domingo, 20 de fevereiro de 2022

A guerra de muitas frentes

 

A guerra de muitas frentes

 

Péricles Capanema

 

Guerra híbrida. Amigo caríssimo enviou-me artigo de enorme interesse sobre a crise ucraniana. Sob vários aspectos, é o mais esclarecedor entre o material que li. Original alemão, divulgado pela Deutsche Welle; tive, entretanto, sob os olhos tradução inglesa “Russia’s hybrid war against Ukraine, 18.2.2022 (A guerra híbrida da Rússia contra a Ucrânia). Híbrido aqui significa múltipla; vários tipos de guerra usados ao mesmo tempo contra a Ucrânia, mas com um só objetivo: prostrar o país. E ainda o Ocidente. Tirar dos dois, por corrosão constante, a vontade de lutar e de resistir.

 

Guerra cibernética, escaramuças militares e fake news políticas. Informa o texto, apenas na última semana, a Ucrânia sofreu ataques cibernéticos sem precedentes dirigidos contra o ministério da Defesa e contra dois bancos, Privatbank e JSC Oschadbank. Foram atingidos clientes individuais e o sistema bancário inteiro. Ao mesmo tempo havia choques no leste da Ucrânia entre rebeldes treinados por militares russos contra forças do exército ucraniano. E se divulgavam notícias de que a Duma iria reconhecer a soberania da parte leste da Ucrânia, cuja população é majoritariamente de origem russa. Esses são apenas alguns exemplos, informa o estudo, das escaramuças que a Rússia vem promovendo na Ucrânia já há oito anos.

 

Controlar a narrativa. Comenta a respeito a dra. Margareth Klein, pesquisadora do Instituto Alemão para Assuntos de Segurança (Stiftung Wissenschaft und Politik / German Institute for International and Security Affairs), especializada na Europa Oriental: “Na guerra híbrida é importante ter em vista que os métodos não militares têm papel central. Não se trata sobretudo de ocupação militar do território. Pelo contrário, o objetivo é ganhar influência. Demonstrações de poder militar como a presente aglomeração de tropas nas fronteiras com a Ucrânia, os exercícios militares na Bielorrússia, bem como a anunciada retirada de tropas, são apenas parte de um vasto instrumental, mediante o qual a primeira prioridade é controlar a narrativa. Vladimir Putin realmente sabe como conduzir ao mesmo tempo esta guerra em várias frentes”.

 

Abatimento, desgaste e acomodação. Segundo Klein, o autocrata russo quer corroer o ânimo de resistência dos ucranianos e também dos ocidentais. É o objetivo de oito anos de guerra de desgaste: “É guerra de atrição. A Rússia está tentando colocar a Ucrânia sob pressão fortíssima, em especial na frente interna, com a esperança de reviravolta e caminho novo pró-russo. Outro objetivo pode ser provocar o cansaço de defender a Ucrânia no mundo ocidental. É uma tentativa de explicação do constante ciclo de tensão e distensão na guerra. Provocar a convicção de que a liderança norte-americana é paranoica”. Explica ainda Margareth Klein que na análise de todas as comunicações russas de que tropas do país estavam se retirando, em nenhuma delas os serviços de inteligência constataram retiradas expressivas. Era jogo de propaganda ▬ buscava o que ela chamou controle da narrativa.

 

Impedir a prosperidade. A dra. Margareth Klein amplia o panorama. Afirma que existe na juventude ucraniana enorme desejo de crescer na vida, o que seria possível pela adoção no país dos princípios vigentes nas economias ocidentais. Em outras palavras, propriedade privada, livre iniciativa, princípio de subsidiariedade. Nada de estatismo e intervencionismos. Tal fato, a disseminação da prosperidade gradual na população, seria fator importante para puxar o país para a área ocidental. Com reflexos importantes em outros países da região, mesmo na Rússia. Para impedir tal movimento, Vladimir Putin pretenderia manter a Ucrânia em constante crise econômica, é a hipótese aventada pela dra. Klein. E assim, a Rússia não está apenas impedindo a Ucrânia de aderir à NATO. “A guerra híbrida semeia incertezas, afugenta investidores”. Breve, segundo o estudo da Deutsche Welle, talvez o motivo determinante da agressão russa contra a Ucrânia não seja a tentativa de impedir seu ingresso na NATO (o que, aliás, segundo a garantia do chanceler alemão, se vier, será daqui a muitos anos), mas o temor de que a experiência capitalista no país, com rápido enriquecimento e prosperidade, cada vez mais difundida, tenha como efeito afastar ainda mais as populações do Leste europeu do guarda-chuva russo.

 

Invasão iminente. O estudo da entidade alemã, que fica como pano de fundo, desperta perguntas decisivas cujas respostas (mesmo quando simples e despretensiosas tentativas com grande carga hipotética) podem enriquecer a compreensão do quadro geral. Cabe a nós procurar resposta tendo como base em especial as notícias que de lá nos chegam. No momento, alarmantes. Além dos Estados Unidos, que por suas autoridades mais importantes afirmam peremptoriamente que a invasão da Ucrânia já está decidida e é iminente (presidente da República, vice-presidente da República, secretário da Defesa), temos advertências semelhantes dos principais chefes de governo da Europa. Destaco aqui declarações de 19 de fevereiro de Boris Johnson, o primeiro-ministro inglês, a Rússia está planejando a “maior guerra na Europa desde 1945” o que poderia provocar “uma geração de derramamento de sangue e miséria”.

 

O Brasil tem o dever de fugir do cansaço. É claro, o Brasil sofrerá na carne os efeitos da guerra na Europa. Em defesa do interesse nacional ▬ e por dever de consciência ▬ precisaríamos manter viva a recusa da agressão injusta à nação martirizada pelo agressor imperialista. Não podemos cair na tentação do cansaço de defender a Ucrânia. E, é congruente, merece ainda apoio ardente a posição das potências ocidentais e da NATO em defesa dela.

 

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O dia da vergonha

 

O dia da vergonha

 

Péricles Capanema

 

O dia da vergonha. Começo o artigo em 16 de fevereiro de 2022, 13 horas (19 horas em Moscou). No Kremlin já houve o encontro e o almoço Putin-Bolsonaro. Já aconteceram as entrevistas de praxe, já foi divulgado o comunicado conjunto. Para os mais importantes efeitos, a visita do presidente brasileiro a Moscou afundou-se no passado. Ao lado do potentado russo, o primeiro mandatário brasileiro declarou de forma vexaminosa: “Somos solidários à Rússia”. Houve espanto imediato Brasil afora. A Rússia, como se sabe, está ensaiando injusta agressão militar à Ucrânia (que pode acontecer ou não). O Brasil ao lado da agressora injusta? Pode ser também, uma das hipóteses, que, para pôr fim às tensões, a pressão russa somada à disposição de acomodação do Ocidente empurrem a Ucrânia para situação de virtual finlandização, com evidente, mas disfarçada, derrota ocidental. As próximas semanas o dirão. O escandaloso “somos solidários à Rússia” traumatizou o Brasil de alto a baixo, repito ▬ e chocou todos os povos defensores do direito. Em manifestação posterior, de forma genérica, o presidente brasileiro, possivelmente tentando minorar os efeitos da frase espantosa, em especial entre círculos favoráveis ao Ocidente, afirmou: “Somos solidários a todos aqueles países que querem e se empenham pela paz”. De fato, tal emplastro não representou retratação, que continua sendo a atitude correta. Na mesma ocasião, não quis deixar dúvidas sobre a posição do Brasil em relação à Rússia: “Realmente, é mais que um casamento perfeito”. Breve, para larguíssimos setores da opinião nacional sensíveis e fieis ao passado brasileiro, foi o dia da vergonha.

