domingo, 13 de fevereiro de 2022

Cachaça venenosa

 

Cachaça venenosa

 

Péricles Capanema

 

Coisa antiga, cachaça comunista na moda. Leio no cético e cáustico Eduardo Frieiro nota de 5 de junho de 1945 (livro do qual retiro o texto, “Novo Diário”): “Fernandinho, o Príncipe Consorte, faz ponto todas as noites no Café Celeste, no largo do Teatro. Em companhia da jovem esposa, filha do Governador, forma uma roda de moços letrícolas e jornalistas, que o ouvem com o acatamento devido a um príncipe da República. Fernandinho fuma cachimbo, distribui cigarros caros, bebe whisky (a quinze cruzeiros a dose) e faz propaganda comunista, prevendo o fim próximo da burguesia em decomposição. Agora é moda, o comunismo. Os moços estão contagiados. Os snobs das letras e das artes, aqui, no Rio e sobretudo em São Paulo, estão todos bebendo a cachaça comunista. Os próprios capitalistas, amedrontados, e os privilegiados da República, estão seguindo a onda. É chique”.

 

Feitiço. Tinha ficado chiquérrimo. Continua chiquérrimo, “mutatis mutandis”. Cachaça tem aqui significado de estranho sortilégio, punha na moda, dava prestígio, sentia-se bem situado quem aderisse ao comunismo ou a ele fosse simpático. Na época, ingrediente indispensável também, culto a Stalin. Breve, havia uma onda, era preciso segui-la para não despencar na rejeição e no ostracismo, ainda que disfarçados. A onda continua lambendo as mesmas praias. O Fernandinho acima mencionado é Fernando Sabino (1923-2004), que já começava a brilhar. Mais tarde, todo sabem, firmou-se como dos maiores escritores de sua geração. A esposa, Helena, é filha de Benedito Valadares. O local, Belo Horizonte. Comenta o escritor o ambiente miasmado de uma roda da “jeunesse dorée” e da juventude intelectualizada da capital mineira. Como existiriam às centenas, talvez aos milhares, Brasil afora. Mundo afora.

 

Bruxedo aliciante.  Informa Frieiro, convém notar e martelar, (na época, eram anotações despretensiosas, rabiscadas em caderno, sem intenção de publicá-las), boa parte ali no bar era comunista ou simpática ao comunismo, coqueluche que infestaria círculos sociais parecidos, nos grandes centros do pequeno Brasil de então ▬ o país tinha pouco mais de 40 milhões de habitantes, hoje quase 220 milhões; Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte tinham por volta de 2 milhões, 1,5 milhão e 200 mil habitantes respectivamente; hoje, mesma ordem aproximadamente, 6,8, 12,3 e 2,8 milhões). E não apenas em círculos sociais parecidos; o bafejo magnetizante, forte nas três mencionadas cidades, repito, espalhava-se no país inteiro.

 

Correntes vindas de longe. Tais ares não eram originais de Pindorama, outro ponto que de igual modo convém notar e martelar. Vinham de fora (ainda vêm), à maneira de camadas meteorológicas voadoras, que vão impregnando tudo. Tinham origens várias, em particular Paris, foco da vida intelectual, cidade então mais prestigiosa do mundo. A fermentação nos espíritos agigantava e deformava de maneira atraente a Rússia soviética e seu feitor, Stalin. Sortilégio poderoso, pois tudo no mencionado fenômeno era falso e postiço, mas estranhamente causava palpitação idolátrica. Seduzia em especial a juventude e setores intelectualizados. Repito, quase 80 anos depois, o mesmo fenômeno continua vivíssimo. Uma de suas manifestações, infecta a “esquerda caviar”. Infectam também outros ambientes, entre os quais “champagne socialist”, “limousine liberal”, “radical chic”, “red set”, “Salonkommunist”, “Chardonnay socialist”, “esquerda festiva”. Característica desse verdadeiro feitiço: a realidade dantesca e facilmente perceptível não interessa, de costas para ela o infectado cria dela uma imagem rósea na fantasia e até muda convicções anteriores. O exorcismo é possível, embora difícil, pois a imagem gruda fundo, por vezes è virtualmente inamovível. Aqui vai o antídoto: denunciá-lo, descrevendo-o bem; tais alquimias são túmidas de engodo, engano e totalitarismo intelectual.

 

Dispersão do vapor intoxicante. Não duraram muito, intocados, esses anos de hipnose generalizada. Seus efeitos diminuíram algum tanto, e até bastante, com a implantação desapiedada do comunismo na Europa Oriental, que aconteceu concomitante com denúncias pipocando em todas as partes da ação ditatorial do comunismo stalinista. Foi  o período da Guerra Fria. O próprio comunismo mudou de tática e apresentou feição menos carrancuda. Em 25 de fevereiro de 1956 no 20º Congresso do Partido Comunista, Nikita Kruschev denunciou os crimes de Stalin. Ficou então bonito ser comunista, mas não concordar com os métodos stalinistas, nem com o culto a Stalin. Apontei, sob pseudônimo Zeca Patafufo, em livro de 2019 “Brigo pelos homens atrofiados”, a possibilidade de tal fenômeno corroer resistências saudáveis em nossos dias e, acho, convém um registro agora: “No mundo da lua, vão agigantar tudo pela propaganda. Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imantada, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista; via nos intentos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza apavorante, a construção da utopia socialista dos “amanhãs que cantam”; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores”.

