O óbvio que estava
faltando
Péricles Capanema
Verdades simples. Vou tratar do Afeganistão, à vera, repetir
informações e análises, parte delas roçando no óbvio. Objetivo, colocar na
prateleira verdades simples, o óbvio ululante, o arroz com feijão. É comum, a
ênfase nos primeiros princípios e nas primeiras constatações esclarece
panoramas embaçados por excesso de análises entufadas. De onde virá o arroz com
feijão? Em boa parte de fornecedor sabido, Henry Kissinger; a mercadoria está
em artigo dele no “The Economist”, reproduzido no Estadão. Meu papel de momento
é respigar ali; uma ou outra vez acrescentar pequenas observações. É pouco?
Veremos. O leitor julgará.
Diplomata celebrado. Sei, Henry Kissinger será hoje desconhecido
de muitos. Apresento-o. Nasceu na Alemanha (Fürth, na Baviera) em 1923 no seio
de família judia da burguesia culta e remediada. Seu pai foi professor, sua mãe,
mulher rica. Com o nazismo triunfante, a família fugiu para os Estados Unidos.
Em 1943, aos 20 anos, obteve a cidadania norte-americana. Formou-se em Harvard,
ali foi professor de destaque e já no governo Dwight Eisenhower (1953-1961)
estava em Washington como conselheiro prestigiado de política exterior. No
governo Richard Nixon (1969-1974) foi conselheiro de Segurança Nacional
(1969-1974) e secretário de Estado (1973-1974). Continuou conselheiro de
Segurança Nacional até 1975 e secretário de Estado até 1977 no governo Gerald
Ford (1974-1977). Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1973. Embora com muitas
posições controversas, sempre foi considerado dos maiores diplomatas dos
Estados Unidos no século XX. Mais que diplomata, homem de Estado. Fora do
governo se tornou intelectual público famanaz. Passo a uma segunda apresentação,
também necessária, mas de gente daqui. Nelson Rodrigues (1912-1980), jornalista
e escritor, foi frasista célebre. Duas delas cabem bem no texto: “óbvio
ululante”; a outra, “só os profetas enxergam o óbvio”. É paradoxo de Nelson
Rodrigues, mas evidencia como por vezes é difícil perceber o óbvio. O antigo professor
de Harvard constatou o óbvio.
Não fugir das responsabilidades. Kissinger condena o isolacionismo e a recusa de
agir segundo a missão natural de liderar o Ocidente, que os fatos, sempre
guiados pela Providência, colocaram nas costas dos Estados Unidos. E assim vergasta
o fracasso culposo: “não haverá no futuro imediato nenhum movimento estratégico
dramático para compensar esse revés auto-infligido”. Aponta para a fuga do dever
como um dos motivos determinantes da derrota: “A retirada incondicional dos
Estados Unidos não elimina a insensibilidade e, sobretudo, a intempestividade
da decisão de retirada. Por causa de suas capacidades e valores históricos, os
Estados Unidos não podem escapar de serem omponente-chave da ordem internacional.
Não pode evitá-lo apenas retirando-se”.
Razões do fracasso. O antigo secretário de Estado põe a nu
ponto essencial. Foram aplicadas pelo governo dos Estados Unidos receitas
políticas “prêt-à-porter” com inteiro descaso para enraizadas realidades
sociais, o que trouxe resultados desastrosos: “Os americanos se convenceram de
que, em última análise, o restabelecimento de bases terroristas só poderia ser
evitado transformando o Afeganistão em Estado moderno com instituições
democráticas e governo constitucional. Tal empreendimento jamais poderia ter um
cronograma compatível com os processos políticos americanos. O Afeganistão
nunca foi um Estado moderno. A construção de um Estado democrático moderno no
Afeganistão implicaria décadas”. As análises apressadas e superficiais,
prejudicadas tantas vezes por preconceitos, que não evitou fórmulas prontas,
aplicadas a bemdizer emt odos os lugares, levaram ao fracasso estrondoso.
Apesar da boa-vontade e da dinheirama.
Regionalismo, clãs, tribos. Kissinger propugna como medida prévia o estudo
e reconhecimento das famílias, dos clãs, das etnias, das regiões, como
realidades inafastáveis; mais ainda, naturais e em boa medida legítimas. Não
aceita discutir com fatos, trabalhar dando as costas a eles. Deu exemplo. Preferiria
que seu país imitasse a Inglaterra que reconheceu a existência de estruturas de
poder baseadas no sangue, na família, na região. Daí decorreu uma política que
deu certo na Índia e no Oriente Médio; “por um século, defender seus
interesses, junto com apoiadores regionais”. Enfim, trabalhar lucidamente sem
agredir realidades multisseculares, mas, pelo contrário, nelas se apoiar. “Essa
alternativa nunca foi explorada”.
Exemplo dilacerante. Está atrás, Kissinger fez análise
próxima aos fatos. Defendeu medidas de bom senso, infelizmente nunca aplicadas
ao longo de vinte anos. E apenas respiguei parte pequena, o artigo é mais
amplo. Dois pontos em especial que são o óbvio ululante, para lembrar Nelson
Rodrigues. Apanhei ali, a bem dizer, (1) a fuga do dever e (2) a sujeição a
fórmulas artificiais, de costas para a realidade. Deram em fracasso espantoso.
Hoje, fatos passados, parecem óbvias as reflexões do antigo secretário de
Estado. Não foram ▬ está nas palavras dele ▬ por vinte anos para sucessivas
equipes que dirigiam a política exterior da maior potência da Terra. Na
prática, desencadearam desacertos demolidores, falta de apoio das populações, generalização
da corrupção, fortalecimento dos inimigos e, finalmente, a retirada humilhante.
O impacto da retirada vexaminosa, cenas dilacerantes, trazem ao espírito a boutade
de Nelson Rodrigues: “Só os profetas enxergam o óbvio”. Que a lição inarredável
dos fatos sirva de exemplo.
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