 

Horror generalizado.  A atitude russa tem despertado horror no mundo inteiro, de forma especial entre os que defendem liberdades naturais e a soberania nacional. É clássico caso de liberdade versus tirania e, para o povo, o caminho da prosperidade versus o mergulho na pobreza. Na verdade, é mais um capítulo da política putinista de restabelecer em nossos dias o papel desempenhado na Guerra Fria pela União Soviética. Aliás, objetivo que ele não disfarça. E o Brasil avalizando-o, agora. Entre outras ocasiões, em abril de 2005, o antigo oficial da KGB, declarou na Duma: “Deve ser reconhecido ▬ e eu já disse isso antes ▬ o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século”.

 

O Brasil na banda podre. Até agora, pelo que se sabe, Putin tem o apoio para sua atividade criminosa contra a Ucrânia, da China comunista, da Nicarágua, de Cuba, da Venezuela, da Bielorrússia, da Hungria. E agora do Brasil. Argentina e Turquia também pendem para a Rússia. Os Estados Unidos, na defesa da independência ucraniana, contam com o apoio da União Europeia, Inglaterra, Alemanha, Itália, Japão, Austrália, Canadá, Polônia, Japão. Muitos mais, a grossa maioria dos países do mundo. São representantes, em linhas muito gerais, da banda que presta. A banda podre apoia a Rússia. O Brasil, conspurcado, perfilou-se nela, alinhando-se, na América Latina, reitero, a Cuba, Venezuela e Nicarágua. Virão outros. E a situação poderia piorar rapidamente. Informa Jack Nikas no “New York Times” que os Estados Unidos estão preocupados com a interferência russa nas eleições presidenciais de maio próximo na Colômbia para ajudar Gustavo Petro, o candidato da esquerda. Outro ponto preocupa não só os norte-americanos. Viajou com o presidente um nutrido acompanhamento militar para estabelecer “cooperação técnico-militar”, aliás explicita e sintomaticamente citada no comunicado: “fortalecimento da cooperação e intercâmbio militar”, como uma das metas da viagem. Compra de material militar russo? Técnicos russos assessorando o Exército brasileiro? Na América Latina a Rússia já vende material militar e oferece assessoramento para Nicarágua, Cuba e Venezuela.

 

Uma exceção que honra o Brasil Nas fileiras que apoiam (ou apoiaram) o governo Jair Bolsonaro, há forte oposição à ação do presidente brasileiro, informa a imprensa. Quereria acreditar que seja a grande maioria, seria tranquilizador, sinal de sanidade. A imprensa divulgou louváveis tentativas de vários ministros de impedir a viagem. Entre eles, Paulo Guedes se salientou, tem dado declarações inequívocas a respeito. Mas, entre todos, é de justiça, um se destaca pela contundência, amplitude e clareza das palavras, o ex-chanceler Ernesto Araújo. Em repetidas manifestações públicas, Araújo tem condenado de forma serena e motivada a viagem de Jair Bolsonaro à Rússia. Trata-se de atitude especialmente corajosa, pois é funcionário de carreira e também sua esposa. De outro modo, prejudica, por razões de consciência patriótica, sua carreira. O Brasil dos homens de bem não esquecerá tal valente e esclarecedora postura. No meio de suas declarações, destaco: “O Brasil está mostrando uma preferência pela Rússia. Neutralidade é você visitar ou os dois que estão em conflito ou nenhum. Importação de fertilizantes não necessitaria uma viagem presidencial. O que o Brasil está sinalizando? Que está bem com esse projeto euroasiático [a aliança russo-chinesa]. Que estamos muito confortáveis com isso. Ou seja, que somos indiferentes a coisas que deveriam ser fundamentais para o Brasil. Um mundo que privilegia a liberdade, que privilegia a democracia, que privilegia o livre mercado, que não é o que está surgindo”.

 

A era da servidão. O que está surgindo, resumi em “Palavras agressivamente claras”, com a parceria sem limites entre China e Rússia, se os dois países, secundados por potências alinhadas, conseguirem levar adiante seus objetivos confessados ▬ triunfar, enfim ▬ é a era da servidão. As advertências lúcidas de Ernesto Araújo foram direto ao centro da questão: não se pode favorecer a consolidação de uma aliança que apunhalará a liberdade no mundo, reduzindo a humanidade a servos de castas partidárias. E o ex-chanceler, com a ciência e experiência que adquiriu na academia e vida profissional, deixou ver de imediato o fundo de sua preocupação: a viagem neste momento do presidente Bolsonaro favorece a consolidação de uma aliança que pode receber no futuro a qualificação de escravocrata, caso se firme e se amplie nos termos em que foi anunciada às claras, relembro ▬ democracia e direitos humanos são os que existem na China e Rússia, modelos para o futuro.

 

Retificação de rumos. Poderá acontecer retificação de rumos? Claro que poderá, é o que espera o Brasil que presta. Haverá? Não sei. De qualquer maneira, os presentes acontecimentos, mantida a rota, pavimentam o caminho em aspecto importante para uma eventual administração petista. Celso Amorim, guru do petismo em política externa, já saudou com entusiasmo a aliança russo-chinesa, indicando para onde irão as simpatias e favorecimentos da acima mencionada administração. É triste o quadro? É. Contudo, condição prévia e imprescindível para um futuro de reconquista, restauração e prosperidade é realismo, olhos abertos, mesmo quando a realidade se apresente ameaçadora e deprimente. Que Deus nos ajude.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Palavras agressivamente claras

 

Palavras agressivamente claras

 

Péricles Capanema

 

Parceria sem limites e pacto sem precedentes. Celso Amorim, ministro do Exterior no governo Lula e ministro da Defesa na administração Dilma, hoje militante ativo do PT, provavelmente será figura influente em eventual novo governo petista. Dessa forma, suas opiniões, em especial em política externa, em que é virtual porta-voz do PT, precisam ser especialmente tomadas em conta. Vale a pena passar os olhos em artigo seu recente, publicado na Carta Capital e postado no site do PT. Nele, o ex-chanceler lulista não disfarça a admiração, até mesmo entusiasmo, diria, (o que em diplomata calculista e experimentado é sobremodo revelador) pela declaração conjunta divulgada em 4 de fevereiro último, na conclusão da viagem de Vladimir Putin a Pequim e assinada pelos dois governos, o da Rússia e o da China Comunista. Na ocasião foi anunciado pacto “sem precedentes” e parceria “sem limites” entre os dois países. O que entusiasmou Celso Amorim? A nova ordem mundial, ansiada por muitos, pode estar a caminho, celebrou. Em palavras agressivamente claras.

