Realismo como vacina
ao utopismo
Péricles Capanema
Espinhos. Abri o jornal (sou espécie em extinção, ainda abro o jornal
pela manhã), e tomei um tapa na cara: o PIB brasileiro no segundo trimestre de
2020 teve contração de 9,7% em comparação com os primeiros três meses do ano. Esperada
embora, a retração é a maior da série histórica do IBGE, iniciada em 1996.
Segundo pesquisadores da FGV, desde 1980 não há registro de queda pior em
trimestre. De passagem, temos outra fonte de informação a mais dos números, sofremos
espinhos pontiagudos na própria carne. Tudo dói ao redor nosso.
O realismo, vacina contra quimeras. O que me empurra incoercivelmente para mais
além da crise, para a região das convicções e mentalidade, de onde procedem as
escolhas. E tantas vezes nós brasileiros temos feito opções tóxicas. Encruzilhada
inevitável: abraçamos o realismo, enfrentando o que nos agride ▬ sem
servilismos a modas estrangeiras (ou nacionais), fincados serenamente em nossas
possibilidades ▬ ou vamos preferir escapulir pelo buraco do utopismo, embaídos por
miragens enganadoras? A segunda escolha é responsável, em boa parte, pela situação
trágica em que agora estamos atirados, com a economia desmoronando por vários
lados. O realismo nos teria poupado amazonas de sofrimentos e apreensões.
Na tempestade, notícias animadoras. Realismo não é só ver de frente notícias
ruins. É também fixar o olhar nas esperançosas. Vamos agora entrar por aqui na
economia. Mesmo no ambiente da pandemia, o agronegócio brasileiro continua apresentando
resultados positivos. (Destaco, ele foi fruto do realismo). É um alívio, evita
a quebra generalizada, o desabastecimento e o desemprego maciço; depois será o
motor da recuperação.
Vocação natural. Em parte tal pujança se deve à ação
lúcida do ministro Alysson Paulinelli nos anos 70, cuja visão de governo (formação
ampla de especialistas, pesquisa científica bem orientada, estímulo à inovação)
esteve na origem de enorme aumento de produtividade, que vem beneficiando o
campo ao longo de décadas Sua ação clarividente, ajudado por muitos outros na
mesma direção, sublinhou realidade negada por muitos: cada vez mais o
agronegócio se firma como vocação natural do Brasil. É suicídio menosprezar o
caminho disposto pela realidade. Aqui toco conceito central do artigo: vocação
natural. Natureza e realismo andam juntos. Tal conformação foi agredida pela
fixação artificial de políticas estatais por muito tempo em desenvolvimentos
induzidos, de base industrial; discussões e planos que marcam há quase um
século a vida pública brasileira. Os debates tiveram ponto alto nos anos 40, aos
quais vou me referir, pois lançam luz no quadro presente. Continuam vivos, de
fato atualíssimos, com potencial para determinar o rumo nosso no futuro.
Coletivismo larvado. O embate ao qual me refiro não opôs diretamente,
de um lado, propriedade privada e livre iniciativa; de outro, coletivismo
deslavado. Foi antes o choque entre intervencionistas (partidários do
desenvolvimento induzido e acelerado com utilização maciça de instrumentos estatais),
representando, em grau menor ou maior, um coletivismo larvado, e, do outro
lado, aqueles que acreditavam que o progresso da economia deveria vir do
respeito a suas leis. Escorado na propriedade privada e livre iniciativa,
buscar o caminho do que se intitulava o aproveitamento das vantagens
comparativas. E aí aparecia logicamente a urgência de fazer progredir a
agricultura e, por meio dela, sem prejudicá-la, fazer a indústria contribuir de
forma crescente ao progresso nacional. Tal fato se refletiria naturalmente na
vida social, educacional e política. Era o fortalecimento da vocação da
agricultura; hoje se diria do agronegócio, um pouco simplificadamente. De outro
modo, maior presença do agronegócio no PIB brasileiro. Na pauta da discussão
estavam o papel do Estado, industrialização, projeto nacional, segurança pátria.
No fundo do quadro, por vezes de maneira confusa, noções diferentes e até
conflitantes de grandeza nacional.
Duas posições em choque. Na já recuada década de 40 duas foram suas principais
figuras. De um lado, Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948); de outro Eugênio
Gudin (1886-1986). A discussão teve início e escancarou posições quando Alexandre
Marcondes Filho (1892-1974), ministro do Trabalho, Indústria e Comércio solicitou
um relatório ao Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial que
trouxesse subsídios para uma política industrial e comercial. Dele foi
encarregado o dr. Simonsen, membro da mencionada comissão. Em 16 de agosto de
1944 apresentou o estudo “A planificação da economia brasileira”. Conceitos
centrais: planejamento, presença do Estado ▬ indutor, financiador, direcionador
de recursos ▬, industrialização acelerada. Seria a fórmula para desenvolvimento
rápido, melhoria da renda e geração de empregos. Era um eco de tendência em
ascensão mundo afora, o planejamento econômico estava na moda no mundo
desenvolvido, e aqui se poderia incluir setores importantes dos Estados Unidos.
Seu prestígio provinha até mesmo da União Soviética, com os então famosos e
prestigiados planos quinquenais, promovidos por Stalin.
