deles.
De passagem sustento o óbvio ululante. O
lógico e benéfico ao bem comum seria acabar com a reforma agrária assentada na
legislação vigente. E ajudar de outra maneira, então efetiva, quem precisar: o Brasil
tem muita terra pública, que seja entregue com critério a particulares que
queiram e possam trabalhá-la.
Volto ao assunto. É claro, diante de tal
situação, não poderia faltar a moxinifada dos partidos de esquerda e de
organizações a eles ligadas. Eriçaram-se. A CONTAG (Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura) e a CONTRAF (Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura Familiar) propuseram no STF uma ADPF (arguição de
descumprimento de preceito fundamental). O governo, ao não levar adiante a
reforma agrária, estaria descumprindo preceitos constitucionais fundamentais. A
ADPF vem com pedido de liminar: anulação do memorando que determina a
interrupção do processo de reforma agrária no Brasil. Que se arranje o dinheiro
não importa onde, a reforma agrária precisa ser executada sem parar. A ADPF é
copatrocinada pelo PT, PSOL, PC do B, PSB e Rede Sustentabilidade.
Não sei que efeito prático terá a tal ADPF. A
propósito, tenho repetido a necessidade de reforma ▬ limpeza de entulho ▬ da
legislação constitucional e infraconstitucional, envenenada durante décadas por
mentalidade totalitária, intervencionista e coletivista. Salvador Allende implantou
enérgico programa de comunistização do Chile sem recorrer a legislação nova.
Com base em legislação de governos burgueses, “los resquicios legales”, pôde
impor sua pauta.
No Brasil, nesse particular, nada mudou nesses
dois anos de governo. Infelizmente, não acho que vai mudar proximamente. Os
setores dirigentes estão com a cabeça posta, via de regra, em outros problemas.
E assim é previsível, continuará intacta a legislação constitucional e
infraconstitucional que pode levar o Brasil, sob governo de orientação
diferente da atual, a viver situação parecida à da Venezuela. Onde está a cabeça?
Por exemplo, temos o espírito tomado pelos despautérios escritos no whatsApp
pelo demitido ministro do Turismo que insultou o colega: “Ministro Ramos, o
Sr é exemplo de tudo que não quero me tornar na vida, quero chegar ao fim da
minha jornada EXATAMENTE como meus pais me ensinaram, LEAL aos meus
companheiros e não um traíra como o senhor”. Ou pela formação de grupos para
disputar a presidência da Câmara. Ou do Senado. Etcétera, problemas emocionantes,
superficiais e efêmeros não faltam. O problema que tenho levantado não desperta
emoções, não é superficial, não é efêmero. Demanda solução longa e difícil.
Contudo, é fundamental caminhar na direção da solução inteira. Resolvido,
equiparia o Brasil, por décadas, de condições muito favoráveis ao crescimento
na liberdade.
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