sexta-feira, 27 de abril de 2018

Yalta 2 no horizonte?



Péricles Capanema

No balneário de Yalta, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, como vencedores da Alemanha nazista, reuniram-se Franklin Delano Roosevelt (Estados Unidos), Winston S. Churchill (Grã-Bretanha) e Josef Stalin (União Soviética). Decidiriam o destino do mundo no pós-guerra. Em boa medida a ingenuidade de Roosevelt e a impotência de Churchill deixaram o caminho aberto para o triunfo de Stalin. Os acordos ali assinados (e o espírito dominante na reunião, de paz irênica) marcaram tragicamente o mundo até 1991, quando ruiu a União Soviética. Tipos de relações, zonas de influência, formas de colaboração, tudo foi lá tratado ou contaminado.

Complementando o combinado em Yalta, poucos meses depois se reuniram em Potsdam de 17 de julho a 2 de agosto de 1945, Harry Truman ▬ Roosevelt havia falecido ▬ (Estados Unidos), Winston Churchill e logo depois Clement Attlee (Grã-Bretanha) ▬ o antigo primeiro-ministro havia perdido as eleições gerais ▬ e Josef Stalin (União Soviética). A conferência de Yalta foi preparada pelo encontro de Teerã, entre 28 de novembro de 1º de dezembro de 1943. Stalin, como se sabe, não cumpriu a promessa de eleições democráticas na Europa Oriental, feita em Yalta, fraudou-as todas por vários meios, e colocou Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária sob o tacão russo. Além da Alemanha Oriental. Logo veio o período da Guerra Fria.

A conferência de Yalta nasceu de necessidade premente, assegurar a paz e a segurança, enfim a ordem internacional, depois de anos de guerra. Não foi pioneira. Logo após as guerras napoleônicas, a mesma necessidade provocou o Congresso de Viena entre maio de 1814 e junho de 1815. Ali Rússia, Prússia, Inglaterra, Áustria e França, sob a orientação muito geral de Metternich, “o cocheiro da Europa”, estabeleceram bases para paz e segurança duradoras no Velho Continente. Igual premência determinou o tratado de Versalhes, assinado em 28 de junho de 1919, que pôs fim à 1ª Guerra Mundial e estabeleceu fundamentos, infelizmente precários, para a estabilidade na Europa. Dele, quando o conheceu, afirmou presciente o marechal Ferdinand Foch, o grande vencedor militar da guerra: “Não é a paz, é armistício de vinte anos”.

Em 1991 a preeminência dos Estados Unidos era de tal monta que, naqueles anos, o historiador Francis Fukuyama julgou estável o triunfo da democracia liberal e do capitalismo. Com raiz em ditos de Hegel, ficou célebre sua afirmação de que assistíamos ao fim da História, pois, acreditava, começaria etapa da evolução desprovida de grandes choques.

Inexistindo choques, estavam afastadas as grandes guerras e a disputa por áreas de influência. Ficavam sem sentido iniciativas como as que determinaram os três acordos acima mencionados, destinados a harmonizar grandes atores internacionais. Só havia um grande ator: os Estados Unidos. O tempo passou, estamos a 27 anos de 1991. A Federação Russa se recompôs, a China se agigantou.

Não só os Estados Unidos é grande ator no momento. Temos de início um contraponto. Após o Brexit, a Europa tem dificuldades de se apresentar unida. Ângela Merkel, até pouco a voz que falava pelo Velho Continente; debilitou-se muito internamente. Emmanuel Macron tenta substitui-la, mas ainda não dispõe da estatura requerida. A Índia tem mediana expressão internacional. O mesmo se pode afirmar do Japão.

São só três os grandes atores no cenário internacional ▬ Estados Unidos, China, Federação Russa ▬, segundo documento oficial do governo dos Estados Unidos, divulgado em abril pelo Departamento de Defesa. Título: “Resumo da Estratégia Nacional de Defesa dos Estados Unidos da América”.