 

Fim da hegemonia dos Estados Unidos. Garante o antigo chefe da diplomacia no governo petista: “A declaração conjunta de Vladimir Putin e Xi Jinping constitui o fato mais importante desde o fim da Guerra Fria. Expressa o fim da era da hegemonia dos Estados Unidos”. Continua Celso Amorim: “Em documento denso, os líderes traçam os delineamentos de uma ordem mundial baseada em conceitos que diferem substancialmente daqueles sustentados pela potência até aqui dominante. Injetam sua própria visão de democracia e desenvolvimento e inserem questões cruciais como a defesa dos direitos humanos.”

 

Democracia e direitos humanos com conteúdos novos ▬ venenosos. De outro modo, temos documento político, mas também doutrinário ▬ declaração baseada em conceitos novos. Importa conhecê-los. Os dois conceitos fincados como base da aliança recém constituída são democracia e direitos humanos. Mas, atenção. São distantes e em vários c pontos contrários aos esposados pelos Estados Unidos da América e seus aliados. Breve, já existem e estão largamente aplicados. São os fundamentos da democracia chinesa e da democracia russa, elogiados no texto. São ainda os fundamentos dos direitos humanos, como são entendidos pelos governos russo e chinês, também elogiados no texto. É so copiar o que teria dado certo. Ao mesmo tempo, a declaração critica fortemente os conceitos de democracia e direitos humanos, como entendidos nos Estados Unidos e países ocidentais. Aqui na América Latina, já se destacam como partidários da aliança nova Cuba e Venezuela, onde temos exemplos de vários anos da aplicação dos novos conceitos que China e Rússia querem impor ao mundo. O antigo chanceler escolheu verbo significativo: injetar. Uma injeção de veneno na carne dos povos do mundo inteiro.

 

Era de servidão. Na verdade, é o anúncio de uma nova era da servidão e da novilíngua. Direitos humanos significam repressão estatal; democracia significa governo tirânico das castas partidárias. Aqui cabe registrar um comentário de Celso Amorim, colocado no fim de seu artigo: “O que a declaração diz é que o mundo mudou. Cabe a cada Estado e/ou a cada região (como a América do Sul) mostrar como vai se inserir na nova realidade. A viagem do presidente da Argentina, ­Alberto Fernández, a Moscou e Pequim, assim como a adesão do país ao projeto da Nova Rota da Seda, é uma indicação do que pode ocorrer”. Inserção submissa, é o que virá, com o tempo. Marcha da soberania para a condição de protetorado, ainda que inconfessado.  De forma agressivamente clara, o pressago diplomata afirma, a Argentina já dá os primeiros passos rumo a essa nova aliança.

 

Os modelos já existem. Dessa forma, tal democracia anunciada como remédio novo (para ser injetado, diria Amorim) já existe e funciona bem. Onde? Pergunta ingênua. Lá, na China e na Rússia: “As duas partes destacam que a Rússia e a China, como potências mundiais, com ricas heranças históricas e culturais, têm, de longa data, tradições de democracia, que estão baseadas em milenares experiências de desenvolvimento, amplo apoio popular e consideração dos interesses e necessidades dos cidadãos. A Rússia e a China garantem a seus cidadãos o direito de tomar parte por formas e meios variados na administração do Estado e da vida pública, segundo a lei. Os povos de ambos os países estão convencidos da via que eles escolheram”. Felizes e satisfeitos, portanto; aí está o modelo. s

 

Frente comum pela servidão. A declaração toma o partido da Rússia no caso da Ucrânia, censura tentativas da NATO de admitir novos membros, nega à TAIWAN o direito à liberdade, condena Austrália, Inglaterra, Estados Unidos (e também, de forma indireta, Índia e Japão) que estão trabalhando em conjunto para estabelecer uma aliança que barre o expansionismo chinês na Ásia. Condena ainda as “revoluções coloridas”, movimentos populares pró-ocidentais em países da outrora Cortina de Ferro (entre outros países, na antiga Iugoslávia, Geórgia, Ucrânia, Bielorrússia). Em vários outros e importantes temas, os dois países tomam posição comum. À vera, pacto sem precedentes, parceria sem limites. Enfim, dito de forma resumida, é a proclamação do retrocesso rumo à servidão, pelo esfaqueamento das posições que representam avanços rumo a maior liberdade.

 

Canto de sereia para o mundo em desenvolvimento. Celso Amorim saúda “a criação de um grande bloco eurasiano capaz de desafiar o poderio de Washington”. Bloco sedutor que terá poderes magnéticos, será sedutor. Realça o ex-chanceler: “Sem falar no soft power em relação às nações em desenvolvimento”.

 

Nova ordem mundial a caminho.  E conclui: “Para os que ansiavam por uma nova ordem mundial, ela pode estar a caminho”. Repito, a era da servidão a caminho. Basta ver, entre numerosos exemplos, como eram tratados os países na órbita de Moscou e como a China trata minorias no interior do país e operários em seus empreendimentos econômicos mundo afora. E é sinistramente pressago que o virtual porta-voz do PT em política externa a anuncie (a nova ordem) com entusiasmo. Termino com assunto paralelo e relacionado. Notei dias atrás em artigo (Vedação ao retrocesso social) que, pelo que me havia chegado ao conhecimento, nenhum dirigente esquerdista havia censurado a ida do presidente Jair Bolsonaro à Rússia. Completo. Um se manifestou. Perguntado a respeito, Celso Amorim comentou: “É a viagem certa no momento certo”. Agir de forma diferente, segundo ele, seria “um sinal de submissão a uma agenda de Washington”. Também aqui, palavras agressivamente claras.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Cachaça venenosa

 

Cachaça venenosa

 

Péricles Capanema

 

Coisa antiga, cachaça comunista na moda. Leio no cético e cáustico Eduardo Frieiro nota de 5 de junho de 1945 (livro do qual retiro o texto, “Novo Diário”): “Fernandinho, o Príncipe Consorte, faz ponto todas as noites no Café Celeste, no largo do Teatro. Em companhia da jovem esposa, filha do Governador, forma uma roda de moços letrícolas e jornalistas, que o ouvem com o acatamento devido a um príncipe da República. Fernandinho fuma cachimbo, distribui cigarros caros, bebe whisky (a quinze cruzeiros a dose) e faz propaganda comunista, prevendo o fim próximo da burguesia em decomposição. Agora é moda, o comunismo. Os moços estão contagiados. Os snobs das letras e das artes, aqui, no Rio e sobretudo em São Paulo, estão todos bebendo a cachaça comunista. Os próprios capitalistas, amedrontados, e os privilegiados da República, estão seguindo a onda. É chique”.

