Escolhas mortais para
o Brasil
Péricles Capanema
Opções letais. Vou tratar de um tipo de escolhas aliciantes,
quase irresistíveis, aparentemente vivificantes e restauradoras, mas que trazem,
logo na esquina, consequências sinistras. São como tentações, assolam toda a
existência, de alto a baixo, dos assuntos mais corriqueiros até os mais
decisivos. Dois exemplos. O obeso que sempre escolhe comer mais um doce e logo na
frente se depara com a condição de obeso mórbido; doente grave, sequelas
sérias, tratamento difícil. O país que sempre gasta além do orçamento (nosso
caso, torramos dinheiro público muito além do possível) e logo depois, a economia
fica enferma, caem sobre nós inflação, recessão, queda de produção, desemprego,
com sofrimentos muito maiores dos pobres. Paro por aqui, os exemplos seriam
infinitos. Abaixo vou me ater a realidade conexa, mas distante dos exemplos
acima, sobretudo terão laços com a independência e soberania nacionais, com reflexos
imediatos na preservação das liberdades naturais do brasileiro comum ▬ entre
outras, opinar, estudar, escolher profissão e local de residência, casar, ter
propriedade, empreender, praticar a religião.
Comandante em Pequim. Começo. O general Tomás Paiva, comandante do
Exército, visitará oficialmente a China comunista entre 4 e 14 de julho
próximos. Entre outros compromissos, reunir-se-á com o chefe do Exército
chinês. O Brasil tem particular interesse de intercâmbio e compras na área
cibernética, munição pesada e blindados. A justificação maior [motivo oficial,
bem entendido; nas comunicações oficiais, sabe-se, muitas vezes o expresso vela
a realidade] para a visita é o interesse brasileiro de manter relações próximas
com os países do BRIC, em especial, óbvio, com Rússia, China e Índia. Com relação
à Rússia, por agora em guerra, não convém visitas. O referido general já visitou
a Índia. Na aparência, visita corriqueira. Não é.
Avibras na balança. Melhorando, Avibras balança. Temos
aqui uma escolha mortal. A visita se dá quando está na agenda das relações
entre Brasil, China e Estados Unidos, de forma relevante, item bem delicado ▬
gravíssimo. A ele. O Brasil tem uma grande fabricante de material militar, capital
privado, a Avibras Aeroespacial. Recordando, a Avibras, fornecedora das
Forças, mais de 50 anos em atividade, sede em São José dos Campos, tem
importância especial pela produção do Sistema ASTROS, capaz de lançar mísseis
de cruzeiro e foguetes guiados. A mais, ela fabrica ainda motores foguetes para
a Marinha e Força Aérea. A seguir, mais dados fundamentais. No site da empresa,
informam-se em linguagem técnica diferentes produtos que denotam a importância
de sua atividade para a defesa do Brasil. Entre os anunciados, “sistemas fixos
ou móveis de C4ISTAR (Comando, Controle, Comunicação, Computação, Inteligência,
Vigilância, Aquisição de Alvo e Reconhecimento) e Aeronave Remotamente Pilotada
(ARP) - o Falcão”. No mesmo texto informativo, a empresa mostra sua posição ímpar
para a segurança nacional: “com a certificação do Ministério da Defesa como
“Empresa Estratégica de Defesa - EED”, a Avibras tornou-se ainda mais
competitiva nos mercados interno e externo.” Em resumo, as Forças a consideram
de importância estratégica para a defesa e soberania nacionais.
Impasse trágico e saída tentadora. Pesa sobre a Avibras, padecendo hoje recuperação
judicial, a espada da falência próxima. Segundo a revista Sociedade Militar,
sua dívida é de R$600 milhões. E não tem como pagá-la. Falida, sumirá do mapa. Seus
produtos deixariam de ser oferecidos às Forças, surgindo novos fornecedores,
nacionais ou estrangeiros. Quais? Incógnita, de momento. Para evitar o
desenlace trágico, a empresa tentou várias parcerias, mas fracassou em todos os
tentames. Depois das referidas tentativas, de Pequim lhe foi lançada uma corda
aliciante: a NORINCO, estatal chinesa, compraria 49% do seu capital social, consertaria
as contas, arranjaria clientes e faria a Avibras prosperar de novo. Carta da
NORINCO já foi enviada ao governo brasileiro, propondo o negócio. Arapuca, se
quisermos. A corda lançada de Pequim evitaria o naufrágio. A empresa, mais
ainda, o governo e as Forças, que atitude devem tomar? Segurar a corda? Dar-lhe
as costas? Afloram, compreensivelmente, os choques de opiniões dentro do
aparato militar e do governo. A Folha informou, existem generais brasileiros na
ativa simpáticos à ideia, o que permite levantar a hipótese de trabalhos de convencimento
a favor da NORINCO. Os Estados Unidos ameaçam reagir ao possível fato novo
(estatal chinesa detendo importantes segredos militares brasileiros) com embargos
devastadores de tecnologia de ponta, pois a Avibras detém conhecimentos sensíveis,
oriundos de lá, cuja captura pelo governo de Pequim poderia ameaçar interesses
norte-americanos vitais. Este tema, candente em Washington e Brasília, plausivelmente
será ventilado e encaminhado nas conversas do general Tomás Paiva em Pequim. Para
que rumo o general, obedecendo diretrizes do governo petista, orientará as conversas?
