Decepção
Péricles
Capanema
Tornou-se
parada obrigatória o novo coronavirus. Não é para menos, basta atentar para o que
os infectologistas estão advertindo. Não será diferente comigo, ponho o pé na estrada
ecoando declarações; nos últimos dias duas me chamaram especialmente a atenção pelo
que apresentam de auspicioso e relevante. Logo chegarei a decepção, objeto do artigo.
Sobre a disseminação
do vírus, assisti na internet análise circunstanciada do professor Roberto de Mattei
que soube unir em uma só palestra a erudição segura, a profundeza da análise e o
sensus fidei. Título da postagem, Nuevo escenario mundial de Mattei.
Circunspecto (aquele que olha em torno de si, considera toda a realidade), discorreu
como scholar e líder católico. Em suma, não escondeu o perigo, mas o observou
com olhar sobrenatural, poucos o têm, faz falta enorme.
Falei em líder.
Palavras singelas vieram de outro dirigente, Ivan Duque, presidente da Colômbia
▬ potência emergente, 50 milhões de habitantes, mais de um milhão de quilômetros
quadrados. Ali, de igual modo, transparecia fé: “Tenho em meu escritório o quadro
de Nossa Senhora de Chiquinquirá, padroeira da Colômbia. Esta manhã me levantei
pedindo à padroeira da Colômbia que nos consagre como sociedade, que consagre nossa
família, nossos filhos. Que me consagre, tenho responsabilidades. A padroeira da
Colômbia nunca nos abandonou. Sei, palavras assim não são comuns em minha posição”.
Pelo que consta,
nenhum chefe de Estado até agora usou palavras assim. No mínimo o primeiro mandatário
colombiano considera que, no fundo, pedir orações, exame de consciência, penitência,
espírito sobrenatural ajudará o povo a trilhar o rumo certo.
Em tal caminhada,
opinião generalizada, teremos pela frente meses de incerteza e sofrimento. Noto
aqui, pois nada disso percebi nas análises, a provação criará condições
melhores para orações, exames de consciência, elevação de vistas, emenda de vida.
Ad augusta per angusta. Em tal caso, o sofrimento terá sido, tudo pesado,
uma bênção. Lembrará a Nínive do profeta Jonas. De outro lado, como evitar ter em
vista os anos loucos, les années folles da década de 20, em que os pavorosos
sofrimentos da 1ª Guerra Mundial trouxeram, como desabafo e ricochete, explosões
de desregramentos? O mundo civilizado em boa medida desperdiçou oportunidade extraordinária
de regeneração, para muitos dele terá acontecido o pior, o naufrágio.
Passo agora
ao tema do cabeçalho. Por que decepção? Decepção com o quê? Promessa, e promessa
é dívida; a mais acho importante levantar a matéria. De maneira crescente amigos
me têm feito comentários exasperados sobre a qualidade pessoal dos políticos que
nos governam, esperavam muito mais ▬ decepção enorme. A respeito de alguns, pairavam
esperanças. As deblaterações não são de agora, já borbotavam antes do estouro
do coronavirus, que só agravou o quadro. Prometi algumas linhas a respeito e só
vou tratar agora de um aspecto, em geral silenciado. Em artigo futuro, cuidarei
de outros aspectos.
Era justificável
a esperança? Foi surpresa a decepção? Sob certo ângulo, entro por assunto antigo,
já no Império se criticava a classe política. Com palavras talvez um pouquinho diferentes,
Ulysses Guimarães comentou décadas atrás a respeito: “Está achando ruim essa composição do
Congresso? Então espera a próxima: será pior. E pior, e pior.”
Por quê? Culpa
só dos políticos? Ou culpa sobretudo do eleitor que é quem os despacha para Brasília?
Sabemos, a grossa maioria da população brasileira hoje já não sabe que deputado
federal sufragou em 2018. Votou pouco informada, desatenta, desinteressada em
candidatos que de fato não conhecia. À vera, nem interesse tinha de conhecê-los.
Depois, uma minoria vociferante relama, repercutindo sentimento geral.
A
representatividade política no Brasil vem caindo, repito, já constatava Ulysses
Guimarães. Outros ainda. Faz parte de fenômeno mais amplo, descrito com vivacidade
e realismo contundente por Nelson Rodrigues, que em parte colocava sua origem
na falta do hábito de observar e raciocinar. Recolho dele observações de quente
atualidade: “Somos mais idiotas do que nunca. Ninguém tem vida própria, ninguém
constrói um mínimo de solidão. Pensam por nós, sentem por nós, gesticulam por
nós. No vasto passado humano, o idiota como tal se comportava. Os personagens
da História e da Lenda eram os melhores. Em nosso Brasil, o que havia era o ‘o
grande ministro’, ‘o grande deputado’, ‘o grande jornalista’, ‘o grande
tribuno’. Os idiotas não exalavam um suspiro.
Antigamente, o silêncio era dos imbecis. E, de repente, tudo muda. Hoje,
são os melhores que emudecem. Quem não percebeu a invasão dos idiotas não
entenderá jamais o Brasil de nossos dias. Outrora, os melhores pensavam pelos
idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. O grande acontecimento do
século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”.
Detive-me nas palavras do dramaturgo recifense por um motivo:
padecemos, décadas afora, o achatamento generalizado das personalidades, mesmo
as mais relevantes, fenômeno moral, psicológico e social, mas com reflexos
daninhos na política, na economia, na vida econômica. É fenômeno algum tanto
notado e pouco estudado. Atinge sobretudo os interiores das personalidades. Nunca
diminuirá a decepção que hoje se espraia Brasil afora, se não for mudado nosso
interior. E então, em consequência de seiva nova, surgirá naturalmente o
reconhecimento, a relevância e a premiação do que melhor existir na moral, na cultura,
na inteligência. E na política. Concluo. O sofrimento que de momento assoma no
horizonte e nos atemoriza, se bem aceito, ajudar-nos-á a retificar disposições
interiores tortas, os grandes obstáculos ao progresso autêntico do Brasil.
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