O apocalipse digital
Péricles
Capanema
Neste
primeiro parágrafo repito informações constantes de meu último artigo, precisa.
Byung-Chul Han é sul-coreano, mora em Berlim, lá é professor universitário. A
mais, filósofo libertário, tem livros vendidos no mundo inteiro; no Brasil, a
Editora Vozes edita trabalhos dele. Michel Foucault poderia ser tido como um de
seus inspiradores. Em 21 de março El País, centro-esquerda, o maior jornal
espanhol, publicou enorme ensaio do sul-coreano sobre efeitos do coronavirus.
Nesse
artigo, pretendo apenas transcrever afirmações de Byung-Chul Han, falam por si,
os comentários meus serão mínimos. Título do ensaio enorme, do qual citarei extratos:
“A emergência viral e o mundo do amanhã”. Se quisermos, a emergência do vírus e
o futuro. Ele aponta os perigos que lobriga no futuro.
Sabem
como o coronavirus é combatido em Pequim? Byung-Chul Han escreve: “A estrutura
da vigilância digital tem sido extremamente eficaz para combater a epidemia.
Quando alguém sai da estação de Pequim, uma câmera o capta imediatamente. Ela
mede sua temperatura corporal. Se a temperatura é preocupante, as pessoas que
iam sentadas no mesmo vagão recebem uma notificação no celular. O sistema sabe
quem ia e em que lugar no vagão. As redes sociais informam que até mesmo drones
estão sendo usados para controlar a quarentena. Se alguém rompe clandestinamente
a quarentena um drone é enviado e lhe ordena voltar para casa”. Mais: “O Estado
sabe onde estou, com quem me encontro, o que faço, o que busco, em que penso, o
que como, o que compro, para onde me dirijo”.
Agora,
situação na Coreia do Sul: “Quem se aproxima na Coreia de um prédio onde esteve
um infectado recebe no celular, por meio de aplicativo, um sinal de alarma.
Estão registrados no aplicativo todos os lugares em que esteve um infectado. Em
todos os edifícios da Coreia do Sul existem câmera de vigilância em cada andar,
em cada escritório, em cada loja. Com os dados do celular e do material filmado
se cria um perfil do movimento completo de um infectado. Publicam-se os
movimentos de todos os infectados. Nos escritórios do ministério da saúde
coreano existem ‘rastreadores’ que analisam o material filmado e fazem o perfil
dos movimentos dos infectados e localizam as pessoas que com eles tiveram
contato”.
Em Taiwan
“o Estado envia simultaneamente a todos os cidadãos mensagens para localizar as
pessoas que tiveram contato com infectados ou informam os locais e edifícios
onde existem pessoas contagiadas”. Taiwan “empregou uma conexão de diversos
dados para localizar os possíveis infectados em função das viagens que
fizeram”.
Foram
apenas exemplos relatados no ensaio mencionado. Afirma ainda Byung-Chul Han:
“Em Hong Kong, Taiwan e Cingapura existem poucos infectados. Em Taiwan, 108
casos; em Hong Kong, 193. Na Alemanha, em período mais curto, 15.320 casos; na
Espanha, 19.980. Entrementes, começou um êxodo de asiáticos que saem da Europa.
Chineses e coreanos querem voltar para seus países, porque lá se sentem mais
seguros. Os preços das passagens subiram muito, é difícil encontrar lugares nos
voos para a Coreia do Sul e China. A Europa está fracassando. A Ásia controla
melhor a pandemia que a Europa”.
Continua:
“Os Estados Asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan e Cingapura
têm mentalidade autoritária. Confiam mais no Estado. Nem na China, nem em
outros Estados asiáticos como Coreia, Hong Kong, Cingapura, Taiwan ou Japão
existe consciência crítica diante da vigilância digital ou o big data. A
digitalização os embriaga. Isso obedece também a um motivo cultural. Na Ásia
impera o coletivismo. Na Ásia as epidemias não são combatidas só por virólogos,
mas sobretudo por informáticos e especialistas em big data. Os apologistas do
big data dirão que ela salva vidas humanas”
Com
pequenas modificações, repito abaixo transcrições que já fiz em outro artigo: “Na
China em nenhum momento da vida quotidiana você está fora da observação.
