segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A vaca foi pro brejo


A vaca foi pro brejo

Péricles Capanema

O rapper Mano Brown, dia 23 último, no Arcos da Lapa (Rio de Janeiro) em ato eleitoral petista entupido de figurões e figurinhas do mundo artístico rebelou-se contra o artificial clima de festa ali imperante e, falando para plateia amestrada, sublinhou o óbvio, a esquerda ia perder a eleição. Importa destacar a razão enunciada pelo músico, a esquerda se havia dissociada do povo; não mais falava linguagem entendida por ele. Disparou o rapper: “A cegueira que atinge lá, atinge nois tamém. Num tá teno motivo pra comemorá, sei lá, quase 30 milhões de votos pra alcançá aí. Num temos nem expectativa nenhuma pra alcançá essa margem. Si num tá conseguindo falá a língua do povo, vai perdê mermo, certo? Fechou”.

Reconhecia em linguagem estropiada, mas clara, ao lado de Haddad e de outros hierofantes do lulopetismo, o jogo estava jogado; a vaca tinha ido pro brejo. Caetano Veloso pulou para o microfone e tentou consertar o estrago (na coerência da intervenção do músico baiano, iria elucidar o que estava acontecendo, já que o defeito apontado por Mano Brown era a linguagem incompreensível): “Eu acho que a fala do Mano Brown é muito importante porque traz a complexidade do nosso momento”.

Continua o cantor, ao procurar esclarecer a complexidade do momento: “A mera festa pode parecer que temos uma mensagem simples a passar. Ele pôs complexidade”. Até aqui, zero de explicação, mas Caetano vai começar a desenovelar o assunto: “O Brasil tem sido bombardeado há algumas décadas por uma imbecilização planejada em que filósofos dizem palavrão para acostumar a mente brasileira à ideia de que o cafajeste é o que nos representa”.

Agindo segundo plano de décadas, filósofos diriam palavrão para acostumar brasileiro à ideia que o cafajeste nos representa. Entendeu alguma coisa? Nem eu. O novelo ficou mais enrolado (e era a primeira resposta à queixa de Mano Brown de que a esquerda não fala coisa que o povo entenda).

Adiante. Então temos uma imbecilização planejada. Por quem? Não diz. A propósito algum filho de Deus acha que palavrões ditos por filósofos acostumam o brasileiro à ideia que deva ser representado por cafajestes? Faz algum sentido? Não percebi. Até um menino poderia perceber, são frases ocas sem pé nem cabeça. E eram ditas com pompa para tornar claras as palavras de Mano Brown (estavam claríssimas, a vaca tinha ido para o brejo). Desembesta de vez o idoso esclarecedor da esquerda brasileira: “E é isso que nós precisamos poder negar dentro de nós”

Outra vez, entendeu? Obrigação de cada um, negar dentro de nós que o Brasil deva ser representado por cafajestes. Tem rumo? Não estou percebendo. Não dá para fugir do óbvio, escutamos alguém discorrendo compulsivamente de assunto do qual não tem a mínima noção.

A solução vale para o Brasil inteiro: “Não só os que estamos aqui e que já lutamos contra isso. Mas encontrar meios de dizer àqueles que se deixaram hipnotizar por essa onda”. Vou tentar desatar o nó: agora não é o filósofo que diz palavrão, passou a ser uma onda que hipnotiza. E é mister encontrar meios para falar aos hipnotizados pela onda.

Aí o cantador declara o objetivo de sua ida aos Arcos da Lapa: “Eu estou aqui por isso. Eu estou aqui em parte como vocês, em parte como Mano Brown, porque eu me oponho à cafajestização do homem brasileiro”.

Agora ficou inteiramente claro. O público estava lá por um motivo. Caetano também estava lá por esse motivo. Mano Brown estava lá por motivo diferente. Caetano Veloso também estava lá pelo mesmo motivo de Mano Brown. Quais motivos? Não os enumerou. Não achou necessário, ou nem percebeu que era preciso pelo menos um pouquinho de coerência naquele charabiá.

Aplausos calorosos da plateia. Finalmente, para alegria dela, estava deslindada a complexidade. O povo certamente iria agradecer pela clareza, nitidez, precisão, síntese e simplicidade da fala. Pela evidência que brotava das palavras estava explicado por que o povo não entende a linguagem da esquerda.

Continuo na mesma trilha. Caetano Veloso escreveu artigo para o New York Times sobre as eleições brasileiras. Ali também ficamos desnorteados pela mesma ofuscante clareza das suas palavras do Arcos da Lapa.

Abaixo, alguns extratos: “Se Bolsonaro vencer a eleição, os brasileiros podem esperar ondas de temor e ódio. [...] Muitos artistas, músicos, diretores de cinema e pensadores se viram em um ambiente em que ideólogos reacionários ▬ mediante livros, websites e artigos ▬, denegriam quaisquer tentativas de acabar com a desigualdade, ligando políticas socialmente progressistas a uma situação de pesadelo venezuelano, gerando o temor de que os direitos das minorias minarão os princípios religiosos e morais ou simplesmente doutrinando as pessoas na brutalidade mediante o uso sistemático da linguagem depreciativa. A ascensão de Bolsonaro como figura mítica corresponde às expectativas criadas por este tipo de ataque intelectual. Não é uma troca de argumentos. Aqueles que não creem na democracia trabalham de maneira insidiosa”.

