Cachaça venenosa
Péricles Capanema
Coisa antiga, cachaça comunista na moda. Leio no cético e cáustico Eduardo Frieiro nota de 5 de
junho de 1945 (livro do qual retiro o texto, “Novo Diário”): “Fernandinho, o
Príncipe Consorte, faz ponto todas as noites no Café Celeste, no largo do
Teatro. Em companhia da jovem esposa, filha do Governador, forma uma roda de
moços letrícolas e jornalistas, que o ouvem com o acatamento devido a um
príncipe da República. Fernandinho fuma cachimbo, distribui cigarros caros,
bebe whisky (a quinze cruzeiros a dose) e faz propaganda comunista, prevendo o
fim próximo da burguesia em decomposição. Agora é moda, o comunismo. Os moços
estão contagiados. Os snobs das letras e das artes, aqui, no Rio e sobretudo em
São Paulo, estão todos bebendo a cachaça comunista. Os próprios capitalistas,
amedrontados, e os privilegiados da República, estão seguindo a onda. É
chique”.
Feitiço. Tinha
ficado chiquérrimo. Continua chiquérrimo, “mutatis mutandis”. Cachaça tem aqui significado
de estranho sortilégio, punha na moda, dava prestígio, sentia-se bem situado quem
aderisse ao comunismo ou a ele fosse simpático. Na época, ingrediente
indispensável também, culto a Stalin. Breve, havia uma onda, era preciso
segui-la para não despencar na rejeição e no ostracismo, ainda que disfarçados.
A onda continua lambendo as mesmas praias. O Fernandinho acima mencionado é
Fernando Sabino (1923-2004), que já começava a brilhar. Mais tarde, todo sabem,
firmou-se como dos maiores escritores de sua geração. A esposa, Helena, é filha
de Benedito Valadares. O local, Belo Horizonte. Comenta o escritor o ambiente miasmado
de uma roda da “jeunesse dorée” e da juventude intelectualizada da capital
mineira. Como existiriam às centenas, talvez aos milhares, Brasil afora. Mundo
afora.
Bruxedo aliciante. Informa Frieiro,
convém notar e martelar, (na época, eram anotações despretensiosas, rabiscadas
em caderno, sem intenção de publicá-las), boa parte ali no bar era comunista ou
simpática ao comunismo, coqueluche que infestaria círculos sociais parecidos, nos
grandes centros do pequeno Brasil de então ▬ o país tinha pouco mais de 40
milhões de habitantes, hoje quase 220 milhões; Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
Horizonte tinham por volta de 2 milhões, 1,5 milhão e 200 mil habitantes
respectivamente; hoje, mesma ordem aproximadamente, 6,8, 12,3 e 2,8 milhões). E
não apenas em círculos sociais parecidos; o bafejo magnetizante, forte nas três
mencionadas cidades, repito, espalhava-se no país inteiro.
Correntes vindas de longe. Tais ares não eram originais de Pindorama, outro ponto
que de igual modo convém notar e martelar. Vinham de fora (ainda vêm), à
maneira de camadas meteorológicas voadoras, que vão impregnando tudo. Tinham origens
várias, em particular Paris, foco da vida intelectual, cidade então mais
prestigiosa do mundo. A fermentação nos espíritos agigantava e deformava de
maneira atraente a Rússia soviética e seu feitor, Stalin. Sortilégio poderoso, pois
tudo no mencionado fenômeno era falso e postiço, mas estranhamente causava palpitação
idolátrica. Seduzia em especial a juventude e setores intelectualizados. Repito,
quase 80 anos depois, o mesmo fenômeno continua vivíssimo. Uma de suas
manifestações, infecta a “esquerda caviar”. Infectam também outros ambientes,
entre os quais “champagne socialist”, “limousine liberal”, “radical chic”, “red
set”, “Salonkommunist”, “Chardonnay socialist”, “esquerda festiva”. Característica
desse verdadeiro feitiço: a realidade dantesca e facilmente perceptível não
interessa, de costas para ela o infectado cria dela uma imagem rósea na
fantasia e até muda convicções anteriores. O exorcismo é possível, embora
difícil, pois a imagem gruda fundo, por vezes è virtualmente inamovível. Aqui
vai o antídoto: denunciá-lo, descrevendo-o bem; tais alquimias são túmidas de engodo,
engano e totalitarismo intelectual.
Dispersão do vapor intoxicante. Não duraram muito, intocados, esses anos de hipnose generalizada.
Seus efeitos diminuíram algum tanto, e até bastante, com a implantação
desapiedada do comunismo na Europa Oriental, que aconteceu concomitante com denúncias
pipocando em todas as partes da ação ditatorial do comunismo stalinista. Foi o período da Guerra Fria. O próprio comunismo
mudou de tática e apresentou feição menos carrancuda. Em 25 de fevereiro de
1956 no 20º Congresso do Partido Comunista,
Nikita Kruschev denunciou os crimes de Stalin. Ficou então bonito ser
comunista, mas não concordar com os métodos stalinistas, nem com o culto a
Stalin. Apontei, sob pseudônimo Zeca Patafufo, em livro de 2019 “Brigo pelos
homens atrofiados”, a possibilidade de tal fenômeno corroer resistências
saudáveis em nossos dias e, acho, convém um registro agora: “No mundo da
lua, vão agigantar tudo pela propaganda. Pode estar iminente avalancha de soft
power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já
desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em
cortejo, imantada, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões
sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado
certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de
torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo
pela intelligentsia progressista; via nos intentos mitomaníacos de engenharia
social, executados com frieza apavorante, a construção da utopia socialista dos
“amanhãs que cantam”; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores”.
