A arte de esconder o
principal
Péricles Capanema
Em circunstâncias excepcionais pode ser
virtuoso encobrir o fundamental. De outro lado, algumas vezes presenciamos o
triste artifício de velar o principal, quando deveria estar desvelado. Na mesma
direção, agravando, a censurável e até a criminosa maquiavelice de encapotar o
principal, cujo conhecimento escarrapachado favoreceria o bem comum.
O conto de Pepe Ladino. Respiguei em papéis amarelados conto que
vem ao caso. História narrada (relato resumidamente) desde começos do século 20,
passa de pai a filho, deu-se em Tunja, cidade fincada na região colombiana de
Boyacá. Viveu lá faz muito um homenzinho atarracado chamado pelos seus de Pepe Ladino,
useiro e vezeiro trampolineiro que frequentava com olhos gordos os pontos de
compra e venda de esmeraldas da cidade. Um belo dia entrou furtivamente numa
casa antiga, conhecia-a bem desde menino, pertencente a simpático e idoso casal
de mineradores, Pancho e Concha, de momento empobrecido, que para lá se mudou
após o casamento. Lolita, a empregada, já meio cega, na residência desde adolescente,
mantinha o local em perfeita ordem. Pepe Ladino, silencioso, abriu em cômoda da
sala de jantar uma gaveta pequena, dali retirou o que hoje seriam 100 mil pesos
colombianos (em torno de 150 reais), destinados a compras em um armazém. Sem
que ninguém percebesse, levantou um taco no meio da sala, arrancou de dentro uma
pedra verde, engoliu-a, colou a madeira de novo e perfeitamente, socou bem. Era
esconderijo só conhecido dos donos da casa em que ficava oculta a mencionada pedra
verde, à vera valiosíssima esmeralda ▬ brilho intenso verde escuro profundo
levemente azulado, pureza perfeita, um tesouro. Pepe Ladino não parecia ter
pressa. Tropeçou desajeitadamente num tapete puído e caiu. Lolita chegou
correndo e gritou temerosa: “Dios mio, Flaco, o que está fazendo aqui?”. Flaco
era o apelido de infância de José, conhecido no seu meio como Pepe Ladino. Flaco
havia sido empregado naquela casa quando muito jovem; ali fazia pequenos
trabalhos. Vez por outra ainda a visitava. Flaco lamuriou, estava morrendo de fome,
sem emprego e sem tostão, queria só um dinheirinho para comer. Devolveu logo os
100 mil pesos para Lolita, que lhe deixou 5 mil pesos nas mãos. Foi embora
choroso, pedindo mil desculpas, nunca mais repetiria coisa tão feia.
Pepe Ladino soube bem recuperar a esmeralda. Conhecia
bem mina em Muzo, os pontos de comércio das pedras, tinha contatos, sabia onde
colocar com bom preço a mercadoria valiosa afanada; e logo depois botou o pé na
estrada, sumiu, nunca mais foi visto.
Os anos pingaram lentos. Tudo mudou muito na
região. Pepe Ladino foi ficando figura esvaecida na memória local e acabou esquecido
de praticamente todos. Pequeno acontecimento doméstico para o casal Pancho e
Concha, uma neta querida iria se casar proximamente e a avó, finalmente, achou
ótima aplicação para a esmeralda que guardara por décadas a fio. Venderia a joia;
os recursos seriam usados na compra de um apartamento para a moça, bom começo
de vida. Com cuidado arrancou o taco. Nada encontrou abaixo. Quem teria rapinado
a esmeralda? Não existiam suspeitos. Sua neta ficou sem o apartamento. Ninguém
desconfiou do Flaco, o menino bom que tantas vezes havia ajudado na casa.
O conto sobre Pepe Ladino atrai a atenção
para realidades ocultas (as principais e as secundárias) em tantas situações
mundo afora.
Principal e secundário no STF. Corta. Apenas sobre uma de tais situações vou
me deter hoje, atingirá a todos nós. Aqui o acobertamento do principal
provavelmente lesará interesses do Brasil, de seu povo; em outra perspectiva, trucidará
restos da civilização cristã entre nós. Começo.
Relator da indicação do desembargador Kássio
Nunes Marques para a vaga do Supremo Tribunal Federal, aberta com a
aposentadoria do ministro Celso de Mello, o senador Eduardo Braga (MDB – AM) divulgou
parecer ditirâmbico sobre o candidato, entregue à Comissão de Constituição e
Justiça do Senado. O magistrado, segundo o senador, é exemplo de “garra e
perseverança”. Sem dúvida, boas características. A Constituição exige outros
predicados, a mais de brasileiro nato, 35 anos, menos de 65 anos: notável saber
jurídico e reputação ilibada.
O senador Eduardo Braga minimizou os longos e
repetidos plágios do desembargador nas teses acadêmicas defendidas. Claramente
ferem a conduta ilibada e o decoro que se exigem de um ministro do STF. Minimizou
também, chamemo-las assim, as imprecisões, para não as qualificar de falsificações
e inverdades, constantes do currículo do desembargador Kássio Marques. Erros de
tradução, descuidos, críticas vazias de conteúdo, diria o relator, fatos sem importância.