 

Feitiço. Tinha ficado chiquérrimo. Continua chiquérrimo, “mutatis mutandis”. Cachaça tem aqui significado de estranho sortilégio, punha na moda, dava prestígio, sentia-se bem situado quem aderisse ao comunismo ou a ele fosse simpático. Na época, ingrediente indispensável também, culto a Stalin. Breve, havia uma onda, era preciso segui-la para não despencar na rejeição e no ostracismo, ainda que disfarçados. A onda continua lambendo as mesmas praias. O Fernandinho acima mencionado é Fernando Sabino (1923-2004), que já começava a brilhar. Mais tarde, todo sabem, firmou-se como dos maiores escritores de sua geração. A esposa, Helena, é filha de Benedito Valadares. O local, Belo Horizonte. Comenta o escritor o ambiente miasmado de uma roda da “jeunesse dorée” e da juventude intelectualizada da capital mineira. Como existiriam às centenas, talvez aos milhares, Brasil afora. Mundo afora.

 

Bruxedo aliciante.  Informa Frieiro, convém notar e martelar, (na época, eram anotações despretensiosas, rabiscadas em caderno, sem intenção de publicá-las), boa parte ali no bar era comunista ou simpática ao comunismo, coqueluche que infestaria círculos sociais parecidos, nos grandes centros do pequeno Brasil de então ▬ o país tinha pouco mais de 40 milhões de habitantes, hoje quase 220 milhões; Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte tinham por volta de 2 milhões, 1,5 milhão e 200 mil habitantes respectivamente; hoje, mesma ordem aproximadamente, 6,8, 12,3 e 2,8 milhões). E não apenas em círculos sociais parecidos; o bafejo magnetizante, forte nas três mencionadas cidades, repito, espalhava-se no país inteiro.

 

Correntes vindas de longe. Tais ares não eram originais de Pindorama, outro ponto que de igual modo convém notar e martelar. Vinham de fora (ainda vêm), à maneira de camadas meteorológicas voadoras, que vão impregnando tudo. Tinham origens várias, em particular Paris, foco da vida intelectual, cidade então mais prestigiosa do mundo. A fermentação nos espíritos agigantava e deformava de maneira atraente a Rússia soviética e seu feitor, Stalin. Sortilégio poderoso, pois tudo no mencionado fenômeno era falso e postiço, mas estranhamente causava palpitação idolátrica. Seduzia em especial a juventude e setores intelectualizados. Repito, quase 80 anos depois, o mesmo fenômeno continua vivíssimo. Uma de suas manifestações, infecta a “esquerda caviar”. Infectam também outros ambientes, entre os quais “champagne socialist”, “limousine liberal”, “radical chic”, “red set”, “Salonkommunist”, “Chardonnay socialist”, “esquerda festiva”. Característica desse verdadeiro feitiço: a realidade dantesca e facilmente perceptível não interessa, de costas para ela o infectado cria dela uma imagem rósea na fantasia e até muda convicções anteriores. O exorcismo é possível, embora difícil, pois a imagem gruda fundo, por vezes è virtualmente inamovível. Aqui vai o antídoto: denunciá-lo, descrevendo-o bem; tais alquimias são túmidas de engodo, engano e totalitarismo intelectual.

 

Dispersão do vapor intoxicante. Não duraram muito, intocados, esses anos de hipnose generalizada. Seus efeitos diminuíram algum tanto, e até bastante, com a implantação desapiedada do comunismo na Europa Oriental, que aconteceu concomitante com denúncias pipocando em todas as partes da ação ditatorial do comunismo stalinista. Foi  o período da Guerra Fria. O próprio comunismo mudou de tática e apresentou feição menos carrancuda. Em 25 de fevereiro de 1956 no 20º Congresso do Partido Comunista, Nikita Kruschev denunciou os crimes de Stalin. Ficou então bonito ser comunista, mas não concordar com os métodos stalinistas, nem com o culto a Stalin. Apontei, sob pseudônimo Zeca Patafufo, em livro de 2019 “Brigo pelos homens atrofiados”, a possibilidade de tal fenômeno corroer resistências saudáveis em nossos dias e, acho, convém um registro agora: “No mundo da lua, vão agigantar tudo pela propaganda. Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imantada, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista; via nos intentos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza apavorante, a construção da utopia socialista dos “amanhãs que cantam”; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores”.

 

Mimetismo subserviente. Lembro rapidamente dois exemplos. O mesmo aconteceu na tomada do Camboja pelas hordas do “khmer rouge”, que implantou um comunismo primitivo e assassino no país. Houve por meses ditirambos da intelligentsia ocidental, magnetizada pelos encantos do comunismo cambojano. Até que o pus explodiu e não mais foi possível esconder o horror real. A “Revolução Cultural” despertou entusiasmo parecido. Num certo momento, o pus igualmente explodiu e cessaram os ditirambos.

 