Afirma o texto que, após período de atrofia estratégica, os Estados Unidos se preparam ativamente para os próximos anos. Sua primeira preocupação não é mais o terrorismo: “A competição estratégica entre os Estados, e não o terrorismo, é agora a principal preocupação da segurança nacional dos Estados Unidos”.

Contra quem? Rússia e China. “A China é competidora estratégica que usa a economia de forma predatória para intimidar vizinhos, ao mesmo tempo que militariza a região do Mar do sul da China. A Rússia violou as fronteiras de nações a ela próximas e procura ter direito de veto nas decisões econômicas, diplomáticas e relativas à segurança de seus vizinhos. [...] Voltou a competição estratégica de longo prazo entre as nações. [...] A China e a Rússia, agindo dentro do sistema, estão agora minando a ordem internacional”.

Continua: “O fracasso na obtenção de nossos objetivos de defesa resultará na diminuição da influência global dos Estados Unidos. A erosão da coesão entre aliados e parceiros [esfarelamento] e queda no acesso a mercados favorecerá o declínio da prosperidade e do padrão de vida”.

As três conferências (ou quatro, ou cinco, tanto faz) aqui referidas aconteceram depois de guerras pavorosas, em clima de instabilidade e insegurança. Procuravam criar situações políticas e firmar princípios que garantiriam a ordem, a segurança e a paz entre as nações. Não estamos em fim de grandes guerras. Vivemos, porém, clima de instabilidade e insegurança crescentes. Ficou concebível, quase premente, um encontro entre os três atores para estabelecer critérios de convivência que garantam um mínimo de ordem, segurança e paz. De outro jeito, ficou natural uma Yalta 2. E o encontro hoje não precisa de balneários, nem de papel. Tudo pode ser decidido de onde estão os responsáveis, e fica valendo tacitamente. Como, parece, já está acontecendo na Síria. Seria até conveniente a discrição, evitaria susceptibilidades de potências não participantes.

Virá algo parecido a Yalta? Uma Yalta2? Não sei, não tenho bola de cristal. Digo apenas, estão postas as condições; e estas podem permanecer por anos. Contudo, a aceleração dos fatos pode vir num átimo. Até poucas semanas atrás alguém julgava provável um encontro próximo entre Donald Trump e Kim Jong-um? Está na bica. Entre Kim Jong-um e Moon Jae-in? Já aconteceu. Daí podem borbotar fatos gigantescos, bons, é verdade, mas, revirando, até mesmo apocalípticos.

Falei em fatos apocalípticos. Foram dantescas, para os países da Europa Oriental, as consequências de Yalta. Do mesmo modo, para nações da Ásia. Para ficar por aqui. O encontro dos três grandes do mundo contemporâneo para alegadamente regulamentar a ordem internacional, pode trazer fatos bons, mas, em sentido contrário, catástrofes. Para a América Latina, para o Brasil, para cada um de nós.

A América Latina não está citada no diploma do governo norte-americano. E também nenhum país latino-americano. Nem a Venezuela, ameaça notória para a estabilidade da região. Constato com tristeza a omissão. Que seja motivos para enrijecer resistências saudáveis, que desviem de nossas cabeças desgraças parecidas às que despencaram sobre países da Europa Oriental, em decorrência das decisões de três políticos reunidos em 1945 em um balneário do Mar Negro.

Concluo. O desenrolar dos fatos dependerá de muitos fatores. Em particular da lucidez e vivacidade da opinião pública dos Estados Unidos, bem como de suas equipes dirigentes.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Surpresa na borrasca



Péricles Capanema

Em 17 de abril mediante documento intitulado “Mensagem da 26ª Assembleia Geral da CNBB ao povo brasileiro”, a entidade tomou posição sobre as próximas eleições. Durante a leitura tive uma surpresa e me veio à mente, nem sei por que, título de artigo do prof. Plinio Corrêa de Oliveira, publicado em “Catolicismo”, abril de 1964: “Pensando, criticando, matizando, e esperando na borrasca do século 20”. Sempre gostei da frase, reflete postura séria e proveitosa do espírito; diante de qualquer assunto, refletir, analisar, confrontar. E só então agir.