Reação fundamentada. Também participava da mencionada comissão o
engenheiro e economista Eugênio Gudin. Defendia a industrialização, mas
paulatina e com base no fortalecimento da agricultura, onde via enormes vantagens
comparativas do Brasil, clima e terras férteis. Refratário a ficções, fincado seguramente
no que de fato tínhamos, temia atalhos artificiais. Em sua resposta, datada de
23 de março de 1945, o economista carioca observava com visão de longo prazo: “O
conselheiro Roberto Simonsen filia-se [...] à corrente dos que veem no ‘plano’
a salvação de todos os problemas econômicos, espécie de palavra mágica que a
tudo resolve, mística de planificação que nos legaram o fracassado New Deal
americano, as economias corporativas da Itália e de Portugal e os planos
quinquenais da Rússia. [...] A verdade é que temos caminhado assustadoramente
no Brasil para o capitalismo de Estado”. Sobre sua posição, comentou Roberto
Campos: “Gudin insistia que o processo industrializante deveria observar as
linhas de vantagens comparativas e deveria caber principalmente ao setor
privado, sem relegar a agricultura à posição de vaca leiteira para financiar a
industrialização”. A polêmica entre os dois líderes brasileiros está
registrada, é fácil compulsar os argumentos de ambos. Não é o caso de aqui os evocar,
pois meu objetivo, abaixo exposto, é outro. Só lembro que na década de 40 as
convicções já estavam cristalizadas e sistematizadas em dois corpos de
doutrinas.
Segregação e exclusão. Eugênio Gudin representou o pé no chão; sem
o citar explicitamente, defendia o princípio de subsidiariedade, o papel
supletivo do Estado em relação à sociedade. Suas posições estavam distantes da purpurina
dos “cinquenta anos em cinco”, “Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)” e tantas
mirabolâncias parecidas, fruto de ufanismos vazios, quando não de velhacaria
política. Não foram vitoriosas, mas ajudaram, apesar de dificuldades, para, em
longa decantação, amadurecer argumentos e formar correntes de opinião. E foi só
muito depois dos anos 40 que se desvelou aos olhos do mundo a ilusão demolidora
da mania dos planos econômicos; em especial evidenciada pelo desastre econômico
dos países da antiga União Soviética. Mas quando a impostura se patenteou o
mundo já havia padecido os retrocessos civilizatórios, que excluíram de padrões
mínimos de dignidade humana durante décadas a bilhões de pessoas. Em última
análise, pela recusa consciente e culposa do princípio de subsidiariedade. Aqui
está um objetivo do artigo: realçar a importância do princípio de
subsidiariedade, vacina contra ficções destruidoras, motor de avanços..
O vento fresco do princípio de
subsidiariedade. Falei
em maturação. Em 1931, já se vão quase cem anos, Pio XI publicou a “Quadragesimo
Anno”, encíclica de doutrina social católica. Ali colocou como pilar da
doutrina social católica o princípio de subsidiariedade: “Assim como é injusto subtrair aos indivíduos o
que eles podem efetuar com a própria iniciativa e trabalho, para o confiar à
comunidade, do mesmo modo passar para uma comunidade maior e mais elevada o que
comunidades menores podem realizar é uma injustiça, um grave dano e perturbação
da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os
seus membros, e não os destruir nem os absorver.” Representa golpe duro contra
o intervencionismo estatal e contra toda forma de coletivismo; afirma o caráter
supletivo do Estado em relação à sociedade. Tivéssemos dado ouvidos a tal
ensinamento e muito melhor estaria a situação no Brasil. Contudo, pouco a pouco
em algumas áreas vai deitando raízes. Um exemplo, na PEC da reforma administrativa, encaminhada recentemente
pelo governo ao Legislativo, consta modificação do artigo 37 da Constituição. Passam
a figurar como princípios da administração pública, entre outros, a
proporcionalidade e a subsidiariedade. É fato promissor; que a brisa se
transforme logo em vendaval de restauração e sanidade.
Família,
a segunda estaca. Falei
da subsidiariedade como fundamento da vida econômica. Era uma grande esquecida ▬
hoje não mais. O que é promissor e a pandemia pôs em evidência tal aspecto. Meu
segundo propósito, realçar a importância do fortalecimento da família, também
fundamental para o progresso econômico. Tal realidade foi recordada com talento
e realismo por Ettore Gotti Tedeschi, antigo presidente do Banco do Vaticano: “Numa família se
originam projetos que exigem maiores compromissos na geração de riqueza,
poupança, investimento. No seio da família surgem estímulos competidores
saudáveis, sobretudo graças à educação e treinamento de cada membro, que em
perspectiva se torna motor da produção de riqueza que beneficia toda a
sociedade. Além disso ela absorve os problemas sociais e econômicos de seus
membros, sem transferi-los ao Estado; tende a ajudar e proteger seus membros
mais fracos e vulneráveis, que de outra forma sempre pesariam para a sociedade.
A família assume três áreas de valor social, criando as condições para o
crescimento do PIB, formando e educando, limitando os custos do Estado
assistencial. Portanto a família é fonte de investimento em capital humano,
fonte de maior comprometimento produtivo, de autoprodução e redistribuição de
renda dentro dela. Por isso ela é o primeiro posto de criação de riqueza da
sociedade. Ignorar ou mesmo degradar este papel, ao invés de incentivá-lo, é
uma das primeiras causas do declínio socioeconômico e cultural da sociedade. Se
um país não acreditar na família, verá ruir o crescimento da riqueza produzida
e do seu bem-estar econômico e social”. Em resumo, sem família saudável, no
longo prazo não haverá economia saudável.
Pandemia, hora de padecimento; em especial, de
reflexão e oração. Ocasião para analisar o passado (acima pequena e expressiva parte
dele), esclarecer situações; e, com isso, preparar futuro de autêntica grandeza
cristã. O presente artigo procurou ser modesta contribuição para tal, chamando
a atenção para a vocação natural do Brasil, a agricultura, posta em evidência
pela gravidade da crise. E salientando dois pontos para caminharmos no rumo
certo: princípio de subsidiariedade e família, vacinas contra recaídas.
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