Há apreensões. Fundadas. A saída simples [e devastadora] está clara: a estatal
chinesa assume o leme, salva a empresa, mantém os empregos [a empresa demitiu
420 colaboradores de uma só vez], segura a produção, deixando ainda o sócio
brasileiro com o controle formal: 51% das ações. Aparentemente persistiria o
controle nacional sobre a produção de armamento e sistemas de altíssima
importância. Me engana que eu gosto. Sem disfarces, seria um passo a mais na
aproximação do Brasil com a China. Aproximação? É a palavra certa? O termo à
vera rescende a eufemismo. Na prática, o que acontecerá é inserção ainda maior do
Brasil na zona de influência chinesa, com restrição ainda maior a sua liberdade
de movimentos. Em tal relação, é impossível não perceber traços evidentes da
antiga relação, tão increpada e com fortes razões, das potências colonizadoras
europeias com seus povos colonizados.
Política permanente. Lembrei acima, o Brasil (e agora
incluo os países da América Latina em geral), cada vez mais, têm em relação à
China a mesma relação que os povos colonizados tinham com as potências
colonizadoras europeias do século XIX e XX. As colônias enviavam a
matéria-prima, preço camarada, as indústrias nas metrópoles processavam-na agregando valor, e devolviam-na como manufaturados caros. Farei aparente
desvio; de fato, continuarei no tema. Exemplo doloroso atual é o caso do aço,
nervo da industrialização. No início do século XXI, a América Latina fabricava 6,6%
do aço mundial. Em 2023, fabricou 3,1%. A associação Latino-Americana do Aço
(Alacero) acusou a China de invadir a região com aço barato, provocando a
retração da indústria. Afirma Alejandro Wagner, diretor-geral da Alacero:
“Entre 2000 e 2023, a China aumentou sua produção de aço em 700%. Passou da
produção de 15% do aço mundial para 54%”. As exportações de aço da América
Latina para a China caíram 94% de 2000 a 2023. As exportações de aço da China
para a América Latina, no mesmo período, subiram 8.690%. Ao mesmo tempo, a
exportação de matéria-prima para a China (ferro, soja, petróleo, carne etc)
aumentou em 1.500%. No período analisado a produção chinesa saltou de 128,5
milhões de toneladas de aço anuais para 1 bilhão de toneladas. Deste total, 90
milhões foram exportadas; 10 milhões para a América Latina. O Brasil compra hoje
da China 17% do aço que consome.
Reprimarização. Alejandro Wagner fala de processo em
curso, a “reprimarização” (desindustrialização acelerada, em especial no setor
do aço, retorno à venda para o Exterior de matérias-primas e compra de material
manufaturado), provocado em boa parte pela invasão de produtos chineses. Trará
empobrecimento, salários menores em média (já está causando), menos ofertas de
empregos, perenização de padrões próprios ao chamado Terceiro Mundo. Com
efeito, é fenômeno notório, a indústria vai se encolhendo, a exportação de
matérias-primas para a China aumenta e avança. Como nos tempos coloniais,
indústria manufaturadora nas metrópoles, produção de matéria-prima para
exportação nas colônias. Em linhas gerais, a indústria de transformação chegou
a representar em 1985, 35,9% do PIB. Hoje está por volta de 12%.
Uma proposta não factível. Tarifas inibidoras sobre o aço
chinês? Taxar alto na entrada. Seria uma saída, ainda que parcial. Posta a
situação presente, Alejandro Wagner exprime opinião generalizada, acha difícil tarifas
decisivas no caso brasileiro; o Brasil no seu comércio exterior já está muito dependente
em sua economia das exportações para a China, e assim, temendo represálias, não
teria força suficiente para proteger com inteira eficácia a produção nacional,
que, no caso, enfrenta subsídios do governo chinês e queima de estoques muito
altos. Em linguagem diplomática, Alejandro Wagner afirma que o nível de
comércio entre o Brasil e a Cina “limita sua capacidade de impor tarifas”. São escolhas
aliciantes feitas há muito tempo (entre outras, promessas de aumento rápido das
exportações e da entrada de dólares), mantidas agora em parte pelo temor de
represálias (no caso do governo petista, também por afinidade ideológica,
amizade com a China, rejeição aos Estados Unidos). Escolhas funestas.
