quinta-feira, 17 de junho de 2021

A atualíssima defesa do interior brasileiro

 

A atualíssima defesa do interior brasileiro

 

Péricles Capanema

 

Realidades novas. Cada vez mais as cidades médias e grandes atraem o morador do campo e dos núcleos pequenos, que para elas migram em busca de emprego, educação, lazer, segurança. Fenômeno antigo, irrefreável e natural, vai de forma crescente configurando o País que deixa de ser em boa parte rural e passa a ser predominantemente urbano. As questões de natureza urbana se tornam assim, pela força das coisas, mais relevantes que as rurais.

 

Estou sendo parcial, sei. Conserto agora. Hoje, no “hinterland” de Pindorama há grandes centros urbanos, que rivalizam na oferta de serviços com São Paulo e Rio de Janeiro. E pululam ali as cidades de porte médio, pujantes e de população bem atendida no geral. Em tais aglomerações urbanas há ambientes, na vida profissional, acadêmica e social, parecidos com os melhores dos grandes centros. Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, Ribeirão Preto, tantas outras, não são consideradas cidades do interior. Desse modo, a diferença entre interior e capital desbotou-se, já não é enorme e tão cortante a diferença entre grandes centros do litoral (ou próximo dele) e o vasto Brasil, majoritário em extensão e talvez em população, anônimo e insuficientemente valorizado. Interior de alguma maneira se tornou realidade psicológica. Só a geografia não é mais suficiente: é ainda do interior quem se julga do interior, ou assim é tido pelos conhecidos.

 

Interior e capital. Não importa, ainda está viva e em parte é ferida aberta; precisa ser fechada, quanto antes melhor, a divisão entre interior e grandes capitais. Em boa medida, o interior, aqui realidade fundamentalmente geográfica, continua mal atendido e desamparado. A distância desarrazoada entre os recursos do interior e os das grandes capitais (mesmo as localizadas fora da orla marítima) dificulta a paz social, a harmonia interna e o desenvolvimento.

 

Nacionalidade ameaçada. Pugnar pelo interior é lutar pela sanidade das raízes do antiga Terra de Vera Cruz e pela preservação da nacionalidade no que tem de melhor. Perenizar o Brasil da bota, da bora de milho, do trator, da cidade pequena do convívio sossegado, do valor da palavra dada e das amizades que atravessam gerações. Muito do que o povo produziu de melhor, no terreno das relações humanas, ainda sobrevive, com dificuldades infelizmente, em pequenos burgos do interior, embora já moribundo nos grandes centros urbanos. E, de ricocheteio, o fortalecimento do interior promoverá a agricultura e o agronegócio, fundamentais para a saúde da nação. Do mesmo modo, da indústria e dos serviços vicejando pelo interior do país. Representa causa de valor inestimável, tem laços fortes com as forças mais vivas e benéficas do Brasil, o mais citadino dos nacionais deveria assumi-la.

 

Combate ao depauperamento. Por que, como que de repente, abarrotaram-me o espírito tais considerações? Borbotou a ocasião adequada para se manifestar o que sempre este no espírito, latente e pulsando. Passava os olhos por artigos já amarelecidos pelo tempo (início dos anos 40, oitenta anos atrás) do professor Plinio Corrêa de Oliveira. Um me chamou especialmente a atenção pelo título: “Carro adiante dos bois” (Legionário, 5.10.1941). Huhm. Qual carro? Quais bois? Curioso, mergulhei no texto, logo percebi luminosa defesa do Brasil interiorano. Era, à vera, brado em favor de suas populações desassistidas. A propósito, o autor não estava levando água para o próprio moinho. Plinio Corrêa de Oliveira nasceu em São Paulo, sempre viveu em São Paulo, e seus pais nunca tiveram propriedades no interior. Era tão-só propugnar o justo; mais amplamente, zelo pelo Brasil. Logo no começo um brado (sei, muita coisa mudou de lá até cá, mas os ecos daquele clamor ecoam hoje como advertência salutar. Reclama do “estado miserável em que vive a maior parte das populações do interior do País”. Observa que o “depauperamento” “corrói as forças vitais da nacionalidade, prejudica e deixa instáveis “as manifestações de cultura e de civilização”. Observa ainda que a exploração agrícola se dá em ambiente de “devastação e miséria”.