Controla-se cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes
sociais, a travessia em um semáforo vermelho. Na China existem 200 milhões de
câmeras de vigilância, muitas com instrumentos de inteligência artificial. Os
provedores chineses de celulares compartilham os dados sensíveis da seus
clientes com os serviços de segurança e de saúde”. Em Wuhan houve emprego
maciço da vigilância digital, em especial compartilhamento de big data.
Infectados, suspeitos, encontros deles, tudo era monitorado em tempo real.
Como é possível
tal controle, em especial na China? Byung-Chul Han afirma que a noção de
“esfera privada” e direitos individuais é pequena na Ásia, em particular na
China, ao contrário do que acontece na Europa. Então, as reações são menores
que no Ocidente. É claro, há o problema da cultura, mas de momento há um
problema muito maior: a China é dirigida pelo Partido Comunista Chinês, ateu,
coletivista, imperialista.
E Byung-Chul
desagua na conclusão: “A China poderá vender agora seu Estado policial digital
como um modelo de êxito contra a pandemia, exibirá a superioridade de seu
sistema ainda com mais orgulho. A comoção é momento propício para estabelecer
um novo sistema de governo. Oxalá que depois da comoção provocada pelo vírus
não se estabeleça na Europa um regime policial digital como o chinês”.
Resumindo,
o controle digital minucioso mais que o sistema sanitário, está liquidando a
pandemia, salvando vidas. A contrapartida: o controle estatal. É a versão atual
do “Better red than dead”, expressão tão ligada a Bertrand Russell; de outro
modo, a tentação de dar a liberdade em troca da vida. É 1984 com o domínio do Big
Brother. Modernamente, o apocalipse digital.
Chegaremos
lá? Não sei. Era inconcebível? Não. Poder-se-ia prever algo assim e nem era tão
difícil. Há uns dois anos, o Zeca Patafufo (pseudônimo adotado por este pobre
escrevinhador) publicou livro pequeno “Brigo pelos homens atrofiados”, conto
jocoso, de fato conto-denúncia. Um dos personagens da história, Adamastor
Ferrão Bravo, uma espécie de conselheiro, diz a certa altura: “Pode estar
iminente avalancha de soft power da China, a mais do duro sharp power
que começa a se generalizar e já desperta vivas reações em vários países.
Dando certo a ofensiva chinesa, em cortejo, imantada, veremos atrás sarandear
malemolente a bocojança, multidões sem fim. Tanta gente modernosa não achou que
a Rússia dos anos 30 tinha dado certo? O Stalin, besuntado de admirações
abjetas, foi ícone de cardumes de torcedores ignóbeis; décadas de chumbo
aleluiadas em histeria, mais que tudo pela intelligentsia progressista;
via nos intentos mitomaníacos de engenharia social, executados com frieza
apavorante, a construção da utopia socialista dos ‘amanhãs que cantam’; para
tal, enfiada sem fim de hojes desesperadores”.
Sobre o
perigo do avanço totalitário chinês [ou de outro poder] em países do Ocidente,
o mesmo Adamastor Ferrão Bravo observou: “Em nossa quadra histórica só resta de
pé uma defesa eficaz contra a neoescravidão, é no povo subsistirem vivos o
senso moral e os hábitos de liberdade. O que nos livra da pior tirania são tais
hábitos sociais enraizados”. Acho que o Adamastor tem razão.
É
problema distante do Brasil a ingerência chinesa? E nem falo agora na economia.
Devagar. O governador do Distrito Federal pediu oficialmente o auxílio chinês
para combater o coronavirus. Nove governadores do Nordeste, o Consórcio
Nordeste (Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe, Bahia) fizeram o mesmo. Os mandatários do Nordeste afirmam que
passaram a admirar ainda mais o povo chinês pela forma como enfrentou o coronavírus.
São até agora dez governadores pedindo que a China comece logo a trabalhar aqui
com qualquer forma de ajuda, pessoal, equipamentos, orientações, remédios. Pode
aumentar o número dos suplicantes. Adamastor tinha razão.
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