Nuvens negras
Péricles Capanema
Em
14 de novembro de 2018 divulguei artigo intitulado “Hora de observar o
panorama”. Era momento de analisar o que vinha pela frente no país, ponderar possibilidades,
alimentar esperanças e, em especial, evitar ilusões. Jair Bolsonaro eleito
formava o governo, três semanas depois do segundo turno. Afirmava eu na conclusão
do texto: “Por que trouxe à baila a classificação do prof.
Plinio Corrêa de Oliveira? Como chave de interpretação, para ser pano de fundo
de rápido bosquejo de aspectos da situação do Brasil. O antipetismo que
determinou a eleição de Jair Bolsonaro abriga em seu bojo variadas correntes.
Alguns exemplos em fieira. Ali se destaca o conservador em matéria de costumes,
porém apático em relação à economia muito estatizada. Boa parte constituída de
gente simples, representa enorme força eleitoral. Existe o liberal [privatista]
em economia, libertário nos costumes, comum nos setores letrados. A ele em
geral impacta pouco a ideologia do gênero, a generalização do aborto, o
casamento entre pessoas do mesmo sexo, a agenda LGBT. Temos o homem de hábitos
antissocialistas, mas que admite sociedade nivelada para seus netos ou
bisnetos. São influentes setores organizados da burocracia estatal, que com certeza
espernearão quando da aprovação das reformas que ora se anunciam. A lista é
maior, muita gente ficou de fora. No verso da moeda, um gigantesco contingente
popular, de hábitos e até princípios conservadores, pouco instruído, votou em
Fernando Haddad por temer a perda de apoios assistenciais, caso vencesse
Bolsonaro. Com propostas e trabalho inteligente, pode mudar o voto. Se a
economia andar bem, a frente eleitoral que elegeu Bolsonaro tem condições de se
manter sem fissuras destrutivas. Caso marche mal (e aqui pode influir muito a
situação internacional, sobre a qual nada podemos), tal frente corre risco de
desagregação rápida. Paro por aqui. Quem avisa, amigo é. No Natal de 1971, 26
de dezembro, o prof. Plinio Corrêa de Oliveira publicou na Folha artigo
intitulado ‘Luz, o grande presente’. Dirigia-se a todos os autênticos homens de
boa vontade para que vigiassem nas trevas da situação e, como os pastores,
refletissem e esperassem. Na presente escuridão, espero que o artigo, bico de
lamparina, possa para alguns leitores ser um presente (um pouco de luz) e assim
facilite a subida em elevações para observar o panorama. Depois, passos para
frente no rumo certo. Agir com desídia trará retrocessos, a perda do que foi
conquistado com enorme esforço”.
Vou
fazer o mesmo agora; estamos, de novo em situação de encruzilhada, de
perplexidades, hora de observar o panorama, no qual tanta gente, eu também, vê
nuvens negras; claro; não só cumulonimbus; existem algumas do tipo cumulus.
O
conservador espancado. Primeiro, passarei o olhar rapidamente
por partes do horizonte e depois me fixarei em um só assunto: “o conservador em
matéria de costumes, [...] gente simples, representa enorme força eleitoral”. É
o foco de hoje, o conservador de costumes, homem simples, religioso. Lembro o
que disse acima, se a economia andasse bem, a frente que elegeu Bolsonaro
poderia permanecer unida. Se andasse mal, viria fissuras e desagregação. Vieram,
explodiu a frente, a economia está em frangalhos. E se sentem espancados os
conservadores em matéria de costumes. Abaixo, vou falar a respeito.
O
enigma da 2ª turma. Antes, partes preocupantes do horizonte. O
pessoal conservador tremeu nas bases com a indicação do desembargador Kássio
Nunes Marques para a vaga aberta no STF pela aposentadoria do ministro Celso de
Mello. Ele substituirá o decano do STF na 2ª turma que, parece, passará a ser
constituída pelos ministros Cármen Lúcia, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski,
Gilmar Mendes, Kássio Nunes. Por esta turma passarão matérias importantes,
agora um tanto esvaziadas pela votação oportuna determinada pelo ministro Luiz
Fux que fez com que voltassem para decisão do plenário da corte inquéritos e
ações penais antes submetidos ao crivo em geral complacente da dupla Gilmar
Mendes-Ricardo Lewandowski. Um terceiro voto constituiria maioria vencedora. E
se temia, pela publicação na imprensa de indícios preocupantes, que a dupla
Gilmar Mendes-Ricardo Lewandowski se transformasse em repetidas ocasiões numa
trinca, pela adesão do novo ministro, Kássio Marques. Temos um enigma agora; poderá
virar pesadelo; poderá também se dissolver. O tempo dirá.
Esfriamento
de Washington. Aproximação com Pequim? Adiante.