Mimetismo subserviente. Lembro rapidamente dois exemplos. O mesmo aconteceu na
tomada do Camboja pelas hordas do “khmer rouge”, que implantou um comunismo
primitivo e assassino no país. Houve por meses ditirambos da intelligentsia
ocidental, magnetizada pelos encantos do comunismo cambojano. Até que o pus
explodiu e não mais foi possível esconder o horror real. A “Revolução Cultural”
despertou entusiasmo parecido. Num certo momento, o pus igualmente explodiu e
cessaram os ditirambos.
Reforma agrária no Brasil. Para terminar vou para assunto conhecido, a reforma
agrária do Brasil. Não são meses, são anos, décadas. Ela tem constituído uma
sucessão invariável e ininterrupta de fracassos, de roubalheiras, de desgraças.
Visitem um assentamento, qualquer deles, as favelas rurais. Fujam da propaganda
e dos textos oficiais, perguntem aos agricultores que moram na região a realidade:
falarão de drogas, de bagunça, de cachaçada, de contratos de gaveta, de roubos,
de produtividade baixíssima. São bilhões e bilhões jogados fora por
aproximadamente 60 anos. Mas continua cachaça venenosa, chiquérrimo falar bem
dela. A administração federal, desde o Estatuto da Terra, 30 de novembro de
1964, do governo Castelo Branco, nunca parou, desembestada a esbórnia com o
dinheiro público. Na prática, ninguém mexe nesse tumor de estimação. O INCRA,
em seu site, informa a área total dos assentamentos: 87.535.596, isto é, 875.355
km2. Área de Minas Gerais: 586.528 km².
Área do Rio Grande do Sul: 281.730 km2. Vamos somar as duas áreas, a de Minas e
a do Rio Grande, 868.250 km2. É menor que a área expropriada para fins de
reforma agrária. Área utilizada pelo agronegócio no Brasil que torna o país uma
das potências mundiais na agricultura: em torno de 650 mil km2. Também muito menor
que a área esperdiçada ou mal gasta na reforma agrária. Xico Graziano, um
agredido pela realidade, engenheiro agrônomo, ex-secretário da Agricultura de
São Paulo, ex-presidente do INCRA, em artigo já antigo (3 de maio de 2004) na
Folha, apontava disparates em série da reforma agrária brasileira: “Os
latifúndios se transformaram em empresar rurais. A terra, antes ociosa, agora
bate recordes de produtividade. Gente simples, porém capaz, domina a tecnologia
de ponta e dá show de competência. Cadê o sem-terra? Mudou-se para a cidade. O
Brasil cresceu, urbanizou-se, virou potência mundial agrícola, sem necessidade
de reforma agrária. A terra está produtiva, gerando milhões de empregos. Gente boa,
miserável, mistura-se aos oportunistas e malandros para ganhar um lote nos
assentamentos. Iludidas com promessa de futuro fácil, massas são manipuladas e
treinadas para invadir fazendas e erguer lonas pretas. A classe média se
apieda, enquanto a burguesia, assustada, apoia veladamente. Imaginar que um
pobre alienado, sem aptidão nem cultura adequada, possa se tornar um agricultor
de sucesso no mundo da tecnologia e dos mercados competitivos, significa
raciocinar com o absurdo. Abstraindo os picaretas da reforma agrária, que
engrossam as invasões, os demais, bem-intencionados, dificilmente
sobreviverão”. Temos ainda vários documentos do TCU advertindo sobre a execução
escandalosa da reforma agrária no Brasil. Lembro-os, mas não os glosarei aqui.
Em resumo, a reforma agrária sempre foi aliciante, mas venenosa cachaça,
sorvida em grandes haustos por todas as condições sociais. Se nada houvesse de
reforma agrária no Brasil (zero), como é o caso em dezenas e dezenas de países,
a situação no campo estaria muito melhor, haveria mais renda, teríamos mais
empregos e mais investimentos, maior produtividade, menos pobres; e ainda existiria
dinheiro para obras de infraestrutura, saúde, educação ▬ foi torrado irresponsável
e euforicamente no processo de reforma agrária. Seria normalíssimo a
instauração de uma CPI para investigar a reforma agrária no Brasil. É claro que
nunca será instalada. As patrulhas não deixam; mais ainda, parte da opinião
pública é chegada numa cachacinha venenosa. Poderia escrever Eduardo Frieiro a
respeito: “Agora é moda, o comunismo [ou a reforma agrária]. Os moços
estão contagiados. Os snobs das letras e das artes, aqui, no Rio e sobretudo em
São Paulo, estão todos bebendo a cachaça comunista. Os próprios capitalistas estão
seguindo a onda. É chique”.
O MST está fazendo as malas
para voltar a crucificar o campo. Vai desaparecer o flagelo da reforma agrária? Parece que
não. Posta a presente situação, Lula tem grandes chances de vencer a eleição. O
INCRA, como é costume do PT, será entregue para as suas correntes extremadas. O
MST receberá dinheiro farto. E a reforma agrária voltará triunfante. Simplificando,
ou a opinião nacional recusa cachaças venenosas ou, com dor afirmo, não tem
saída, as portas de futuro próspero estão fechadas para o Brasil.
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