É claro, chocam os critérios de conduta ilibada de dona de casa comum. Não chocaram
um senador da República.
Condições anacrônicas para a vida pública
brasileira. Compreende-se,
aliás; estamos todos habituados com nossos hábitos republicanos. Aqui a
linguagem chula, o palavrão, na escrita e na boca, a má educação, já quase são obrigatórios
para a vida pública. O primarismo boçal deixou de chocar. Está moribunda em
nossa vida pública a noção central de ordem natural civilizada (muito
aperfeiçoada ao longo dos séculos pelo perfume cristão) da obrigação moral de exemplaridade
▬ do bom exemplo, enfim ▬ que tem o superior (qualquer superior, na espécie, o homem
público), expressa no caso pelo decoro, boa educação, compostura, gravidade,
moralidade. E assim não espantam falsificar currículo e plagiar teses
acadêmicas, na vida pública brasileira atual, “normal”, “faz parte”, “é do
jogo”.
Esmeralda. Outro ponto, este mais importante. Poderá até surpreender
à maior parte dos leitores, mas no caso do desembargador Kássio Marques, o
currículo grosseiramente falsificado e os plágios deprimentes são enormemente secundários
▬ os 100 mil pesos. Desviam a atenção do principal ▬ a esmeralda. O principal
se compõe de três pontos.
Primeiro ponto. Ampliação dos casos de aborto
legal. A dissertação de
mestrado do desembargador Kássio Marques discorre sem nenhum reparo sobre o aborto
como direito da saúde da mulher. Cita Dworkin, diz que o Judiciário pode ser
acionado para impor lei contra a maioria conservadora do povo. É ativismo
judicial, retrocesso civilizatório. Poderemos ter ministro novo do STF votando a
favor da ampliação dos casos de aborto legal permitido, calcando compromissos
que todos julgavam sagrados na última campanha eleitoral e estapeando o eleitorado
conservador que levou o sr. Jair Bolsonaro à curul presidencial. Este ponto
está detalhado em meu artigo “Nuvens negras”.
Segundo ponto. Opiniões favorecedoras do chavismo. Os ditadores Chávez e Maduro levaram a
Venezuela por um caminho parecido com o de Cuba e sonhado entre nós pelos
adeptos do petismo. Contra esta proposta foi eleita a chapa Bolsonaro-Mourão em
2018. A explicação desatinada que o douto sr. Kássio Marques dá para o desastre
venezuelano é exatamente igual à dos maiorais do petismo: o problema foi a
queda dos preços do petróleo. Tal queda levou a Venezuela a “níveis de
decréscimos econômicos jamais vistos”. Quando o preço estava bom, a propensão
de sonhar com um chavismo róseo o levou a fantasiar sem amarras: “Com a alta do
barril a Venezuela experimentou níveis de prosperidade jamais vistos”. O que mais
interessa ▬ as opiniões infelizmente deixam transparecer indisfarçável simpatia
pela política chavista. Aqui também o tema está detalhado no artigo “Nuvens
negras”. E aqui também, dói dizê-lo, sente-se estapeada a maioria antipetista
que votou pela chapa vitoriosa em 2018, julgando que haveria rejeição enérgica
às políticas de Chávez, Fidel Castro, Maduro. Irá se sentir traída no voto de
2018 se houver no STF (e lá já existem ministros simpáticos a medidas de
esquerda) mais um ministro que vote habitualmente com eles.
Terceiro ponto. A execução da pena após
condenação em segundo grau. Portanto,
antes do trânsito em julgado da decisão. O STF mudou o entendimento por maioria
apertada, 6x5 a favor da execução da pena só após o trânsito em julgado. Celso
de Mello votou com a maioria. O desembargador Kássio Nunes Marques tem afirmado,
é assunto para o Congresso. Ou seja, não irá mudar o rumo da atual maioria. E
os jornalistas têm dito, os líderes partidários decidiram não decidir. Vão
deixar como está, a Constituição não será tocada neste ponto. De outro modo, continuará
aqui aberta a porta para a corrupção, praticada em grau amazônico durante a era
petista. A decepção de setores que sonhavam com uma vida pública decente e temem
a continuação de esquemas corruptos está em todos os meios de divulgação.
Mostrar os plágios e as falsidades do
currículo evidenciam ausência da conduta ilibada e certamente indicarão falta
de notável saber jurídico. Inabilitam para o exercício do cargo é o
entendimento de grandes juristas e de políticos de destaque. No caso em questão,
contudo, na prática, valem pouco; em linguagem figurada, uns 100 mil pesos. Postas
as circunstâncias, é pouco provável que mudem os votos da maioria dos senadores.
Tudo parece indicar, o acordo já está feito, dele participam dirigentes dos
três poderes, envolve a maioria do Senado, o desembargador Kássio Nunes Marques
será aprovado. Só um fato de momento improvável determinaria o oposto.
Resta aos brasileiros preocupados com o
futuro pátrio ter clara a noção de que o principal é manter viva a apreensão e
a reação. Os indícios são de que correm sérios perigos no STF as instituições
brasileiras enraizadas em nosso passado cristão. São ameaças iminentes,
contínuas e de longa duração. O mais importante é a esmeralda; 100 mil pesos
valem bem menos.
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