Reforma agrária no Brasil. Para terminar vou para assunto conhecido, a reforma agrária do Brasil. Não são meses, são anos, décadas. Ela tem constituído uma sucessão invariável e ininterrupta de fracassos, de roubalheiras, de desgraças. Visitem um assentamento, qualquer deles, as favelas rurais. Fujam da propaganda e dos textos oficiais, perguntem aos agricultores que moram na região a realidade: falarão de drogas, de bagunça, de cachaçada, de contratos de gaveta, de roubos, de produtividade baixíssima. São bilhões e bilhões jogados fora por aproximadamente 60 anos. Mas continua cachaça venenosa, chiquérrimo falar bem dela. A administração federal, desde o Estatuto da Terra, 30 de novembro de 1964, do governo Castelo Branco, nunca parou, desembestada a esbórnia com o dinheiro público. Na prática, ninguém mexe nesse tumor de estimação. O INCRA, em seu site, informa a área total dos assentamentos: 87.535.596, isto é, 875.355 km2. Área de Minas Gerais: 586.528 km². Área do Rio Grande do Sul: 281.730 km2. Vamos somar as duas áreas, a de Minas e a do Rio Grande, 868.250 km2. É menor que a área expropriada para fins de reforma agrária. Área utilizada pelo agronegócio no Brasil que torna o país uma das potências mundiais na agricultura: em torno de 650 mil km2. Também muito menor que a área esperdiçada ou mal gasta na reforma agrária. Xico Graziano, um agredido pela realidade, engenheiro agrônomo, ex-secretário da Agricultura de São Paulo, ex-presidente do INCRA, em artigo já antigo (3 de maio de 2004) na Folha, apontava disparates em série da reforma agrária brasileira: “Os latifúndios se transformaram em empresar rurais. A terra, antes ociosa, agora bate recordes de produtividade. Gente simples, porém capaz, domina a tecnologia de ponta e dá show de competência. Cadê o sem-terra? Mudou-se para a cidade. O Brasil cresceu, urbanizou-se, virou potência mundial agrícola, sem necessidade de reforma agrária. A terra está produtiva, gerando milhões de empregos. Gente boa, miserável, mistura-se aos oportunistas e malandros para ganhar um lote nos assentamentos. Iludidas com promessa de futuro fácil, massas são manipuladas e treinadas para invadir fazendas e erguer lonas pretas. A classe média se apieda, enquanto a burguesia, assustada, apoia veladamente. Imaginar que um pobre alienado, sem aptidão nem cultura adequada, possa se tornar um agricultor de sucesso no mundo da tecnologia e dos mercados competitivos, significa raciocinar com o absurdo. Abstraindo os picaretas da reforma agrária, que engrossam as invasões, os demais, bem-intencionados, dificilmente sobreviverão”. Temos ainda vários documentos do TCU advertindo sobre a execução escandalosa da reforma agrária no Brasil. Lembro-os, mas não os glosarei aqui. Em resumo, a reforma agrária sempre foi aliciante, mas venenosa cachaça, sorvida em grandes haustos por todas as condições sociais. Se nada houvesse de reforma agrária no Brasil (zero), como é o caso em dezenas e dezenas de países, a situação no campo estaria muito melhor, haveria mais renda, teríamos mais empregos e mais investimentos, maior produtividade, menos pobres; e ainda existiria dinheiro para obras de infraestrutura, saúde, educação ▬ foi torrado irresponsável e euforicamente no processo de reforma agrária. Seria normalíssimo a instauração de uma CPI para investigar a reforma agrária no Brasil. É claro que nunca será instalada. As patrulhas não deixam; mais ainda, parte da opinião pública é chegada numa cachacinha venenosa. Poderia escrever Eduardo Frieiro a respeito: “Agora é moda, o comunismo [ou a reforma agrária]. Os moços estão contagiados. Os snobs das letras e das artes, aqui, no Rio e sobretudo em São Paulo, estão todos bebendo a cachaça comunista. Os próprios capitalistas estão seguindo a onda. É chique”.

 

O MST está fazendo as malas para voltar a crucificar o campo. Vai desaparecer o flagelo da reforma agrária? Parece que não. Posta a presente situação, Lula tem grandes chances de vencer a eleição. O INCRA, como é costume do PT, será entregue para as suas correntes extremadas. O MST receberá dinheiro farto. E a reforma agrária voltará triunfante. Simplificando, ou a opinião nacional recusa cachaças venenosas ou, com dor afirmo, não tem saída, as portas de futuro próspero estão fechadas para o Brasil.

 

Brasil em péssima companhia

 

Brasil em péssima companhia

 

Péricles Capanema

 

Liberdade econômica no mundo. Sediada em Washington, a Heritage Foundation, think tank conhecido e respeitado, defensor da liberdade econômica, de outro modo, da propriedade privada e da livre iniciativa, publicou seu índice (pontuação) anual de liberdade econômica de 2021 (Index of Economic Freedom, está na rede). Estão listados 178 países, desde os que mais favorecem o empreendedorismo e a iniciativa econômica, até os que reprimem brutalmente a liberdade de o homem empreender, crescer, ser dono de bens e garantir o futuro para si e sua família. De outro modo, no fundo, resumidamente, livre iniciativa versus comunismo.

 

Critérios do índice. O indicador é composto de muitos componentes, considera vários critérios, aqui só vou informar o índice síntese (ou pontuação, ou escore). Ele vai de 0 a 100. Considera país livre, isto é, com espaçosa liberdade econômica, o que obtiver pontuação de 80 a 100. A pontuação de francamente livre ou via de regra livre vai de 70 a 79,9 (mostly free). O país que está entre 60 e 69,9 tem o rótulo moderadamente livre (moderately free). O que se espreme entre 50 e 59,9 é classificado como em geral não-livre (mostly unfree). De 49,9 a 0, (repressed) reprimido, país de fato sem liberdade econômica real.

 

Cingapura campeã, Coreia do Norte lanterninha. O primeiro posto da listagem pertence a Cingapura (89,7), cidade-estado de 5,6 milhões de habitantes, no mundo o país que mais estimula investimentos e emprego; breve, ativa o crescimento pela proteção da propriedade privada e da livre iniciativa. O segundo lugar é da Nova Zelândia (83,9). A Suíça (81,9) está em quarto. Relação das vinte primeiras posições: Cingapura, Nova Zelândia, Austrália (82,4), Suíça, Irlanda (81,4), Taiwan (78,6), Reino Unido (78,4), Estônia (78,2), Canadá (77,9), Dinamarca (77,8), Islândia (77,4), Georgia (77,2), Ilhas Maurício (77,0), União dos Emirados Árabes (76,9), Lituânia (76,9), Holanda (76,8), Finlândia (76,1), Luxemburgo (76,0), Chile (75,2), Estados Unidos (74,8). Importa notar, existem na lista três países que foram comunistas, vegetavam no pântano soviético e, em redondos trinta anos, adotaram medidas que os colocaram no topo do grupo dos países que estimulam a prosperidade de suas populações. Breve, aplicaram na legislação cavalo de pau vigoroso e dispararam no rumo oposto. Vamos agora para o fim da lista, o charco da paradeira. O país de economia mais fechada no mundo [melhorando, do conjunto dos países pesquisados, dos quais é possível obter dados suficientes] é a Coreia de Norte (5,2). Não espanta. Está no 178º lugar. Até o começo da década de 50, as duas Coreias (que ainda não existiam) tinham nível econômico semelhante. Hoje, embora os dados não sejam muito objetivos, estima-se em geral que o PIB per capita da Coreia do Sul seja 20 vezes o da Coreia do Norte. Em 177º aparece a Venezuela (24,7). O antepenúltimo é Cuba (28,1). São os mais fechados, coletivistas, próximos ao comunismo integral, locais de repressão, miséria e falta de perspectivas para o povo. Os dois da América Latina são modelos para o PT e xodós de Vladimir Putin, seu grande protetor. E da China também.

 

Brasil em má companhia. Já sei, o leitor está querendo saber onde está o Brasil. Já digo, está em colocação deprimente em 2021, o 143º de 178, pontuação 53,4 (mostly unfree). Os anos anteriores trazem pontuação e colocação semelhante. Estão em condição melhor que o Brasil na lista de 2021 (claro, nem vou falar que em posição honrosa estão todos os países ricos do mundo), entre outros: Bulgária, Cazaquistão, Polônia, Romênia, Eslovênia, Croácia, Hungria, Mongólia, Rússia, Egito, China, Camboja, Ucrânia. Paro por aqui, sem deixar de notar numerosos países que fugiram do comunismo há pouco e hoje têm economia mais abertas que o Brasil. É de corar frade de pedra.