Está cada vez mais provável ▬ escrevo esta linha hoje 6 de outubro ▬ a vitória
de Joe Biden na eleição norte-americana, com previsível esfriamento das
relações entre Brasília e Washington e fortalecimento dos laços entre Pequim e
Brasília como contrapartida. E aí, noto de passagem, os setores nacionalistas
que hoje emperram as privatizações, empilhando entre outras alegações, que não
podemos entregar blocos estratégicos ao capital internacional (sobretudo
norte-americano), suspeito, vão silenciar, quando estatais chinesas começarem
(começarem, não; continuarem) a abocanhar partes da infraestrutura nacional. Tal
caminhada, a lógica nos empurra para lá, tem um destino final ainda oculto nas
sombras de um futuro mal disfarçado, é o Brasil passar à condição inconfessada de
protetorado, se nossa diplomacia agir com inépcia e/ou traição aos verdadeiros
interesses nacionais.
Surto
de chavismo. O site “O Antagonista” transcreveu opiniões
do sr. Kássio Nunes Marques sobre a situação venezuelana. Segundo suas
surpreendentes reflexões, chamemo-las assim, não parecem infelicitar a
simpática nação nortenha as delirantes experiências do “socialismo do século
XXI”, impostas tiranicamente por Chávez e Maduro, mas tão-somente as quedas dos
preços do petróleo. É, aliás, o despautério divulgado com descoco pelos
maiorais petistas. Kássio Nunes Marques afivela nele suas convicções: a baixa
do preço do barril do petróleo levou a Venezuela a “níveis de decréscimo
econômico jamais vistos”. Constato cm tristeza, o douto magistrado desembesta
na mesma bernardice: “Isso se refletiu da economia para a política e da
política para as questões humanitárias”. E parte para fantasias sem amarras ▬
relevem o português e a lógica: “Com a alta do barril, a Venezuela experimentou
níveis de prosperidade jamais vistos. Houve uma política de transferência e
distribuição de renda, uma infraestrutura do setor de saúde e educação”.
Ampliação
dos casos de aborto legal. Chego, por fim, ao que é mais
momentoso, coloco-o em destaque; tratei dele pela rama acima: “o conservador em
matéria de costumes, [...] gente simples, representa enorme força eleitoral”. A
deputada mais votada no Brasil, Janaína Paschoal, 2.060.780 votos, cotada para
vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, prestigiada professora de Direito
na USP, escreveu com autoridade que, pelo que está defendido na tese de
mestrado do sr. Kássio Nunes Marques, poderemos em futuro próximo amargar no
Supremo sucessivos votos favoráveis à ampliação do aborto, como decorrência da sustentação
da interrupção da gravidez como direito da mulher. Vejamos o que afirma a
professora Janaína Paschoal: “Acabo de ler a Dissertação de mestrado do
desembargador Kássio Nunes Marques. [...] Um ponto me preocupou. O [...] candidato,
citando Dworkin, diz que o Judiciário pode ser acionado para fazer frente à
maioria conservadora. Ilustra com o caso do aborto. [NB O Judiciário impõe
legalmente o aborto contra o desejo da maioria popular conservadora]. [...]
O magistrado traz como exemplo justamente o caso Roe v. Wade, aduzindo que o
direito ao aborto, foi garantido nos EUA. [...] Conheço bem a ideia de que
aborto é apenas questão de saúde da mulher. [...] Não
esperava encontrar tal posicionamento em jurista indicado por Presidente eleito
como conservador! [...] Como eu, a esmagadora maioria dos eleitores de
Bolsonaro é contrária à legalização do aborto, defendida pelo PSOL. Justamente
a maioria ‘conservadora’, que o Judiciário não deve ouvir, conforme Dworkin,
citado por Dr. Kassio Nunes Marques, sem nenhuma ressalva. [...] Os eleitores
de Bolsonaro não votaram nele para ter decisões típicas de um governo Haddad!”
Volto ao tema.
A nomeação do desembargador Kássio Nunes Marques para o STF, se ele lá votar
consoante às opiniões que cita sem reserva em sua tese de mestrado, seus votos eventualmente
contribuirão para formar maioria a favor da ampliação dos casos de aborto
permitidos no Brasil. O povo não s quer? Pouco importará, o Judiciário os
imporá por via judicial, tornar-se-ão leis. É retrocesso civilizatório, temor da
professora Janaína Paschoal. Tal involução democrática constituirá bofetada no que
intitulei ‘conservador em matéria de costumes, [...] gente
simples, que representa enorme força eleitoral’. Espero que não aconteça, rezo para
que não aconteça, mas compartilho o receio da deputada Janaína Paschoal. Em
suma, meu maior anseio é estar inteiramente errado em meus receios aqui
expressos. Por fim, o que tem a dizer a respeito neste momento crucial a CNBB,
que tem manifestado posição contrária à ampliação do aborto no Brasil? Não irá,
em defesa da vida, reclamar esclarecimentos inequívocos ao desembargador Kássio
Nunes Marques, ao Senado e ao Executivo? Ou se esconderá no silêncio nesta questão
central para nosso futuro de nação cristã? Silêncio envergonhado, pensarão
muitos. Fuga do dever, pensarão outros. Um forte brado de zelo pastoral da
entidade dissipará nuvens negras se adensando no horizonte. De tais nuvens
negras sobre nós despencarão, por décadas e décadas, chuvas ácidas.
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