É o que pretendo fazer com o importante documento da entidade que congrega os bispos do Brasil. No geral, uma borrasca, mas há uma fresta de luz no meio. Verão abaixo o motivo da surpresa.

No seu primeiro ponto o documento episcopal traz forte condenação do aborto; de outra forma é advertência contra candidatos que o propugnem: “[Bispos católicos do Brasil] preocupados com a defesa integral da vida”. Não é novo, a CNBB sempre se manifestou louvavelmente contra o aborto provocado e demais medidas que são assassinas ou favorecem o assassinato.

O texto coloca ênfase na construção do bem comum. Cinco vezes ali aparece a expressão. Em si, normal, até imprescindível em documento dessa índole. Infelizmente, em muitas das posições abaixo analisadas, ele foi desconsiderado, para dizer o mínimo. Assim o definiu João XXIII na “Mater et Magistra”: “o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da personalidade”. Simples e denso.

O desenvolvimento inteiro da personalidade, objetivo do bem comum (e do Estado) se faz bafejando liberdades naturais cujo desabrocho enérgico é o único fator que pode efetivamente gerar uma sociedade protetora dos direitos humanos, dessa forma harmonicamente desigual. Se quisermos, proporcionadamente desigual. Neste contexto, o aumento das desigualdades em todos os âmbitos da vida é bem a ser desejado. E se torna claramente contrária ao bem comum a sociedade igualitária. Com harmonia, proporção, razoabilidade, quanto mais desiguais os homens, nos mais diferentes domínios, mais rica de valores e bens será a sociedade, e assim mais perfeitos e felizes seus componentes. A CNBB aqui, fiel a seu longo passado de subserviência ardente ao ideário petista, propugna como objetivo “a construção de um país justo, ético e igualitário”. Justo e ético, no caso quase uma redundância, está bem. Igualitário? Os bispos se esqueceram de nomear como objetivo ▬ num país outrora intitulado de Terra da Santa Cruz ▬, que seja verdadeiramente cristão, fiel às suas origens.

Ainda a deplorável contumácia na posição da companheira de viagem do petismo, cujos setores decisivos sempre foram furibundamente favoráveis ao aborto e a medidas contrárias à família, agora especialmente a ideologia de gênero: “A carência de políticas públicas consistentes no país está na raiz de graves questões sociais, como o aumento do desemprego e da violência”. Todos sabem, é o que afirma falaciosamente o PT e assemelhados. O aumento do desemprego tem raiz, mais proximamente, no intervencionismo estatal amalucado do governo Dilma Rousseff, que afundou o Brasil. Mais longinquamente, em boa medida na opressão coletivista que impede o desabrochar da liberdade natural de empreender, protegida pela garantia ao direito de propriedade e à livre iniciativa. Houvesse mais respeito ao princípio de subsidiariedade, menores seriam o desemprego e menos agressiva a violência.

Continua o documento na trilha esquerdista: “A perda de direitos e de conquistas sociais, resultado de uma economia que submete a política aos interesses do mercado, tem aumentado o número de pobres”. Nem vou comentar. Os Estados Unidos, despreocupados com as tais conquistas sociais, é o paraíso terreno sonhado pelos pobres de países, verdadeiros infernos sociais, lotados das tais conquistas, como Cuba, Venezuela, Nicarágua. É triste, mas a CNBB, queira ou não, trabalha para que o Brasil tenha destino semelhante a eles. De passagem, conquista social, expressão enganosa, virou mantra político. Serve para tudo, significa nada de sério.

