Sanior pars
Péricles Capanema
Setores mais sadios. De caso pensado coloquei no título
expressão latina, “sanior pars” ▬ a parte mais sã. Foi dito comum durante
já distantes anos, qualifica o setor mais sadio de qualquer instituição, grupo
social ou situação; saiu de moda. Não inteiramente, contudo. Por vezes, é
empregado o brocardo “maior et sanior pars”, a parte maior e mais sã, em
especial na língua inglesa, via de regra para designar vitória eleitoral, com
participação do voto qualificado. À primeira vista, pode parecer exagerado,
mas, à vera, dar ouvidos à “sanior pars” ▬ as formas são diversas ▬ é assunto
capital em virtualmente todos os âmbitos da vida. Assunto que merece ser posto
diante dos olhos de todo mundo, e, por isso, vou dar pinceladas rápidas no
quadro agora. A complementação ficará por conta dos eventuais leitores, ao
longo das semanas.
Autoajuda. Então, complementem, pensem sobre isso. Ter tal realidade (bem
entendida, ruminada sem demasias nem subestimas) no radar do pensamento areja o
raciocínio, as reflexões surgem com mais vida, mordem mais a realidade,
torna-se antídoto contra retrocessos. Contudo, para prejuízo de todos, referida
sentença e, sobretudo a realidade à qual remete, vem sendo esquecida e
enterrada; chega a ser antipatizada e perseguida. O artigo é um trabalho de
limpeza e restauração, ainda que incipiente, de um quadro bonito, merece ser
contemplado. Na verdade, paisagem arrebatadora e denegrida.
Caminhar na contramão. Ainda que levantar o tema “sanior pars”
pareça para muitos trazer à baila matéria politicamente incorreta, incorreto de
fato seria o silêncio a respeito, dificulta o desenvolvimento de qualidades
pessoais. Para ajudar a limpar o quadro, busco auxílio em outra locução,
igualmente latina, vem da espiritualidade inaciana: “agere contra”. Significa
agir contra, isto é, ter conduta contrária a hábitos ruins (vícios) que nos
afastam da virtude ▬ da saúde, em qualquer campo.
Olhar interessado em desvãos da História. Admito, não será tema fútil ao gosto de
espíritos dispersivos; passa ao lado de preocupações de muita gente na onda,
que só gosta de obras de superfície. Pouco importa. Reitero, o assunto da
“sanior pars” tem significado enorme. E não é de agora. Um exemplo, Jean-Louis
Kupper no livro “Liège et l’église impériale – XIe – XIIe
siècles” trata da influência da regra de são Bento em várias ocasiões
importantes da vida medieval. Vou ao que interessa aqui: “Gradualmente, a
maioria ▬ noção do Direito Romano ▬ se impõe. Seu rigor quantitativo foi
atenuado por um princípio qualitativo que a Regra de são Bento contribuiu para
difundir: para ser eleito, necessariamente, não era suficiente reunir os votos
da maioria ▬ de outro modo, da ‘major pars’ ▬, mas era ainda necessário
conseguir o apoio dos mais prudentes e dos melhores. Sobretudo era preciso ser
escolhido pela ‘sanior pars’. A partir de fins do século XI, cada vez mais, são
usados conjuntamente o sistema da maioria e o sistema da ‘sanior pars’”. Ele
destacou ponto importante ▬ é um princípio qualitativo. Por isso vai na
contramão dos temas aquecidos bafejados pela grande publicidade.
Costumes frutíferos. O espírito beneditino bafejava regimes de
vida e governo que aproveitavam qualidades presentes, em tantas ocasiões ainda
latentes, na sociedade. Por exemplo, não se jogavam fora, como frutos pecos, as
vantagens da ciência e da experiência; eram atitudes inclusivas, mais que atitudes,
hábitos de vida inclusivos, com grande repercussão social. E assim, mesmo que
minoritária, contavam às vezes decisivamente as opiniões do que se entendia ser
a parte mais saudável da comunidade que assim escolhia seus dirigentes. Enfim, como
tudo que é humano, é tema perpassado por luzes e sombras. De qualquer modo, sempre
presente no direito temporal e no direito canônico, como defesa contra tolices,
aventuras e demagogia. Minha ênfase aqui não é o aparelho legal; o foco meu são
os costumes. Costumes generalizados embebidos por tal princípio. No caso, com
coloração beneditina. Não nos esqueçamos, nas raízes da Europa, vivificando-as,
estão são Bento, a ordem beneditina, o espírito beneditino. De outro modo, a
santidade de são Bento perfumou, séculos afora, a sociedade e as instituições
do Velho Continente. E um dos componentes do aroma foi tornar viva a noção da
importância da “sanior pars”. Depois de perfumar costumes, embeber gradualmente
instituições e moldar com peso e medida as legislações, aqui está o
desenvolvimento proficiente no caso.
Matéria de relevo. Costume elitista, alguém poderia comentar,
até com nota de censura. Devagar. Privilegia de certo modo a qualidade sobre a
quantidade, certo. Bem entendido, estamos diante de reconhecimento de si saudável
do mérito, da aptidão, da competência, da maestria. Sob o halo evangélico, é
conduta salutar, crescentemente inclusiva, com força difusiva, embebida na compaixão;
enfim, com potencial para avanços de toda ordem Como exemplo, e carregado de
estímulos para avanços de toda ordem. Temos e devemos levar em conta em nossas
atividades a parte mais sadia da família, da empresa, da escola; enfim, levar a
todos os âmbitos, com medida e largamente, a influência da boa conduta, da boa
educação, da ciência e da experiência.
Tirania da maioria. Com isso se evita a tirania da maioria, cada
vez mais presente em nossos dias. O conceito não é novo; já os gregos falavam
da oclocracia. Ecoa\ na literatura política como questão grave; tirania da
maioria foi expressão utilizada, entre outros, por John Adams, depois empregada
por Alexis de Tocqueville e John Stuart. A realidade, sim, tornou-a moderníssima.
Em livro publicado em 2019, “Brigo pelos homens atrofiados”, observei: “A seu
tempo os iluministas, crédulos seguidores da deusa Razão, supostamente para
suprimir o arbítrio, enxotaram o rei, governante absoluto, e enfiaram no lugar
o povo, o novo soberano absoluto. Melhorando, em antes o absolutismo
monárquico; agora o absolutismo da vontade popular, volta e meia apelidada com
artifício de vontade geral. É a doutrina da soberania popular, exercida via de
regra mediante o sufrágio universal. Sobre tudo pode dispor o povo soberano,
entidade coletiva, instável, manipulável — tanto ou mais que eram os reis —, ou
representantes seus falando em nome dele. Em princípio, poder não limitado por
leis. Alarma. Inafastável, aqui se aninha o totalitarismo”.
Atualidade. Aparentemente, em nenhum texto aludi aos lancinantes
problemas contemporâneos. Engano. A todo momento pensava neles, as relações são
imediatas. “Sanior pars” é tema atual, mais que atual, permanente, importância
capital. Por tudo isso, merece reflexão, lucraríamos todos enormemente se a temática
animasse conversas, perfumasse costumes; depois, instituições e leis.
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