 

O carro, as grandes cidades.  Toca então no ponto mais relevante do artigo: a aplicação dos impostos. Reclama, a maior parte dos impostos vem sendo gasta nas capitais, deixando o interior desassistido. Parte de tais recursos, certamente a maior, deveria ser aplicada no interior para melhorá-lo e assim ajudar as populações lá residentes a crescer na vida. Verbera: “As rendas estaduais são gastas quase exclusivamente nas capitais dos Estados, o mesmo acontecendo em relação às rendas federais que são gastas numa proporção esmagadora na capital da República”. Para que isso?, pergunta o articulista.  E responde: “Só para manter uma alta civilização artificial em alguns poucos centros urbanos, enquanto o conjunto do organismo nacional se debilita”.

 

Os bois, o interior. E conclui: “Enquanto tal mentalidade não mudar, nada poderemos fazer de definitivo. Só quando os nossos centros urbanos deixarem de ser parasitas da nacionalidade, para se tornaram expressões autênticas da vitalidade nacional, só aí entraremos no bom caminho da administração pública”. O carro está adiante dos bois ainda em nossos dias. Não se grita hoje País afora; “Menos Brasília, mais Brasil”, increpando com indignação um reflexo de tal deformação? O normal, os bois, a tração, à frente; o carro vem atrás, tracionado; primeiro, o interior. Mudar a ordem natural traz retrocesso, nele estamos há décadas. Continua urgente o brado já de oito décadas de Plinio Corrêa de Oliveira. É dever patriótico a defesa dos direitos do interior brasileiro.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Cento e trinta anos à deriva

 

Cento e trinta anos à deriva

 

Péricles Capanema

 

Lia no Estadão dias atrás artigo de Pedro Malan (O terceiro inverno do governo Bolsonaro), quando, de repente, trombei com esta: “O processo que nos trouxe até aqui está em curso há décadas. Estamos há mais de 130 anos em busca de uma República democrática digna desse nome”.

 

Crise velhíssima. De outro modo, até hoje, não terá havido entre nós república digna de tal nome. À vera, Malan recorda o óbvio. Ela começou com uma quartelada, logo despencou num bonapartismo caboclo que esfrangalhou as liberdades reinantes na monarquia, a seguir eleições “a bico de pena” e de lá para cá barafusta meio bêbada entre golpes, anarquia administrativa, roubalheiras e ditaduras. Currículo consagrador, dúvida nenhuma.

 

Infelizmente, pelo sacolejar costumeiro da carruagem, Deus nos proteja, parece que não teremos caminho fácil pela frente, pelo menos até onde a vista alcança. República digna do nome? Peraí, devagar, dr. Pedro. Vamos esclarecer um ponto. Talvez o articulista tenha se referido à república romana, inspiração para muitos republicanos ao longo da história. Quereria um país com homens públicos dotados da “gravitas”, “prudentia”, “honestas”, varões de Plutarco. Se, contudo, tiver como ideal, a república francesa, nascida de 1789, santo Deus! Assassinatos, terror, opressão, tirania, guerras sem fim, e vai por aí afora. Seria então congruente termos com a mão no leme do Estado a homens públicos despreparados, inescrupulosos, toscos, aproveitadores, arrivistas, debochados, useiros e vezeiros da linguagem chula e do palavrão, na realidade, hedionda caquistocracia. Marat, Fouchet e Fouqier-Tinville constituiriam lídimos marcos para comportamentos “autenticamente republicanos” do segundo modelo. A propósito, sobre a Revolução Francesa, um de seus corifeus, Georges Clemenceau (1841-1929), afirmava que, por coerência, era preciso aceitá-la “en bloc”; nada de fatiamentos, uns comestíveis, outros intragáveis. “A Revolução Francesa é um bloco, um bloco do qual nada pode ser retirado. Esta revolução admirável ainda não acabou, continua, somos dela os atores”. E ainda, na mesma direção: “A Revolução Francesa é um bloco, que é preciso aceitar ou rejeitar em sua integralidade”.

 

Deixo de lado a alusão ao modelo que animaria Malan, não sei se o da Antiguidade, se o sanguinolento da Modernidade. Ou se seria outro, quem sabe mescla de várias realizações históricas.

