segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O óbvio que estava faltando

 

O óbvio que estava faltando

 

Péricles Capanema

 

Verdades simples. Vou tratar do Afeganistão, à vera, repetir informações e análises, parte delas roçando no óbvio. Objetivo, colocar na prateleira verdades simples, o óbvio ululante, o arroz com feijão. É comum, a ênfase nos primeiros princípios e nas primeiras constatações esclarece panoramas embaçados por excesso de análises entufadas. De onde virá o arroz com feijão? Em boa parte de fornecedor sabido, Henry Kissinger; a mercadoria está em artigo dele no “The Economist”, reproduzido no Estadão. Meu papel de momento é respigar ali; uma ou outra vez acrescentar pequenas observações. É pouco? Veremos. O leitor julgará.

 

Diplomata celebrado. Sei, Henry Kissinger será hoje desconhecido de muitos. Apresento-o. Nasceu na Alemanha (Fürth, na Baviera) em 1923 no seio de família judia da burguesia culta e remediada. Seu pai foi professor, sua mãe, mulher rica. Com o nazismo triunfante, a família fugiu para os Estados Unidos. Em 1943, aos 20 anos, obteve a cidadania norte-americana. Formou-se em Harvard, ali foi professor de destaque e já no governo Dwight Eisenhower (1953-1961) estava em Washington como conselheiro prestigiado de política exterior. No governo Richard Nixon (1969-1974) foi conselheiro de Segurança Nacional (1969-1974) e secretário de Estado (1973-1974). Continuou conselheiro de Segurança Nacional até 1975 e secretário de Estado até 1977 no governo Gerald Ford (1974-1977). Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1973. Embora com muitas posições controversas, sempre foi considerado dos maiores diplomatas dos Estados Unidos no século XX. Mais que diplomata, homem de Estado. Fora do governo se tornou intelectual público famanaz. Passo a uma segunda apresentação, também necessária, mas de gente daqui. Nelson Rodrigues (1912-1980), jornalista e escritor, foi frasista célebre. Duas delas cabem bem no texto: “óbvio ululante”; a outra, “só os profetas enxergam o óbvio”. É paradoxo de Nelson Rodrigues, mas evidencia como por vezes é difícil perceber o óbvio. O antigo professor de Harvard constatou o óbvio.

 

Não fugir das responsabilidades. Kissinger condena o isolacionismo e a recusa de agir segundo a missão natural de liderar o Ocidente, que os fatos, sempre guiados pela Providência, colocaram nas costas dos Estados Unidos. E assim vergasta o fracasso culposo: “não haverá no futuro imediato nenhum movimento estratégico dramático para compensar esse revés auto-infligido”. Aponta para a fuga do dever como um dos motivos determinantes da derrota: “A retirada incondicional dos Estados Unidos não elimina a insensibilidade e, sobretudo, a intempestividade da decisão de retirada. Por causa de suas capacidades e valores históricos, os Estados Unidos não podem escapar de serem omponente-chave da ordem internacional. Não pode evitá-lo apenas retirando-se”.

 

Razões do fracasso. O antigo secretário de Estado põe a nu ponto essencial. Foram aplicadas pelo governo dos Estados Unidos receitas políticas “prêt-à-porter” com inteiro descaso para enraizadas realidades sociais, o que trouxe resultados desastrosos: “Os americanos se convenceram de que, em última análise, o restabelecimento de bases terroristas só poderia ser evitado transformando o Afeganistão em Estado moderno com instituições democráticas e governo constitucional. Tal empreendimento jamais poderia ter um cronograma compatível com os processos políticos americanos. O Afeganistão nunca foi um Estado moderno. A construção de um Estado democrático moderno no Afeganistão implicaria décadas”. As análises apressadas e superficiais, prejudicadas tantas vezes por preconceitos, que não evitou fórmulas prontas, aplicadas a bemdizer emt odos os lugares, levaram ao fracasso estrondoso. Apesar da boa-vontade e da dinheirama.

 

Regionalismo, clãs, tribos. Kissinger propugna como medida prévia o estudo e reconhecimento das famílias, dos clãs, das etnias, das regiões, como realidades inafastáveis; mais ainda, naturais e em boa medida legítimas. Não aceita discutir com fatos, trabalhar dando as costas a eles. Deu exemplo. Preferiria que seu país imitasse a Inglaterra que reconheceu a existência de estruturas de poder baseadas no sangue, na família, na região. Daí decorreu uma política que deu certo na Índia e no Oriente Médio; “por um século, defender seus interesses, junto com apoiadores regionais”. Enfim, trabalhar lucidamente sem agredir realidades multisseculares, mas, pelo contrário, nelas se apoiar. “Essa alternativa nunca foi explorada”.

 

Exemplo dilacerante. Está atrás, Kissinger fez análise próxima aos fatos. Defendeu medidas de bom senso, infelizmente nunca aplicadas ao longo de vinte anos. E apenas respiguei parte pequena, o artigo é mais amplo. Dois pontos em especial que são o óbvio ululante, para lembrar Nelson Rodrigues. Apanhei ali, a bem dizer, (1) a fuga do dever e (2) a sujeição a fórmulas artificiais, de costas para a realidade. Deram em fracasso espantoso. Hoje, fatos passados, parecem óbvias as reflexões do antigo secretário de Estado. Não foram ▬ está nas palavras dele ▬ por vinte anos para sucessivas equipes que dirigiam a política exterior da maior potência da Terra. Na prática, desencadearam desacertos demolidores, falta de apoio das populações, generalização da corrupção, fortalecimento dos inimigos e, finalmente, a retirada humilhante. O impacto da retirada vexaminosa, cenas dilacerantes, trazem ao espírito a boutade de Nelson Rodrigues: “Só os profetas enxergam o óbvio”. Que a lição inarredável dos fatos sirva de exemplo.

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