Agora, a surpresa. Para as eleições, a CNBB defende fazer valer “a Lei 135/2010, conhecida como ‘Lei da Ficha Limpa’, que torna inelegível quem tenha sido condenado em decisão proferida por órgão colegiado”. Lula virou ficha-suja. A CNBB aqui advoga claramente medida que o coloca fora das próximas eleições. Sabia que estava fazendo uma trombada na agitação petista. Pelo histórico deprimente, sempre alinhada com as últimas demagogias esquerdistas, não era de esperar. Já é alguma coisa, um golinho d’água para quem está sedento.

Convém notar que a atitude acima vai na linha do que dias atrás mandou divulgar dom Odilo Scherer sobre a pantomina (oficialmente, ato ecumênico) pró-petista de dom Angélico Sândalo Bernardino em frente do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo: “Sobre o ato religioso realizado ontem na frente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, a assessoria de imprensa da Arquidiocese de São Paulo esclarece que: 1. Não se tratou de Missa, mas de um ato ecumênico; 2. Foi iniciativa pessoal de quem promoveu o ato; 3. Não houve participação da CNBB nem da arquidiocese de São Paulo; 4. O ato aconteceu fora da jurisdição e responsabilidade do arcebispo e da arquidiocese de São Paulo; O arcebispo de São Paulo lamenta a instrumentalização política do ato religioso”.

Aliás, não é a primeira vez que dom Odilo Scherer sai publicamente contra setores extremados episcopais, ligados à CNBB. Em 22 de junho de 2017, a CNBB defendeu o CIMI, de orientação muito conhecida, em disputa que aqui não vou relatar (está relatada no meu artigo ‘A CNBB, mais uma vez, agrava a exclusão social’, 25.6.2017). Dizia o documento da entidade episcopal: “Tenha-se em conta ainda que as proposições da CPI se inserem no mesmo contexto de reformas propostas pelo governo, especialmente as trabalhista e previdenciária, privilegiando o capital em detrimento dos avanços sociais. Tais mudanças apontam para o caminho da exclusão social”. Na ocasião, o cardeal-arcebispo de São Paulo de público deixou ver o desacordo com a CNBB: Penso que de toda maneira há necessidade de reformas tanto na lei trabalhista como na lei da Previdência. Sim, acho que é necessário fazê-las e fazê-las bem”. Parece, o Purpurado não está só entre seus pares.

Concluo. Exausto de esperar, qual lamparina com paviozinho bruxuleante na borrasca, como católico filho espiritual do Episcopado, ainda tento entrever uma migração célere ▬ cada vez menos provável ▬ rumo a posições como as cardeal Jószef Mindzenty, antigo Primaz da Hungria. Rezo para que aconteçam; entrementes, sigo o que julgo dever, de forma matizada expressar com respeito desvios demolidores.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Desvio de rota na campanha presidencial


Desvio de rota na campanha presidencial

Péricles Capanema

Para os poucos que desconhecem o significado da palavra; mantra, originário do hinduísmo, também utilizado no budismo, é som ritual pronunciado de forma repetida, que busca quase sempre criar um estado de paz interior (alguns sugerem, narcotizante) em quem o cantarola ou escuta. É uma forma de encantamento. Existem mantras para facilitar a concentração e a meditação, para energizar, para dormir ou despertar. Tem gente que repete o som, pasmem, para vibrar canais energéticos, com o fito de desobstrui-los, sabe lá Deus o que isso possa designar. A mais, noutro aspecto, sua repetição traria bons relacionamentos, saúde, prosperidade, dinheiro. Por aí afora.

Está lotada de mantras, saindo pelo ladrão, a campanha presidencial no Brasil que já anda solta, apesar de oficialmente nem ter começado. Programas, até agora, quase nada. É perigoso o quadro, abaixo tratarei da kakistocracia.

Atrás dos votos, venham de ondem vierem, os candidatos fogem dos temas espinhosos, que podem tirá-los. Privatização é um deles. Aborto, outro. União homossexual, mais um. Austeridade fiscal e reforma da Previdência, na lista. A favor ou contra a possibilidade da prisão em 2ª instância, depois de sentença de colegiado, antes do trânsito em julgado? Que amplitude dar ao foro especial por prerrogativa de função? No máximo, generalidades sobre tudo isso. Corrupção, era natural, virou mantra, mas se evita dizer que a presença fortíssima das estatais na economia é caldo de cultura dela. Escutam-se aqui e ali censuras à presença crescente das estatais chinesas na economia brasileira. A campanha começa com generalidades desnorteantes, pode bem acabar com troca de ofensas pessoais do mais baixo nível.