Preciso parar. O que faz aqui Caetano? Não refutou argumentos, insidiosamente usou linguagem depreciativa e denegriu adversários. E ainda deixou mal o Brasil no exterior. Entre nós, provocou temor que seus amigos no poder agiriam à maneira dele, lotando nossa paciência não só com incompetência, roubalheira, mas ainda com um lero-lero sem fim, oco, arrogante e petulante. Prefiro a perder de vista o tosco surto de sinceridade [sincericídio] de Mano Brown.


domingo, 28 de outubro de 2018

Alívio, esperanças e vigilância


Alívio, esperanças e vigilância

Péricles Capanema

Pouco depois das sete horas da noite de domingo, o Brasil tomou conhecimento de que Jair Bolsonaro estava eleito.  Apesar do bombardeamento pró-Haddad dos últimos dias da campanha, proveniente de todos os setores da opinião que se publica, a votação consagradora de Bolsonaro evidenciou a exasperação do sentimento antipetista e antilulista (na opinião que não se publica). Alívio generalizado ▬ ufa! ▬, a brisa fresca alimentou a esperança de nunca mais termos o pesadelo macabro que assombrou a nação de 2002 a 2016. Contudo, porcentagem considerável, quase 45%, manteve-se chegada ao avantesma, cujo retorno aterroriza a maioria.

Em linhas muito gerais, de um lado esteve o Brasil que anseia por crescer, produz, aspira a autonomias e liberdades. Passa além das fronteiras agrícolas na busca de espaços novos e ultrapassa limites difíceis na vida pessoal e profissional. Esbanja ânimo, topa enfrentar as agruras da vida, esperançado encara o futuro.

Convém lembrar rapidamente, é o Brasil que nutre simpatias pelo princípio de subsidiariedade, quer menos Estado e mais protagonismo da sociedade. Nesse lado está também o País apavorado com a desordem, com a violência no campo e na cidade, amigo da família e da disciplina, religioso em sua maioria. É significativo, no geral as grandes cidades votaram mais pró-Bolsonaro que os núcleos do interior. É o Brasil do avanço. No que tem de melhor, mesmo que de forma inexplícita, são setores atraídos pelo crescimento, pela plenitude.

Vamos ao outro lado. Votou na chapa do PT – PC do B o Brasil que depende do Estado, acostumado ao clientelismo, agarrado a privilégios injustificados, receoso da autonomia e da competição. A esse contingente, somaram-se grupos letrados, enquistados na alta administração (nossa Nomenklatura), no entretenimento, nas redações, na academia, nas sacristias; também em franjas de clubes grã-finos.

No entretimento, o ambiente contestatário e libertário alimentou os apoios de Fernando Haddad. Nas sacristias, academia e redações, além de tal caldo de cultura, a escravidão a ideais coletivistas e igualitários. Contingente gigantesco que se nutre de mitos, é infecção resistente aos antibióticos da realidade. No que tem de mais preocupante, é sempre leniente com as atrofias pessoal e social, presentes nas soluções totalitárias, por vezes as namora. Como na Venezuela. Representa com autenticidade a vanguarda do atraso, o Brasil do retrocesso.

De passagem, mais uma vez se revelou atual o livro de Julien Brenda, primeira edição de 1927, La trahison des clercs [A traição dos intelectuais], denúncia aguda da misteriosa propensão que têm os letrados, desde há muito, de se unirem ao que existe de pior na sociedade ▬ cegos e obstinados companheiros de viagem de correntes demolidoras; vão até o precipício e nele pulam, juntamente com os fanáticos da revolução, afundando todos. Foi assim na Revolução Francesa, foi assim na Revolução Comunista, será assim aqui algum dia, se o povo não se vacinar contra os vírus que disseminam.

Um reparo. O Brasil simples que depende do Estado não é majoritariamente esquerdista. Parte importante dele nem sabe o que é esquerda, precisa sobreviver. Fatia grande dele votou no Andrade por medo do desamparo. Tem condições de ser resgatado do rumo errado. Ajudado com critério, pode tomar rumo certo.

Acabou a campanha, chegou a hora de pensar feridas, relevar agravos, procurar a reconciliação. Seria bom que assim acontecesse. Receio que, se vier, será superficial. As divisões na sociedade brasileira estão enraizadas. Desmobilização e descuidos serão fatais no lado que venceu as eleições. No mais profundo, uma parte do Brasil optou pelo crescimento, deseja a plenitude. A esperança deita nele suas raízes. Outra parte, infelizmente, favorece o coletivismo, não foge da atrofia. Que Nossa Senhora Aparecida proteja o Brasil.