 

Mimetismo subserviente. Lembro rapidamente dois exemplos. O mesmo aconteceu na tomada do Camboja pelas hordas do “khmer rouge”, que implantou um comunismo primitivo e assassino no país. Houve por meses ditirambos da intelligentsia ocidental, magnetizada pelos encantos do comunismo cambojano. Até que o pus explodiu e não mais foi possível esconder o horror real. A “Revolução Cultural” despertou entusiasmo parecido. Num certo momento, o pus igualmente explodiu e cessaram os ditirambos.

 

Reforma agrária no Brasil. Para terminar vou para assunto conhecido, a reforma agrária do Brasil. Não são meses, são anos, décadas. Ela tem constituído uma sucessão invariável e ininterrupta de fracassos, de roubalheiras, de desgraças. Visitem um assentamento, qualquer deles, as favelas rurais. Fujam da propaganda e dos textos oficiais, perguntem aos agricultores que moram na região a realidade: falarão de drogas, de bagunça, de cachaçada, de contratos de gaveta, de roubos, de produtividade baixíssima. São bilhões e bilhões jogados fora por aproximadamente 60 anos. Mas continua cachaça venenosa, chiquérrimo falar bem dela. A administração federal, desde o Estatuto da Terra, 30 de novembro de 1964, do governo Castelo Branco, nunca parou, desembestada a esbórnia com o dinheiro público. Na prática, ninguém mexe nesse tumor de estimação. O INCRA, em seu site, informa a área total dos assentamentos: 87.535.596, isto é, 875.355 km2. Área de Minas Gerais: 586.528 km². Área do Rio Grande do Sul: 281.730 km2. Vamos somar as duas áreas, a de Minas e a do Rio Grande, 868.250 km2. É menor que a área expropriada para fins de reforma agrária. Área utilizada pelo agronegócio no Brasil que torna o país uma das potências mundiais na agricultura: em torno de 650 mil km2. Também muito menor que a área esperdiçada ou mal gasta na reforma agrária. Xico Graziano, um agredido pela realidade, engenheiro agrônomo, ex-secretário da Agricultura de São Paulo, ex-presidente do INCRA, em artigo já antigo (3 de maio de 2004) na Folha, apontava disparates em série da reforma agrária brasileira: “Os latifúndios se transformaram em empresar rurais. A terra, antes ociosa, agora bate recordes de produtividade. Gente simples, porém capaz, domina a tecnologia de ponta e dá show de competência. Cadê o sem-terra? Mudou-se para a cidade. O Brasil cresceu, urbanizou-se, virou potência mundial agrícola, sem necessidade de reforma agrária. A terra está produtiva, gerando milhões de empregos. Gente boa, miserável, mistura-se aos oportunistas e malandros para ganhar um lote nos assentamentos. Iludidas com promessa de futuro fácil, massas são manipuladas e treinadas para invadir fazendas e erguer lonas pretas. A classe média se apieda, enquanto a burguesia, assustada, apoia veladamente. Imaginar que um pobre alienado, sem aptidão nem cultura adequada, possa se tornar um agricultor de sucesso no mundo da tecnologia e dos mercados competitivos, significa raciocinar com o absurdo. Abstraindo os picaretas da reforma agrária, que engrossam as invasões, os demais, bem-intencionados, dificilmente sobreviverão”. Temos ainda vários documentos do TCU advertindo sobre a execução escandalosa da reforma agrária no Brasil. Lembro-os, mas não os glosarei aqui. Em resumo, a reforma agrária sempre foi aliciante, mas venenosa cachaça, sorvida em grandes haustos por todas as condições sociais. Se nada houvesse de reforma agrária no Brasil (zero), como é o caso em dezenas e dezenas de países, a situação no campo estaria muito melhor, haveria mais renda, teríamos mais empregos e mais investimentos, maior produtividade, menos pobres; e ainda existiria dinheiro para obras de infraestrutura, saúde, educação ▬ foi torrado irresponsável e euforicamente no processo de reforma agrária. Seria normalíssimo a instauração de uma CPI para investigar a reforma agrária no Brasil. É claro que nunca será instalada. As patrulhas não deixam; mais ainda, parte da opinião pública é chegada numa cachacinha venenosa. Poderia escrever Eduardo Frieiro a respeito: “Agora é moda, o comunismo [ou a reforma agrária]. Os moços estão contagiados. Os snobs das letras e das artes, aqui, no Rio e sobretudo em São Paulo, estão todos bebendo a cachaça comunista. Os próprios capitalistas estão seguindo a onda. É chique”.

 

O MST está fazendo as malas para voltar a crucificar o campo. Vai desaparecer o flagelo da reforma agrária? Parece que não. Posta a presente situação, Lula tem grandes chances de vencer a eleição. O INCRA, como é costume do PT, será entregue para as suas correntes extremadas. O MST receberá dinheiro farto. E a reforma agrária voltará triunfante. Simplificando, ou a opinião nacional recusa cachaças venenosas ou, com dor afirmo, não tem saída, as portas de futuro próspero estão fechadas para o Brasil.

 

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