 

Somos pobres por opção.  Aqui vão as pontuações do Brasil a partir de 2010 no Index of Economic Freedom: 2010 (55,6); 2011 (56,3); 2012 (57,3); 2013 (57,7); 2014 (56,6); 2015 (56,6); 2016 (56,5); 2017 (52,9; 2018 (51,4); 2019 (51,9); 2020 (53,7). Antes de 2010 não era muito diferente. Outrossim, estamos empantanados em pontuações próximas a 49,9, começo da zona dos países não-livres. Não espanta que Paulo Guedes tenha dito dias atrás que a extração do petróleo poderia ser até quatro vezes mais rápida se a Petrobrás estivesse em mão privadas. E que a Eletrobrás precisa investir 15 bilhões de reais por ano, mas só consegue aplicar 3 bilhões. “Precisamos libertar (privatizar) a empresa ou ela vai ser reduzida à insignificância.  Somos pobres por opção”. Lamentou desconsolado a não privatização da Eletrobrás e Correios que espera acontecer em 2022: “Esperamos que em quatro anos consigamos vender duas estatais. Não é possível que um governo que se elegeu prometendo isso [a privatização], não possa vender duas empresas que estão descapitalizadas e não conseguem manter suas fatias de mercado.” Como fundo de quadro, havia a constatação, levantada pela reportagem: no governo Bolsonaro, nenhuma estatal foi vendida. Apenas como comparação, durante o primeiro governo de FHC foram vendidas 80 estatais. E Salim Mattar, batalhador pela iniciativa privada, lamentou sua credulidade: “O governo não é liberal e eu acreditei no candidato Bolsonaro. No candidato que falava em privatizar a 'TV da Dilma', a empresa do trem bala. Mas foi um discurso de campanha”.

 

Sair do atoleiro. Posta a situação, não é fácil sair do brejo ▬ fonte de sofrimento popular, renda baixa, menos empregos. O Brasil em 1980 era 50º na renda per capita. Hoje, é 85º. Contra essa tendência mórbida de estatização e intervencionismo (engessamento da economia), com inevitável empobrecimento da população, temos no Brasil fortes correntes de opinião partidárias da livre iniciativa e da propriedade privada. Penso, faltaria ainda enfatizar suficientemente a importância central do princípio de subsidiariedade, que aponta o papel supletivo do Estado em relação à sociedade. E aqui a defesa de política enérgica de privatizações. Sei bem, a entrega de setores e empresas estatais para a iniciativa privada não esgota o programa de liberdade econômica, e muito menos engloba agenda inteira de restauração social, mas é imprescindível e constitui sintoma importante do rumo geral.

 

Retificar rumos e ampliar horizontes. Pouco antes de morrer, diante de três ex-ministros do governo Bolsonaro (Abraham Weintraub, Ricardo Salles e Ernesto Araújo), Olavo de Carvalho teve reparos que apontam para necessidade premente de retificar rumos e ampliar horizontes, ouvidos aliás em silêncio pelos mencionados antigos participantes do governo: “A briga já está perdida. Não existe direita, só bolsonarismo”. De outro modo, falta formação doutrinária, posições claras em um leque grande de matérias, articulação. As ponderações suscitam temas de reflexão para quem aspira ver o Brasil no rumo certo. Martelo, refletir, pensar. A ação virá logicamente depois; e aí terá impacto maior. A propósito, sempre me impressionaram particularmente comentários do prof. Plinio Correa de Oliveira sobre a maneira de agir do marechal Ferdinand Foch (1851-1929), sob algum ângulo, o vencedor da 1ª Guerra Mundial. Dali eu recolho: “Foch, homem imperturbável. [...] a regularidade e a calma geram um clima de confiança e serenidade, condição essencial para se realizar um trabalho sério. Ou, muito mais do que isso, uma luta séria. Porque lutar é mais do que trabalhar. Mais do que lutar, é pensar; e mais do que pensar, é rezar”. Concluo, reafirmo o convite inicial: refletir a respeito dos temas suscitados na matéria, mas acrescento adento imprescindível: rezar, com fé. Que Deus nos ajude.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Vedação ao retrocesso social

 

Vedação ao retrocesso social

 

Péricles Capanema

 

Vou refletir brevemente sobre quatro assuntos candentes, que provavelmente repercutirão, já a partir de agora, pelos anos e décadas afora. Depois trato, tendo como pano de fundo fato recente, do princípio da vedação ao retrocesso social [ou proibição do retrocesso social], exigência da legislação brasileira em todos os seus níveis. Será coisa muito atual, podem apostar.

 

Argentina se aproxima da China e da Rússia. Alberto Fernández, presidente da Argentina, vindo do Moscou, passou por Pequim. Foi lá sacramentar contrato de 9 bilhões de dólares (há notícias que falam em 20 bilhões) para construção de usina de produção de energia nuclear. Tudo ali vai ser chinês. É laço forte e duradouro da China comunista com a Argentina; no caso, mais um passo na marcha do isolamento progressivo dos Estados Unidos na América Latina. O normal teria sido a assinatura de pacto tão delicado (energia nuclear) com Estados Unidos, Alemanha ou Inglaterra. Ou outro país semelhante. Não, agora é com a China comunista. Emergindo das trevas do noticiário escasso, o fato brilha para o mundo como aviso claro e pressago. E assim, acordo assinado entre a estatal Nucleoelétrica Argentina (NASA) e a estatal chinesa Corporação Nuclear Nacional da China viabilizará a primeira central nuclear construída no país desde 1981. Aderiu ainda à iniciativa chinesa intitulada Rota da Seda. Em Moscou, afirmou Alberto Fernández: “Estou empenhado em que a Argentina deixe de ter essa dependência tão grande que tem com o FMI e com os Estados Unidos. É preciso abrir caminho para outros lados e me parece que a Rússia tem um lugar muito importante”. Continuou prognosticando que a Argentina será “a porta de entrada para que a Rússia entre na América Latina mais decididamente”. A Rússia já é o grande apoio das ditaduras venezuelana e cubana. De outro modo, outro passo no distanciamento em relação aos Estados Unidos.

 

China e Rússia, parceria “sem limites”. Na mesma ocasião, Vladimir Putin foi a Pequim e assinou vários tratados de cooperação econômica. Putin e Xi Jinping declararam apoio mútuo em seus choques com o Ocidente. Entre os pontos em destaque, apoio chinês à posição russa no caso da Ucrânia, apoio russo à anexação de Taiwan e silêncio m relação à perseguição de dissidentes, em particular da minoria muçulmana dos uyghur, em que abundam acusações provenientes de diferentes setores ideológicos de genocídio e internamento de opositores em campos de concentração. Importa ressaltar, presenciamos constituição de frente comum, cerco, contra os Estados Unidos, com graves prejuízos aos interesses do Ocidente.

