Jaburu ou sabiá?
Péricles Capanema
O sabiá-laranjeira, ave-símbolo de São Paulo, por
decreto de 3 de outubro de 2002 foi declarado ave-símbolo do Brasil. Satisfaz-nos
a representação, está presente em todos os lugares, é vivaz, enérgica, alerta, simpática.
Para João Capistrano de Abreu (1853-1927), em carta a João Lúcio d’Azevedo,
quem bem representava o brasileiro era outra ave, o jaburu: “O jaburu, a ave que para mim simboliza a nossa
terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e passa os dias
com uma perna cruzada na outra, triste, triste, d'aquela ‘austera e vil
tristeza’”. Aqui, o historiador faz alusão à crítica de Camões à pátria, “metida no gosto da
cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza”. Para o
severo cearense, o brasileiro era um povo triste, parecia o jaburu.
A respeito, a conventional
wisdom é esmagadora. Somos tidos por alegres, extrovertidos, gozadores da
vida, até patuscos. No Nordeste, mais, no Sul, menos. Carnaval no Rio, Carnaval
na Bahia, frevo no Recife, esticados, festanças e pândegas de rua em tantos
outros lugares. Quase virou marca do País lá fora: Brasil, carnaval, futebol. E
ele sai com essa de povo triste?
Capistrano de Abreu não está só. Vou pisar o estradão
do politicamente incorreto, avançar veloz na contramão e pelo caminho esbarrar
em ídolos cultuados na superficialidade.
Coloco ao lado do historiador outro homem de
pensamento, desempoeirando livro de Paulo Prado “Retrato do Brasil – ensaio
sobre a tristeza brasileira”, publicado em 1928, reeditado continuamente, mas
pouco comentado. À vera, muitos o leem, com facilidade percebem a seriedade
esclarecedora do texto, mas quase ninguém sente ambiente para sobre ele
discorrer. Não dá ibope.
Paulo Prado (1869-1943) foi e representou um tipo
humano que começou a ter destaque na vida brasileira ´pela amplitude e finura
de apreciação. Teria sido vantajoso pessoas assim se firmarem na arena
púbica e assim influir mais, mas vêm perdendo importância e desaparecendo para
desgraça nossa. Com muita simplificação, o velho paulista foi intelectual e
homem de ação. Esmiuçando, pensador, comerciante, fazendeiro, aristocrata,
homem que sabia viajar. Como muitos de seu tempo de forte nacionalismo, refletiu
sobre quais seriam as características autênticas do Brasil, suas lacunas e
possibilidades, e como poderia, desabrochando potencialidades, fulgurar no
futuro.
Por que lamentei o desaparecimento de tal tipo humano?
Por que sua falta empobrece e deforma a vida pública do Brasil e até a formação
do povo. São padrões humanos educativos, quando nada pela vista e exemplo, em
certo sentido “role models”, agora virtualmente eliminados do horizonte das
novas gerações.
Esse tipo de homem de pensamento vivia imerso em
muitos ambientes e a reflexão em seus espíritos borbotava embebida de premissas
pujantes, às vezes com uma agradável nota de verdor caseiro ▬ conversa brilhante
em ambiente informal ▬, inexistente até mesmo em grandes pensadores. Trabalhavam
material de primeira, filtrado por olhos que tinham aprendido a ver. Assim, não
pulava diante de nós o raciocínio simplificador, ossos e esgares à vista, ao
qual infelizmente vamos nos acostumando. Vinha educado, bem expresso, matizado,
sentia-se ali riqueza na conjugação de várias realidades. Brotava de camadas
mais fundas, fluía mais límpido.
Vamos a Paulo Prado: “Numa terra radiosa vive um povo
triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e
a povoaram. O esplêndido dinamismo dessa gente obedecia a dois grandes impulsos
que dominam toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria:
a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a
Renascença fizera ressuscitar”.
Garante exatamente o contrário a sabedoria
convencional entre nós: a luxúria é fonte de alegria, a bem dizer condição indispensável
e insubstituível para manter o ambiente alegre. Paulo Prado, com coragem
intelectual, abrindo caminhos, avança no rumo contrário, a luxúria infrene está
na raiz da tristeza do brasileiro. Para ser alegre de fato, precisaria correr
para o rumo oposto, cultivar a pureza.
Co segurança, vai adiante o intelectual paulista, menos
difícil em homens de sua posição, no topo da inteligência, da vida social e, em
algum sentido, dos negócios: “A volta do paganismo, se teve um efeito
desastroso para a evolução artística da humanidade, que viu estancada a fonte
viva da imaginação criadora da Idade Média, [...] teve como melhor resultado o
alargamento das ambições humanas de poderio, de saber e de gozo”. Lembra Nietzsche
e sua idealização do super-homem, oposto à mansidão de Nosso Senhor: “Era
preciso alterar o sinal negativo que o cristianismo inscrevera diante do que
exprimia fortaleza e audácia. Guerra aos fracos, guerra aos pobres, guerra aos
doentes”.
Continua: “A era dos descobrimentos exaltava a vida física,
como mais tarde a Revolução Francesa foi a exaltação da vida intelectual,
arrogante e independente”.
Outro ponto que não mudou desde os Descobrimentos e até
hoje gera tristeza, a cobiça, a busca desbragada da riqueza. A alegria está na temperança,
na despretensão, na conformidade sensata com os bens que a vida nos oferece.
Enquanto perdurar tal situação, Paulo Prado tem razão,
será mentirosa a fama de alegre do brasileiro, estaremos mais para jaburu que
para sabiá.
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