segunda-feira, 23 de março de 2020

O apocalipse digital


O apocalipse digital

Péricles Capanema

Neste primeiro parágrafo repito informações constantes de meu último artigo, precisa. Byung-Chul Han é sul-coreano, mora em Berlim, lá é professor universitário. A mais, filósofo libertário, tem livros vendidos no mundo inteiro; no Brasil, a Editora Vozes edita trabalhos dele. Michel Foucault poderia ser tido como um de seus inspiradores. Em 21 de março El País, centro-esquerda, o maior jornal espanhol, publicou enorme ensaio do sul-coreano sobre efeitos do coronavirus.

Nesse artigo, pretendo apenas transcrever afirmações de Byung-Chul Han, falam por si, os comentários meus serão mínimos. Título do ensaio enorme, do qual citarei extratos: “A emergência viral e o mundo do amanhã”. Se quisermos, a emergência do vírus e o futuro. Ele aponta os perigos que lobriga no futuro.

Sabem como o coronavirus é combatido em Pequim? Byung-Chul Han escreve: “A estrutura da vigilância digital tem sido extremamente eficaz para combater a epidemia. Quando alguém sai da estação de Pequim, uma câmera o capta imediatamente. Ela mede sua temperatura corporal. Se a temperatura é preocupante, as pessoas que iam sentadas no mesmo vagão recebem uma notificação no celular. O sistema sabe quem ia e em que lugar no vagão. As redes sociais informam que até mesmo drones estão sendo usados para controlar a quarentena. Se alguém rompe clandestinamente a quarentena um drone é enviado e lhe ordena voltar para casa”. Mais: “O Estado sabe onde estou, com quem me encontro, o que faço, o que busco, em que penso, o que como, o que compro, para onde me dirijo”.

Agora, situação na Coreia do Sul: “Quem se aproxima na Coreia de um prédio onde esteve um infectado recebe no celular, por meio de aplicativo, um sinal de alarma. Estão registrados no aplicativo todos os lugares em que esteve um infectado. Em todos os edifícios da Coreia do Sul existem câmera de vigilância em cada andar, em cada escritório, em cada loja. Com os dados do celular e do material filmado se cria um perfil do movimento completo de um infectado. Publicam-se os movimentos de todos os infectados. Nos escritórios do ministério da saúde coreano existem ‘rastreadores’ que analisam o material filmado e fazem o perfil dos movimentos dos infectados e localizam as pessoas que com eles tiveram contato”.

Em Taiwan “o Estado envia simultaneamente a todos os cidadãos mensagens para localizar as pessoas que tiveram contato com infectados ou informam os locais e edifícios onde existem pessoas contagiadas”. Taiwan “empregou uma conexão de diversos dados para localizar os possíveis infectados em função das viagens que fizeram”.

Foram apenas exemplos relatados no ensaio mencionado. Afirma ainda Byung-Chul Han: “Em Hong Kong, Taiwan e Cingapura existem poucos infectados. Em Taiwan, 108 casos; em Hong Kong, 193. Na Alemanha, em período mais curto, 15.320 casos; na Espanha, 19.980. Entrementes, começou um êxodo de asiáticos que saem da Europa. Chineses e coreanos querem voltar para seus países, porque lá se sentem mais seguros. Os preços das passagens subiram muito, é difícil encontrar lugares nos voos para a Coreia do Sul e China. A Europa está fracassando. A Ásia controla melhor a pandemia que a Europa”.

Continua: “Os Estados Asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan e Cingapura têm mentalidade autoritária. Confiam mais no Estado. Nem na China, nem em outros Estados asiáticos como Coreia, Hong Kong, Cingapura, Taiwan ou Japão existe consciência crítica diante da vigilância digital ou o big data. A digitalização os embriaga. Isso obedece também a um motivo cultural. Na Ásia impera o coletivismo. Na Ásia as epidemias não são combatidas só por virólogos, mas sobretudo por informáticos e especialistas em big data. Os apologistas do big data dirão que ela salva vidas humanas”

Com pequenas modificações, repito abaixo transcrições que já fiz em outro artigo: “Na China em nenhum momento da vida quotidiana você está fora da observação. Controla-se cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes sociais, a travessia em um semáforo vermelho. Na China existem 200 milhões de câmeras de vigilância, muitas com instrumentos de inteligência artificial. Os provedores chineses de celulares compartilham os dados sensíveis da seus clientes com os serviços de segurança e de saúde”. Em Wuhan houve emprego maciço da vigilância digital, em especial compartilhamento de big data. Infectados, suspeitos, encontros deles, tudo era monitorado em tempo real.

Como é possível tal controle, em especial na China? Byung-Chul Han afirma que a noção de “esfera privada” e direitos individuais é pequena na Ásia, em particular na China, ao contrário do que acontece na Europa. Então, as reações são menores que no Ocidente. É claro, há o problema da cultura, mas de momento há um problema muito maior: a China é dirigida pelo Partido Comunista Chinês, ateu, coletivista, imperialista.

E Byung-Chul desagua na conclusão: “A China poderá vender agora seu Estado policial digital como um modelo de êxito contra a pandemia, exibirá a superioridade de seu sistema ainda com mais orgulho. A comoção é momento propício para estabelecer um novo sistema de governo. Oxalá que depois da comoção provocada pelo vírus não se estabeleça na Europa um regime policial digital como o chinês”.

Resumindo, o controle digital minucioso mais que o sistema sanitário, está liquidando a pandemia, salvando vidas. A contrapartida: o controle estatal. É a versão atual do “Better red than dead”, expressão tão ligada a Bertrand Russell; de outro modo, a tentação de dar a liberdade em troca da vida. É 1984 com o domínio do Big Brother. Modernamente, o apocalipse digital.

Chegaremos lá? Não sei. Era inconcebível? Não. Poder-se-ia prever algo assim e nem era tão difícil. Há uns dois anos, o Zeca Patafufo (pseudônimo adotado por este pobre escrevinhador) publicou livro pequeno “Brigo pelos homens atrofiados”, conto jocoso, de fato conto-denúncia. Um dos personagens da história, Adamastor Ferrão Bravo, uma espécie de conselheiro, diz a certa altura: “Pode estar iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países. Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imantada, veremos atrás sarandear malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista; via nos intentos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza apavorante, a construção da utopia socialista dos ‘amanhãs que cantam’; para tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores”.

Sobre o perigo do avanço totalitário chinês [ou de outro poder] em países do Ocidente, o mesmo Adamastor Ferrão Bravo observou: “Em nossa quadra histórica só resta de pé uma defesa eficaz contra a neoescravidão, é no povo subsistirem vivos o senso moral e os hábitos de liberdade. O que nos livra da pior tirania são tais hábitos sociais enraizados”. Acho que o Adamastor tem razão.

É problema distante do Brasil a ingerência chinesa? E nem falo agora na economia. Devagar. O governador do Distrito Federal pediu oficialmente o auxílio chinês para combater o coronavirus. Nove governadores do Nordeste, o Consórcio Nordeste (Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia) fizeram o mesmo. Os mandatários do Nordeste afirmam que passaram a admirar ainda mais o povo chinês pela forma como enfrentou o coronavírus. São até agora dez governadores pedindo que a China comece logo a trabalhar aqui com qualquer forma de ajuda, pessoal, equipamentos, orientações, remédios. Pode aumentar o número dos suplicantes. Adamastor tinha razão.

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