 

A Hungria se distancia dos Estados Unidos. A Hungria faz parte da NATO, de momento de forma particular atacada por Putin, por estar se opondo energicamente, apoiada pelos Estados Unidos, à possível (para alguns iminente) invasão da Ucrânia. E por constituir perene força contrária à anexação ou pelo menos inclusão na zona de influência russa dos países da Europa Oriental. Putin, antigo oficial da KGB, não disfarça sua admiração pelo poder soviético. Em abril de 2005, falando no Parlamento, afirmou o potentado russo: “Deve ser reconhecido ▬ e eu já disse isso antes ▬ o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século”. No momento em que cerrar fileiras ao lado dos Estados Unidos é fundamental ▬ como, entre outros países, têm feito Inglaterra e Polônia ▬, o premiê húngaro se distanciou desafiadoramente de Washington. De passagem, cumpre ressaltar a posição corajosa e simpática do governo da Polônia, país potencialmente tão ameaçado quanto a Ucrânia. O primeiro-ministro polonês, Mateusz Morawiecki, não foi a Moscou, fez o trajeto honroso, desembarcou em Kiev, a capital do país ameaçado e agredido, manifestando ali claro apoio à Ucrânia. E o porta-voz do governo polonês sem nenhum disfarce confirmou: “A Polônia apoia a Ucrânia para evitar a agressão russa”. Em Washington, Olaf Scholz, o chanceler alemão, teve encontro com Joe Biden e em entrevista conjunta exprimiu unidade de seu país com a posição norte-americana e afiançou em inglês: “Estaremos unidos, agiremos juntos, tomaremos todas as medidas necessárias”. Em rumo contrário, Viktor Orbán foi a Moscou, a capital do país agressor, ali se reuniu durante cinco horas com Vladimir Putin e na saída do encontro cordial afirmou que as planejadas sanções contra a Ucrânia, em caso de agressão russa, “fracassarão” e ainda acrescentou que as demandas de Putin eram razoáveis.

 

Jair Bolsonaro irá à Moscou em 14 de fevereiro. Em tal ambiente, não poderia ser mais prejudicial aos mais fundamentais interesses brasileiros a iminente viagem de Jair Bolsonaro a Moscou. É óbvio que privadamente os Estados Unidos e outros membros da Aliança Atlântica pediram seu adiamento ou cancelamento. E a imprensa noticiou em 7 de fevereiro que ministros brasileiros, entre os quais Carlos Alberto França, estavam reunidos no Palácio do Planalto com o Presidente da República para tentar dissuadi-lo da viagem. Infelizmente, pare ter sido infrutífera (pelo menos até agora, dia 8, quando escrevo o artigo) a meritória gestão dos ministros brasileiros. Acontecerá a desastrosa viagem. Na volta de Moscou, Bolsonaro passará por Budapeste e visitará Viktor Orbán. Se Lula ganhar as eleições em outubro próximo, ele irá acelerar este caminho de aproximação com Rússia e China e afastamento dos Estados Unidos, na verdade, caminho de servidão, marcha batida rumo à condição efetiva de protetorado chinês ▬ será a morte real, ainda que inconfessada e disfarçada, da soberania nacional. Tentando justificar o injustificável, Jair Bolsonaro garantiu no cercadinho que Putin é “conservador” à pergunta de apoiador se Putin era “gente da gente”. O fato doloroso, aflitivo, dispensa aqui maiores comentários. A propósito, não tive conhecimento de nenhuma declaração de políticos de esquerda censurando a ida do presidente Bolsonaro à Rússia. Conhecem bem o que lhes favorece.

 

Vedação ao retrocesso social. O assunto do texto. Existe norma (ou princípio, não vou entrar aqui na discussão) no Direito brasileiro, pouco comentada, de interpretação controvertida, que é a “vedação ao retrocesso social”. É escudo de modo especial dos mais fracos. Tem seu fundamento na dignidade da pessoa humana, nos princípios da confiança e da segurança jurídica, bem como no da máxima efetividade das disposições constitucionais. Segundo tal disposição, o legislador não pode suprimir ou reduzir, ainda que parcialmente, o direito social existente.

 

Ministério da Agricultura como calmante. Pensava em tal princípio enquanto lia nos órgãos de divulgação que Lula, além de oferecer a vice-presidência a Geraldo Alckmin, dará a ele, de lambuja, o ministério da Agricultura. Logo depois, veio a postagem significativa do ex-governador de São Paulo em que ele aparece capinando a terra. “O #tbt de hoje vai pra quem ficou curioso sobre o meu esporte e passatempo favorito: capinar. É aí que eu aproveito pra botar as ideias em ordem. #GeraldoTáOn”. De outro modo, na necessidade absoluta de baixar a atual rejeição para o 2º turno, Lula acha (é o conjeturável) que não está sendo suficiente em sua política de baixar o pavor que o PT causa entregar a vice-presidência a Alckmin. É preciso ainda prometer o ministério da Agricultura a alguém que diminua ainda mais (adormeça) o horror em particular do setor rural por governos petistas. O horror, aliás, tem motivos ótimos. Eis alguns deles. O INCRA será aparelhado com a ala radical do PT, é sua cota histórica, voltará ufano o MST, com financiamento farto para agitação rural. Com isso, cairá a segurança jurídica, a confiança nas instituições; no campo tenderá a baixar a renda, cair o emprego, minguar o investimento. Alimentos em menor oferta acarretarão menos exportações e, internamente, carestia. É um gigantesco retrocesso social no horizonte brasileiro. Aliás, as notícias comentadas acima apontam para inequívocos retrocessos sociais no mundo inteiro.

 

Avanços sociais. O único avanço social sério é o que promove o desenvolvimento ordenado das personalidades. Das notícias comentadas se desenha, pela força da objetividade, quadro dantesco: aumento da coerção, cerceamento às possibilidades de crescimento, liberdades naturais esfaqueadas. Breve, asfixia social e atrofia no desenvolvimento humano. Teremos, de alto a baixo, retrocessos sociais. Foi bem escolhido o título da matéria.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Um país sem Prêmios Nobel

 

Um país sem Prêmios Nobel

 

Péricles Capanema

 

Prêmio cobiçado por todos. O Prêmio Nobel, sabe-se, excetuado o Prêmio Nobel da Paz, é o mais prestigioso galardão de excelência intelectual do mundo. Vem sendo concedido desde 1901, cerca de mil pessoas já o receberam, além de perto de trinta organizações. Instituído por Alfred Nobel, químico milionário, que doou 94% de sua fortuna para financiá-lo, premia nas áreas de Química, Física, Fisiologia ou Medicina, Literatura. O Prêmio Nobel da Paz, já disse, tem motivação diferente. Desde 1968 existe o chamado Prêmio Nobel de Economia, pago pelo Banco da Suécia, de mesma inspiração, grandes contribuições na esfera da Economia. Os Estados Unidos têm cerca de 400 premiados, Alemanha e Inglaterra caminham para 150 cada uma, a França passou dos setenta. Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Peru, Venezuela, na América Latina, têm nacionais galardoados. Entre os premiados estão Henry Kissinger, Obama, Einstein, Hemingway, Madame Curie (ganhou duas vezes, uma na Física, outra na Química).