Agora, alguns mantras. Avanço (vago, todos querem avanços, ▬ versão adjetivada, avanços sociais ▬, justificativa frequente para gastos irresponsáveis e concessão de direitos ilusórios que pouco ou nada ajudarão de fato o povo; em geral o prejudicam no longo prazo); medidas progressistas (expressão utilizada amiúde para atitudes na ordem política que flertam com ditaduras sanguinárias de esquerda; na ordem moral via de regra medidas que favorecem a desintegração moral, como facilidades maiores para a união homossexual). Mais um, preservação de setores estratégicos (empregado para deixar a estatização mais ou menos como está, continuando sob o domínio das patotas partidárias gigantescos setores da economia e da máquina estatal). Aliás, bobagem essa história de setores estratégicos na economia. Nos Estados Unidos o petróleo, a energia elétrica, a mineração, o subsolo estão desde sempre em poder dos particulares. Prejudicou a segurança do País? Impediu a economia de crescer e distribuir seus benefícios para a população? Ajudou e muito, essa é a verdade. Ênfase reformista no governo (aqui ninguém sabe o que esse mantra quer dizer de fato).

Em linhas gerais, nessa largada todos os candidatos são democráticos, populares, progressistas, reformistas. Como efeito a ser tido em conta, seduz, ilude e entorpece a repetição meio atoleimada de tais slogans. No meu caso aconteceu o contrário, impliquei. Cansei da cantilena, enfarei da lorota, enjoei dos mantras.

Poderia esmiuçar cada um deles. Estaco em um, o regime democrático. Ou, em outra formulação, a democracia. Diante de seu altar todos se inclinam, reverentes e sôfregos lhe prestam homenagens subservientes, como pagãos incultos e crédulos arqueados diante do Júpiter tronante.

Aqui, vou devagar, piso em terreno cheio de pregos e vidros, ando em área politicamente incorreta, mas estou disposto a pingar is pelo trajeto, atendendo ao fundamental para quem fala ou escreve: a clareza.

Simplificando, com alguma base se atribuiu a Aristóteles a classificação dos regimes em monárquicos, aristocráticos, democráticos e mistos, todos legítimos, com condições de buscar o bem comum. Luís Taparelli d’Azeglio (1793-1862), tratadista do Direito Natural, vê apenas diferenças acidentais, de quantidade, entre os regimes aristocráticos e democráticos, já que nos últimos, de fato, nunca a totalidade dos membros da sociedade participa dos assuntos públicos. A democracia corrompida degenera em demagogia, a aristocracia em oligarquia, a monarquia em tirania. Lembrei teoria de forma sumária para fixar os pontos principais da questão.

Agora, um mergulho na prática. Nossa democracia tem pouco a ver com o governo de todos da teoria aristotélica. Na casca, nomes iguais ou parecidos. No miolo, diferenças abissais. Nossa democracia tem caráter oligárquico e demagógico.  É partidocracia. Minorias organizadas tangem maiorias desnorteadas, manipulando o que por aí chamam de vontade popular. Focalizando de momento só um aspecto do quadro, vivemos na era dos robots nas redes sociais, das fake news, dos spin doctors, afundados no ambiente da pós-verdade. Tal montoeira de recursos propicia a kakistocracia, palavra nova que significa o governo dos piores. E se generaliza no povo a descrença e o repúdio. Aqui está um motivo pelo qual nenhuma proposta de voto facultativo avança no Congresso. O voto não obrigatório, sem o cabresto da sanção, poria a nu a inautenticidade de nossa democracia. Desconfiada, desinteressada ou raivosa, a maioria não iria até as urnas, o comparecimento, quanto muito, bateria nos 30%.