O Sul global numa América Latina chicoteada
pela reprimarização. A
“reprimarização” da América Latina (e do Brasil em particular) descrita, ressaltada
e prevista por Alejandro Wagner, realidade já antiga, que se impõe gradualmente,
acontece na ocasião em que, estimulado pela China e na prática comandado por
ela, forma-se um conjunto meio confuso e um tanto informal de nações (melhor,
Estados) intitulado o Sul Global, realidade nova construída com muita
propaganda e cuidados. O Sul Global tem clara nota antiamericana, visa diminuir
e cercear os Estados Unidos (ampliando, o Ocidente). É um cerco, afinal. Lula
no Brasil é entusiasta do Sul Global. Se feitas, serão também escolhas mortais,
aliciantes pelas promessas de maior comércio internacional, presença mais
efetiva no mundo, troca de conhecimentos e vai por aí afora. Na realidade, teremos,
com o tempo, um bloco de nações antiamericanas avassaladas por Pequim. Se
quisermos, trabalhando contra os interesses do Ocidente. Nelas, as liberdades
naturais, como nos modelos festejados (China, Coreia do Norte, Cuba, Venezuela,
entre outros) serão paulatinamente asfixiadas. Em linha com tal quadro, Gleisi
Hoffmann, presidente nacional do PT, satisfeita, declarou em Pequim: “Os EUA
atravessam uma imensa crise, e em decorrência disto, mas também em decorrência
do crescimento do resto do mundo vivemos um momento marcado pelo declínio da
hegemonia, da influência dos Estados Unidos”. Continuou: “Como diria o
comunista Antônio Gramsci, o velho mundo não funciona mais de forma adequada,
mas apesar disso o velho mundo continua forte. O novo mundo precisa surgir e já
está surgindo. Mas esse novo mundo ainda não conseguiu se firmar”.
Um mal-entendido que precisa acabar. Escrevi acima, o Sul Global está
sendo pensado e construído contra o Ocidente. Pura verdade. Mas a mera menção
“contra o Ocidente”, sem explicação aclaradora, por causa de mal-entendido de
décadas, talvez de séculos, prejudica gravemente em particular nos Estados
Unidos os interesses da América Latina. Para a generalidade da opinião pública
dos Estados Unidos, a América Latina não pertence ao Ocidente. Portugal pertence.
Espanha pertence. Nós, América Latina, somos Terceiro Mundo. É lá generalizada
a opinião de que o dever maior do país é manter o Ocidente em sua área de
influência: Europa, Canadá, Austrália, Nova Zelândia. Ainda, por razões
diversas, “cum grano salis”, nessa lista se poderiam incluir Filipinas, Japão,
Coreia do Sul, Taiwan. África e América Latina são Terceiro Mundo, com o qual parte
importante da opinião pública norte-americana, de maneira muito genérica, sente
obrigação menor de evitar o avanço chinês. Referidos países não se encaixariam
no conceito de “West” e de “western values”. E assim, é propensão ativa, posta
a obrigação maior de preservar o Ocidente, não seria tão catastrófico, como no
caso de país europeu, caso países do Terceiro Mundo se tornassem Estados
vassalos de Pequim. A verdade histórica é outra e precisa ser realçada,
cultivada e fortalecida: os países latino-americanos pertencem inteiramente à
área ocidental de civilização, por seu passado e valores transmitidos e cultivados,
ainda que, geralmente, tenham desenvolvimento econômico menor. Falta aqui
esforço de esclarecimento gigantesco tanto nos Estados Unidos como em cada país
da América Latina para extinguir o mal-entendido. Transcende, é óbvio, em muito
o escopo do presente artigo tratar do assunto.
Luvas de pelica. Chegou a hora da conclusão. É evidente,
constitui tema delicadíssimo as relações comerciais entre Brasil e China, prenhe
de enormes repercussões na economia brasileira, em especial no agro. A questão
deve ser tratada com com luvas de pelica, sem agredir interesses legítimos, tantas
vezes essenciais. Contudo, é imprescindível, para levá-la adiante com vantagens
contínuas e perenes para o Brasil (e para a América Latina), ter clareza solar
a respeito do quadro inteiro, para a qual espera terem contribuído as
considerações acima, ainda que pobremente. Andar no escuro, tombo certo.
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