 

Prêmio inacessível a brasileiros? Brasileiro nunca ganhou. É normal? Será, ninguém entre nós até agora mereceu a premiação, explicação simples assim. Falou-se, muitos se lembrarão, durante poucos anos, em Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade para o Nobel de Literatura. Ficou no falatório. De outro lado, parece anormal, choca, durante mais de cem anos jamais um brasileiro em nenhum dos seis ramos ter obtido tal láurea. Entristece; tanta gente já recebeu, nenhum de nós; de certa maneira, dá até um pouco de vergonha. O que há?

 

A busca de razões. Naturalmente o espírito é empurrado a pensar nas razões.  Por que nunca? Pretendo agora levantar uma delas, a questão inteira é bem mais ampla, não cabe num artigo, faltam sobretudo entre nós ambientes culturais que prestigiem (e sancionem moralmente) determinados estilos de vida, que marcam família e círculos sociais. De um aspecto importante, porém, seria factível tratar. Georges Dumas (1866-1946), médico, filosofo e psicólogo, foi dos intelectuais franceses de destaque no século XX. Conheceu bem o Brasil, chegou a ser chamado de “embaixador cultural”, tal sua ação no país. Em 1935, no Rio de Janeiro, teve longas conversas com Gustavo Capanema, então ministro da Educação, sobre razões do problema acima mencionado ▬ falta de excelência na produção intelectual. O ministro pediu-lhe uma carta em que descrevesse suas opiniões a respeito, era uma forma de perenizá-las, deixa-las registradas para o futuro. Foi o que fez Dumas, a bordo do transatlântico Campana, missiva de 1º de setembro de 1935:

 

Inteligências brilhantes, mas relativamente pouco produtivas. De plano constata ele a contradição “entre o valor intelectual de tantos brasileiros e a relativa rareza de produção intelectual. Todos os professores franceses que vêm ao Brasil se impressionam com a cultura e a inteligência dos ouvintes e estudantes que conhecem mais de perto, mas também se espantam pelo fato de que de tanta inteligência e tanta cultura se originem tão poucas obras que contem na produção mundial. A contradição é menos pronunciada nas ciências”. O pensador francês discorre sobre o que, segundo ele, explicaria a pobreza brasileira na produção intelectual: “Não haver no Brasil organismos encarregados de ensinar à juventude as disciplinas gerais de pesquisa e de trabalho na esfera científica e, mais ainda, na esfera filosófica, histórica e literária”. Registra a mais outra lacuna, o Brasil tem muitos autodidatas, mas pouca gente formada nos métodos de pesquisa e de crítica, condição essencial para a grande produção intelectual. Breve, faltam os instrumentos básicos, formação sistemática de pesquisa e crítica, em especial nas disciplinas de conhecimentos gerais, filosofia, história, literatura. O pessoal borboleteia demais.

 

A veleidade atrapalha. Georges Dumas aponta defeito que impede produção intelectual séria: veleidade. A juventude que conheceu, “rica de dons intelectuais e cheia de cultura”, procura mais gozo intelectual que formação do espírito: “A questão é saber se ela continuará a se comprazer com o gozo intelectual para a qual a levam naturalmente seus gostos ou se ela buscará associar a este prazer intelectual a preocupação constante de fazer a cultura servir à formação do espírito”. Enfim, deixar de lado exibições fátuas, exibicionismos, fruição injustificada, e se concentrar na procura da verdade e na formação (desenvolvimento) da personalidade.

 

Redação correta é fundamental. Como conclusão de suas observações Georges Dumas enfatiza um ponto de alicerce, a necessidade de exercícios de boa redação, pelo menos, digo, simplicidade, clareza, coerência, sequência lógica: “O senhor me disse, em uma de nossas conversas, que não se trata somente de ler bons autores, mas a grande questão era saber como escrever, como tornar-se um autor, por si mesmo, grande ou pequeno, eu penso da mesma maneira”. Enfim, que seja uma redação autêntica, que tenha como uma das bases o conhecimento de bons autores. O que mais para ser autor, grande ou pequeno, “por si mesmo”, água que nasce da fonte? Daquele mato (da carta) não sairá coelho. Ele não trata da questão.

 

Paciência, observação plácida e reflexão própria. O coelho vai sair, mas de outro mato. Amigo meu de décadas, grande pesquisador e colecionador de textos de valor, enviou-me comentários (maio de 1970) do professor Plinio Corrêa de Oliveira sobre uma característica da vida intelectual saudável, presente com frequência no Brasil. Dr. Plinio a compara com o modo de trabalhar de grandes pintores, que vão completando vários quadros ao longo de anos. Um dia completam uma flor em um; no outro dia será um gesto, inspirado pelo que viu na rua, em outro. E assim vai, nada mecânico, certo ar aparentemente desordenado, dependendo de maturação interior. Em suma, amadurecimento paciente, fruto de observação e reflexões, ao longo de anos. No terreno da formação intelectual, um campo, por analogia, vai fornecendo ao outro, material que ajuda o trabalho de aperfeiçoamento. “Se bem que eu aprecie os estudos centrados, aprecio muito essas divagações colaterais em que outros universos entram e enriquecem de sua seiva o estudo que a gente está tocando. Porque é a partir disso ▬ que é um pouco fatigante ▬ que está a capacidade de relacionar, que é muito importante. É um ponto forte do povo brasileiro, tem uma capacidade de relacionar que é simplesmente prodigiosa. Tem seu paralelo na capacidade de intuir”.

 

Um tecido de vários fios intelectuais. O prof. Plinio Corrêa de Oliveira conclui seu comentário, favorecedor da vida intelectual autêntica, água que sai da própria nascente: “O indivíduo tem vários fios intelectuais, com eles é capaz de tecer sua vida intelectual, relacionada com o mais profundo de sua personalidade. É assim que eu concebo a vida intelectual”.

 

Somatória benéfica. De um lado, sistema. Favorece o aproveitamento das potencialidades e do esforço. De outro, utilização de uma antena que multiplica talentos: a capacidade de relacionar vários universos. É caminho que evita desvios, desenvolve dons, torna-os aproveitáveis para todos, pode levar longe. No estuário do processo, produções intelectuais excelentes. Trilhá-lo, como fenômeno social, minha modesta opinião, vale mais que empilhar Prêmios Nobel. A origem do artigo é simples: enquanto lia, agradecido, o material enviado pelo meu amigo, ocorreu-me compartilhá-lo com pessoas a quem ele poderia interessar, meus eventuais leitores. Espero que lhes seja útil. Acabou.