domingo, 22 de março de 2020

A canhotada pira


A canhotada pira

Péricles Capanema

Marcos, ídolo do futebol, antigo goleiro do Palmeiras e da seleção, em 21 de março pelo instagram deu os parabéns de aniversário ao presidente Jair Bolsonaro, torcedor do time: “Feliz aniversário Presida! Força aí nesse momento, seja mais Jair e menos Messias, mantenha a fé, a paciência, humildade e a responsabilidade que o cargo exige, do mais, tamo junto! OBS: agora a canhotada pira, aguenta ou surta! Desativei os comentários, pronto, agora só eu falo, pra quem gosta de Cuba e Venezuela e querem que aqui seja igual, vai se acostumando e treinando a ter um ditador aqui no meu insta!”

A canhotada não aguentou, pirou. Marcos segurou as bolas e chutou de volta: “Fui roubado pelo maior esquema de corrupção da história da humanidade, vcs perdoaram? Eu não! Vcs são melhores que eu!”. A canhotada não surtou, mas pirou de novo.

Mais tarde, parece, gol vazado, Marcos mudou o tom e postou: “Amigos, agora é sério, sem tretas e provocações, o problema é grave. Torço do fundo do meu coração para que eu, toda minha família, vocês e os seus, consigamos passar por essa guerra sem perdas, vou dar um tempo com as brincadeiras e provocações políticas, porque não é mais o momento pra isso. O assunto é muito sério, vou dar um tempo por aqui, cuidem-se e que Deus proteja a nós e aos enfermos desse mal”. Não sei o que terá acontecido. Fica a impressão, houve contraofensiva cerrada. Imaginei, o título desse artigo poderia ter sido: Intolerância e exclusão.

Pouco depois, Marcos prometeu ajudar com um salário mínimo mensal durante seis meses a dez desempregados. Atitude bonita, ajudar os que agora sofrem, merece elogio.

Pensava, o Marcos foi jair, tenta ajudar (seja mais Jair e menos Messias). Mas quem resolver o caso do coronavirus vira messias. Foi aí recebi um verdadeiro ensaio enviado por amigo colombiano de décadas.

A análise é de 21 de março, publicada no El País, diário de Barcelona, o principal da Espanha, centro-esquerda; digamos, seria a Folha de São Paulo de lá. O autor do trabalho é Byung-Chul Han, intelectual sul-coreano que mora em Berlim, filósofo celebrado e professor universitário. Tem livros de ampla circulação em especial na esquerda libertária, vários dos quais traduzidos para o português e vendidos aqui. A Editora Vozes (que publica os livros de Leonardo Boff) edita livros de Byung-Chul Han. Por aí já se pode ter uma primeira ideia de qual orientação tem o sul-coreano. Ele pisaria, para simplificar, as pegadas de Michel Foucault. O título do ensaio que está no site do El País (seção Ideas – Opinión): “La emergência viral y el mundo del mañana. Byung-Chul Han, el filósfo surcoreano que piensa desde Berlim”.

O mais importante já está no cabeçalho: o mundo de amanhã. O ensaio começa com uma constatação: “Em Hong Kong, Taiwan, Cingapura existem poucos infectados. A Coreia do Sul também já superou a pior fase. Igual, Japão. Mesmo a China, o país de origem da pandemia, já a tem bastante controlada. Mas nem em Taiwan, nem na Coreia do Sul foi decretada a proibição de sair de casa, não foram fechados restaurantes e lojas. Entrementes, começou um êxodo de asiáticos que querem sair da Europa. Chineses e coreanos querem voltar para seus países, porque lá se sentem mais seguros. Os preços das passagens aumentaram. Está difícil conseguir passagens para a China ou a Coreia”.

Continua Byung-Chul Han: “Os Estados asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan, Cingapura têm mentalidade autoritária. Não apenas na China, mas também na Coreia ou no Japão a vida quotidiana está organizada muito mais estritamente que na Europa. Para enfrentar o vírus, os asiáticos apostam na vigilância digital. Na Ásia as epidemias não são combatidas só por virólogos, mas sobretudo por informáticos e especialistas em big data. Os apologistas da big data dirão que ela salva vidas humanas”

O filósofo diz que quase não há reação contra a invasão da vigilância digital na vida diária dos cidadãos. Continua: “Na China em nenhum momento da vida quotidiana você está fora da observação. Controla-se cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes sociais, a travessia em um semáforo vermelho. Na China existem 200 milhões de câmeras de vigilância, muitas com instrumentos de inteligência artificial. Os provedores chineses de celulares compartilham os dados sensíveis da seus clientes com os serviços de segurança e de saúde”.

Explica como foi detida a pandemia em vários locais da Ásia, em Wuhan inclusive, com o emprego da vigilância digital e compartilhamento de big data. Infectados, suspeitos, encontros deles, tudo era monitorado em tempo real. E aqui chego ao que pretendo particularmente destacar hoje: “A China poderá vender agora seu Estado policial digital como um modelo de êxito contra a pandemia, exibirá a superioridade de seu sistema ainda com mais orgulho. A comoção é um momento propício para estabelecer um novo sistema de governo. Oxalá que depois da comoção provocada pelo vírus não se estabeleça na Europa um regime policial digital como o chinês”.

Resumi muito, o ensaio é enorme. Em duas palavras, o controle digital minucioso mais que o sistema sanitário, está liquidando a pandemia, salvando vidas. A contrapartida: o controle estatal. É a versão atual do “Better red than dead”, expressão tão ligada a Bertrand Russell; de outro modo, a tentação de dar a liberdade em troca da vida.

Daqui a pouco poderão chegar ao Brasil equipes chinesas para ajudar no combate ao coronavirus. Alucinações? Elas já estão na Itália. Lá também estão médicos cubanos que foram aplaudidos ao desembarcar. Está também chegando a ajuda russa, equipamentos e cerca de 100 médicos epidemiologistas.

As patrulhas calarão os brasileiros temerosos de perder a liberdade? Se os emudecerem, a canhotada vai então deixar de pirar e passar a ganhar de goleada. Concluo. Não estou inventando hipóteses distantes. Existe o problema, arrombou nossas portas. Apenas o exponho ao ecoar de forma muito resumida, praticamente sem comentários, o que um intelectual libertário, inimigo do capitalismo, afirmou em diário esquerdista espanhol de grande circulação.

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