E nem trato dos regimes de partido único, feição totalitária, buscando a hegemonia, que é para onde caminha a Venezuela, nos passos de Cuba, aplaudidas delirantemente pelo PT e alguns partidos afins.

É, estamos vendo, nossa democracia tem muita telha de vidro no telhado. Outras. Já no nascedouro, foi fruto de golpe militar que incinerou a ordem constitucional. Em texto conhecido, afirmou Aristides Lobo, ministro do primeiro governo da República: “O povo assistiu àquilo bestificado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”. Mais grave nem foi o alheamento popular. Desde o começo plantou as raízes doutrinárias na Revolução Francesa, fede a racionalismo e iluminismo; e pisa, por lógica incoercível, o chão ensanguentado do Terror.

Democracia e república não são sinônimos entre si, nem são sinônimos de liberdade. Nunca foram. Na defesa das liberdades naturais, hoje agredidas por tudo quanto é canto, mora a questão mais séria. Para um católico seguidor da doutrina social da Igreja, repito, o primordial são as liberdades naturais: liberdade de cultuar o verdadeiro Deus, liberdade de buscar a própria perfeição, liberdade de comprar e vender, de empreender, de casar, ter filhos, educá-los. Enfim, ampla autonomia na vida pessoal, papel suplementar cabe ao Estado.

Nosso regime democrático asfixia várias das liberdades naturais, quando o direito seria bafejá-las, oxigená-las. Alguns poucos exemplos. Os candidatos prometerão expandir a liberdade de empreender, tão sufocada no Brasil? Constarão de seu programa compromissos de proteção à ordem que constituirão obstáculos sérios a quem delas abusa? Lembro os quebra-quebras do MST e do MTST. Prometerão proteger o direito de os pais educarem os filhos, criando condições que propiciem a luta contra a ideologia de gênero? É liberdade ameaçada pela tirânica coorte dos que pretendem impor na educação e na vida em geral tal doutrina devastadora. Parece, crescerá sem cessar ao longo dos anos a pressão pela vitória da ideologia de gênero, em especial por trabalho dos grandes meios de divulgação e da academia.

Tanta coisa mais haveria a dizer, mas preciso parar por aqui. Constato com tristeza, porém estou certo de que assuntos assim ▬ fundamentais para nosso destino de nação cristã e civilizada ▬, caso presentes nos debates, estarão de forma tangencial. A demagogia vai correr solta; se vier enxurrada, com facilidade poderemos despencar na kakistocracia.

domingo, 15 de abril de 2018

Jaburu ou sabiá?


Jaburu ou sabiá?

Péricles Capanema

O sabiá-laranjeira, ave-símbolo de São Paulo, por decreto de 3 de outubro de 2002 foi declarado ave-símbolo do Brasil. Satisfaz-nos a representação, está presente em todos os lugares, é vivaz, enérgica, alerta, simpática. Para João Capistrano de Abreu (1853-1927), em carta a João Lúcio d’Azevedo, quem bem representava o brasileiro era outra ave, o jaburu: “O jaburu, a ave que para mim simboliza a nossa terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, d'aquela ‘austera e vil tristeza’”. Aqui, o historiador faz alusão à crítica de Camões à pátria, “metida no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza”. Para o severo cearense, o brasileiro era um povo triste, parecia o jaburu.

A respeito, a conventional wisdom é esmagadora. Somos tidos por alegres, extrovertidos, gozadores da vida, até patuscos. No Nordeste, mais, no Sul, menos. Carnaval no Rio, Carnaval na Bahia, frevo no Recife, esticados, festanças e pândegas de rua em tantos outros lugares. Quase virou marca do País lá fora: Brasil, carnaval, futebol. E ele sai com essa de povo triste?

Capistrano de Abreu não está só. Vou pisar o estradão do politicamente incorreto, avançar veloz na contramão e pelo caminho esbarrar em ídolos cultuados na superficialidade.