 

Desalmado processo de décadas. Nota ainda o celebrado economista, padecemos desestabilizador processo de décadas, coisa longa, confusa e desagregadora. Bosqueja traços dessa construção empobrecedora, cujo resultado é cruel exclusão social; ao longo dos anos milhões e milhões de brasileiros impedidos de ter vida melhor.  Processo aponta para ação concatenada, fio de meada. Qual processo? Explica ele meio atabalhoadamente: “Ações e omissões, erros e acertos, paixões e interesses, conflitos e compromissos que nos trouxeram, como país, ao que somos hoje. Entender como um país se tornou o que é, e o que poderia vir a ser, exige consciência do peso ou do empuxo do passado”. Deveras, está descrevendo processo que em muitos traços se poderia chamar de demolição. E o conserto não pode vir só de uma eleição, de troca de gerentes, de medidas entufadas, aparatosas e estrepitosas ▬ vazias, no miolo. Requer muito mais, mas desborda os limites do artigo o trato circunstanciado dos remédios contrários ao retrocesso. De qualquer maneira, já é um avanço ter clara a noção do buraco em que nos metemos.

 

Barco no meio da borrasca. Malan lembra o clima de incerteza, os riscos atuais à liberdade, a possibilidade concreta das surpresas desagradáveis. Borrasca, barlavento e sotavento em mutação rápida, rajadas desorientadoras sacudindo o navio (ou o Brasil). De fato, confessa-o chapada e candidamente, estamos há décadas agredidos pelo fracasso estrondoso da república.

 

Conscientização. Vamos, pelo menos muito por alto, aludir à consciência e ao peso do passado, circunstâncias lembradas pelo antigo ministro da Fazenda. Cento e trinta anos batendo cabeça, crâneo lotado de galos doloridos, olhos cansados divisando fantasmas no fundo do panorama. Inevitável a conclusão, a solução (emplastro) gizada às pressas e irrefletidamente pelo marechal Deodoro não funcionou; deu com os burros n’água. Na prática, ova emplastro infeccionou ainda mais a ferida.

 

A “ordem e progresso”, no real, a regressão bagunçada, nasceu da credulidade, enraizada no mimetismo subserviente, de acreditar em fórmulas cerebrinas que, aliás, já caminham celeremente para o ostracismo: positivismo e bonapartismo. Caudatários apaixonados de correntes já meio moribundas e desvalorizadas nas origens, empurraram na época, goela abaixo do Brasil, poções pretensamente mágicas de feiticeiros desmoralizados. Intoxicou, enrijeceu; desnaturou.

 

Peso do passado. O peso a que alude Malan é a carga jogada nos ombros do povo pelos descaminhos da era republicana. Existe outro passado, anterior ao republicano: teve pesos, mas também teve empuxo e até luz. Não sustento que a monarquia, como existiu entre nós, constituiu governos sem máculas. Longe disso. Apenas que foi começo promissor, carregado de esperanças bem fundadas e realizações de valor. O Brasil poderia ter dado muita coisa boa para seu povo e para o mundo.

 

Gravitas. Chamo a atenção para um ponto.  A “gravitas”, “honestas” e “prudentia” da generalidade dos homens públicos do Império era penhor de caminhada na direção de um bem comum cada vez mais amplo, criador de espaços de oportunidades e realizações, aperfeiçoando pessoas e instituições. A tal perspectiva foram dadas as costas e despencamos. Um exemplo só, revelador, e para fechar: qual foi o homem público mais prestigioso da república, o maior de seus ministros, exemplo de lucidez na ação, clareza de rumos e proficiência para a pátria? Em sua procura de respeitabilidade e eficiência, a república o buscou no Império: o barão do Rio Branco. Que, aliás, nunca deixou de usar o título em ocasiões públicas e privadas. Na república triunfante, seguro, perfil de medalha, ostentava-o: era “o barão”.

 

Governo do bom exemplo. Por que lembrei tudo isso? Melhor, recordo; repito o que já tenho escrito. Se quisermos progresso para todos, será condição indispensável o cultivo lúcido de elites aptas a conduzir a nau pública com elevado senso do bem comum. Competentes e preparadas, é o início indispensável, mas também com a clara noção do dever da exemplaridade. O bom exemplo dos governantes é fundamento de aperfeiçoamento nacional, pressuposto para amplíssima e benéfica política de inclusão social.