quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Sanior pars

 

Sanior pars

 

Péricles Capanema

 

Setores mais sadios. De caso pensado coloquei no título expressão latina, “sanior pars” ▬ a parte mais sã. Foi dito comum durante já distantes anos, qualifica o setor mais sadio de qualquer instituição, grupo social ou situação; saiu de moda. Não inteiramente, contudo. Por vezes, é empregado o brocardo “maior et sanior pars”, a parte maior e mais sã, em especial na língua inglesa, via de regra para designar vitória eleitoral, com participação do voto qualificado. À primeira vista, pode parecer exagerado, mas, à vera, dar ouvidos à “sanior pars” ▬ as formas são diversas ▬ é assunto capital em virtualmente todos os âmbitos da vida. Assunto que merece ser posto diante dos olhos de todo mundo, e, por isso, vou dar pinceladas rápidas no quadro agora. A complementação ficará por conta dos eventuais leitores, ao longo das semanas.

 

Autoajuda. Então, complementem, pensem sobre isso. Ter tal realidade (bem entendida, ruminada sem demasias nem subestimas) no radar do pensamento areja o raciocínio, as reflexões surgem com mais vida, mordem mais a realidade, torna-se antídoto contra retrocessos. Contudo, para prejuízo de todos, referida sentença e, sobretudo a realidade à qual remete, vem sendo esquecida e enterrada; chega a ser antipatizada e perseguida. O artigo é um trabalho de limpeza e restauração, ainda que incipiente, de um quadro bonito, merece ser contemplado. Na verdade, paisagem arrebatadora e denegrida.

 

Caminhar na contramão. Ainda que levantar o tema “sanior pars” pareça para muitos trazer à baila matéria politicamente incorreta, incorreto de fato seria o silêncio a respeito, dificulta o desenvolvimento de qualidades pessoais. Para ajudar a limpar o quadro, busco auxílio em outra locução, igualmente latina, vem da espiritualidade inaciana: “agere contra”. Significa agir contra, isto é, ter conduta contrária a hábitos ruins (vícios) que nos afastam da virtude ▬ da saúde, em qualquer campo.

 

Olhar interessado em desvãos da História. Admito, não será tema fútil ao gosto de espíritos dispersivos; passa ao lado de preocupações de muita gente na onda, que só gosta de obras de superfície. Pouco importa. Reitero, o assunto da “sanior pars” tem significado enorme. E não é de agora. Um exemplo, Jean-Louis Kupper no livro “Liège et l’église impériale – XIe – XIIe siècles” trata da influência da regra de são Bento em várias ocasiões importantes da vida medieval. Vou ao que interessa aqui: “Gradualmente, a maioria ▬ noção do Direito Romano ▬ se impõe. Seu rigor quantitativo foi atenuado por um princípio qualitativo que a Regra de são Bento contribuiu para difundir: para ser eleito, necessariamente, não era suficiente reunir os votos da maioria ▬ de outro modo, da ‘major pars’ ▬, mas era ainda necessário conseguir o apoio dos mais prudentes e dos melhores. Sobretudo era preciso ser escolhido pela ‘sanior pars’. A partir de fins do século XI, cada vez mais, são usados conjuntamente o sistema da maioria e o sistema da ‘sanior pars’”. Ele destacou ponto importante ▬ é um princípio qualitativo. Por isso vai na contramão dos temas aquecidos bafejados pela grande publicidade.

 

Costumes frutíferos. O espírito beneditino bafejava regimes de vida e governo que aproveitavam qualidades presentes, em tantas ocasiões ainda latentes, na sociedade. Por exemplo, não se jogavam fora, como frutos pecos, as vantagens da ciência e da experiência; eram atitudes inclusivas, mais que atitudes, hábitos de vida inclusivos, com grande repercussão social. E assim, mesmo que minoritária, contavam às vezes decisivamente as opiniões do que se entendia ser a parte mais saudável da comunidade que assim escolhia seus dirigentes. Enfim, como tudo que é humano, é tema perpassado por luzes e sombras. De qualquer modo, sempre presente no direito temporal e no direito canônico, como defesa contra tolices, aventuras e demagogia. Minha ênfase aqui não é o aparelho legal; o foco meu são os costumes. Costumes generalizados embebidos por tal princípio. No caso, com coloração beneditina. Não nos esqueçamos, nas raízes da Europa, vivificando-as, estão são Bento, a ordem beneditina, o espírito beneditino. De outro modo, a santidade de são Bento perfumou, séculos afora, a sociedade e as instituições do Velho Continente. E um dos componentes do aroma foi tornar viva a noção da importância da “sanior pars”. Depois de perfumar costumes, embeber gradualmente instituições e moldar com peso e medida as legislações, aqui está o desenvolvimento proficiente no caso.

 

Matéria de relevo. Costume elitista, alguém poderia comentar, até com nota de censura. Devagar. Privilegia de certo modo a qualidade sobre a quantidade, certo. Bem entendido, estamos diante de reconhecimento de si saudável do mérito, da aptidão, da competência, da maestria. Sob o halo evangélico, é conduta salutar, crescentemente inclusiva, com força difusiva, embebida na compaixão; enfim, com potencial para avanços de toda ordem Como exemplo, e carregado de estímulos para avanços de toda ordem. Temos e devemos levar em conta em nossas atividades a parte mais sadia da família, da empresa, da escola; enfim, levar a todos os âmbitos, com medida e largamente, a influência da boa conduta, da boa educação, da ciência e da experiência.

 

Tirania da maioria. Com isso se evita a tirania da maioria, cada vez mais presente em nossos dias. O conceito não é novo; já os gregos falavam da oclocracia. Ecoa\ na literatura política como questão grave; tirania da maioria foi expressão utilizada, entre outros, por John Adams, depois empregada por Alexis de Tocqueville e John Stuart. A realidade, sim, tornou-a moderníssima. Em livro publicado em 2019, “Brigo pelos homens atrofiados”, observei: “A seu tempo os iluministas, crédulos seguidores da deusa Razão, supostamente para suprimir o arbítrio, enxotaram o rei, governante absoluto, e enfiaram no lugar o povo, o novo soberano absoluto. Melhorando, em antes o absolutismo monárquico; agora o absolutismo da vontade popular, volta e meia apelidada com artifício de vontade geral. É a doutrina da soberania popular, exercida via de regra mediante o sufrágio universal. Sobre tudo pode dispor o povo soberano, entidade coletiva, instável, manipulável — tanto ou mais que eram os reis —, ou representantes seus falando em nome dele. Em princípio, poder não limitado por leis. Alarma. Inafastável, aqui se aninha o totalitarismo”.

 

Atualidade. Aparentemente, em nenhum texto aludi aos lancinantes problemas contemporâneos. Engano. A todo momento pensava neles, as relações são imediatas. “Sanior pars” é tema atual, mais que atual, permanente, importância capital. Por tudo isso, merece reflexão, lucraríamos todos enormemente se a temática animasse conversas, perfumasse costumes; depois, instituições e leis.

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