Coloco ao lado do historiador outro homem de pensamento, desempoeirando livro de Paulo Prado “Retrato do Brasil – ensaio sobre a tristeza brasileira”, publicado em 1928, reeditado continuamente, mas pouco comentado. À vera, muitos o leem, com facilidade percebem a seriedade esclarecedora do texto, mas quase ninguém sente ambiente para sobre ele discorrer. Não dá ibope.

Paulo Prado (1869-1943) foi e representou um tipo humano que começou a ter destaque na vida brasileira ´pela amplitude e finura de apreciação. Teria sido vantajoso pessoas assim se firmarem na arena púbica e assim influir mais, mas vêm perdendo importância e desaparecendo para desgraça nossa. Com muita simplificação, o velho paulista foi intelectual e homem de ação. Esmiuçando, pensador, comerciante, fazendeiro, aristocrata, homem que sabia viajar. Como muitos de seu tempo de forte nacionalismo, refletiu sobre quais seriam as características autênticas do Brasil, suas lacunas e possibilidades, e como poderia, desabrochando potencialidades, fulgurar no futuro.

Por que lamentei o desaparecimento de tal tipo humano? Por que sua falta empobrece e deforma a vida pública do Brasil e até a formação do povo. São padrões humanos educativos, quando nada pela vista e exemplo, em certo sentido “role models”, agora virtualmente eliminados do horizonte das novas gerações.

Esse tipo de homem de pensamento vivia imerso em muitos ambientes e a reflexão em seus espíritos borbotava embebida de premissas pujantes, às vezes com uma agradável nota de verdor caseiro ▬ conversa brilhante em ambiente informal ▬, inexistente até mesmo em grandes pensadores. Trabalhavam material de primeira, filtrado por olhos que tinham aprendido a ver. Assim, não pulava diante de nós o raciocínio simplificador, ossos e esgares à vista, ao qual infelizmente vamos nos acostumando. Vinha educado, bem expresso, matizado, sentia-se ali riqueza na conjugação de várias realidades. Brotava de camadas mais fundas, fluía mais límpido.

Vamos a Paulo Prado: “Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram. O esplêndido dinamismo dessa gente obedecia a dois grandes impulsos que dominam toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria: a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a Renascença fizera ressuscitar”.

Garante exatamente o contrário a sabedoria convencional entre nós: a luxúria é fonte de alegria, a bem dizer condição indispensável e insubstituível para manter o ambiente alegre. Paulo Prado, com coragem intelectual, abrindo caminhos, avança no rumo contrário, a luxúria infrene está na raiz da tristeza do brasileiro. Para ser alegre de fato, precisaria correr para o rumo oposto, cultivar a pureza.

Co segurança, vai adiante o intelectual paulista, menos difícil em homens de sua posição, no topo da inteligência, da vida social e, em algum sentido, dos negócios: “A volta do paganismo, se teve um efeito desastroso para a evolução artística da humanidade, que viu estancada a fonte viva da imaginação criadora da Idade Média, [...] teve como melhor resultado o alargamento das ambições humanas de poderio, de saber e de gozo”. Lembra Nietzsche e sua idealização do super-homem, oposto à mansidão de Nosso Senhor: “Era preciso alterar o sinal negativo que o cristianismo inscrevera diante do que exprimia fortaleza e audácia. Guerra aos fracos, guerra aos pobres, guerra aos doentes”.

Continua: “A era dos descobrimentos exaltava a vida física, como mais tarde a Revolução Francesa foi a exaltação da vida intelectual, arrogante e independente”.

Outro ponto que não mudou desde os Descobrimentos e até hoje gera tristeza, a cobiça, a busca desbragada da riqueza. A alegria está na temperança, na despretensão, na conformidade sensata com os bens que a vida nos oferece.

Enquanto perdurar tal situação, Paulo Prado tem razão, será mentirosa a fama de alegre do brasileiro, estaremos mais para jaburu que para sabiá.