Remansos
restauradores
Péricles Capanema
Truque do menino pescador. Quando menino, pesquei um pouco, ia em geral
até o rio (ou ribeirão) com tio meu. Descobri logo um ardil: procurava os
remansos, locais onde a água fica calma, corre menos, dá impressão de parada.
Peixe gosta de remanso. Jogava o anzol, a pescaria rendia. Existem peixes em
corredeiras; no entanto, a pesca ali é menor. Sempre preferi os remansos. Mais
tarde, adulto já formado, ouvi seguidamente a palavra remanso associada a
descanso e tranquilidade. “Aquilo é um remanso”; “Foi um remanso na vida dele”.
Por aí afora. E me lembrava, remanso no rio sempre foi condição de pescaria de
muitos peixes. Era promessa, fisgava muito quem conhecia suas vantagens.
Remansos promissores. Em ocasião inesperada, como um dourado fora
d’água, pulou na memória a palavra. Ouvi, anos atrás, de amigo meu: “Fulano não
sabe descansar, por isso produz pouco e mal”. O aparente paradoxo me
impressionou. À primeira vista, o remanso, em perspectiva diferente, a inação
ajudaria a produção. Mais precisamente, saber como descansar era condição da produtividade
boa, com qualidade. Do pátio do recreio dependia em larga parte o êxito da sala
de aula. Lembrei-me então, a pescaria depende também do remanso, da água em
descanso. A coisa ficou por aí.
Forças novas. Contudo, resolvi tratar do tema hoje, por
razão circunstancial. Tive debate com pessoa que sustenta, a tensão contínua é
condição de produtividade alta; remanso atrapalha. Imagino, provavelmente
haverá muita gente que pensa igual. Acho o contrário, remansos restauram
forças, facilitam caminhadas de sucesso. Admito, podem existir remansos apenas de
superfície, convulsionados por baixo, recreios neurastênicos; causam efeito
contrário, debilitam. De outra maneira, existem formas de armazenar energia,
gastando-as depois com utilidade. E existem formas de supostamente guardar
energia, de fato desbaratá-las, que impedem utilização posterior.
Hábitos de observação. Arrisco-me a propor aqui remansos, um em
especial, de fato. Espero, ajudarão eventuais leitores a agir com maior
eficiência em vários âmbitos da vida ▬ familiar, profissional, educativo, etc. Serão
hábitos que descansam e formam o espírito, a mais de preparar para a ação. Em
resumo, é uma sugestão para criar o costume de observar pessoas e famílias, ter
em relação a situações de perfeição social um olhar benevolente que entretém, distrai,
descansa e forma. Será pátio de recreio com função de sala de aula. Caí sem
querer na autoajuda. Não importa, adiante.
Presença de espírito. Esse hábito existiu, formou gerações.
Proponho, a bem dizer, uma ressurreição. O mundo cultural francês sempre apreciou,
e com razão, o “esprit”. Abria portas, criava oportunidades, permitia começar relações
de valor. Era (e ainda o é, pelo menos em parte) diferencial enorme. Ter
espírito (avoir de l’esprit) é sem dúvida ter presença de espírito, saber agir
em situações inesperadas. Supõe agilidade mental que leva a encontrar a saída
em ocasiões espinhosas. Para tanto, graça, humor, argúcia, conhecimentos. Dele
faz parte também o dom da “repartie”, isto é, a capacidade habitual da resposta
viva, espontânea, leve, fácil e brilhante. Nunca foi tempo perdido o esforço
para aquisição da presença de espírito. Lá e cá.
Entretenimento cultural como motor da
formação. Uns nascem com
especial talento nesse campo, cumpre a eles desenvolver dons nativos. Outros
têm necessidade de desenvolvê-los, com esforço, ao longo da vida. A eles, de
forma particular, o presente texto talvez possa ajudar. A conquista de tal
configuração, mesmo em doses modestas, supõe observar e admirar suas manifestações
▬ ganho, em boa parte por osmose, de conhecimentos e hábitos. Aqui estão duas
etapas para sua obetnção: gostar de observar e de admirar.
Educação por osmose. Com efeito, a educação não acontece só pela
instrução. O conhecimento, os hábitos e o jeito se transmitem também pela
convivência. A frequentação, quer física, quer moral, de ambientes pode trazer assimilação
de valores. São caldos de cultura psicológicos e morais, nutridos pela leitura,
pela imaginação, pelo convívio. Haurindo tais ares, desenvolver o costume de
observar, procurando explicitar o visto e de admirar. Tudo isso faz entender melhor
a vida.
Exemplo de expressão histórica. Atrás me referi à atmosfera cultural francesa,
em que houve hábitos de observar e de admirar. Quase se poderia afirmar,
trata-se de ressuscitá-los e divulgá-los. Foram de enorme significado para a
vida nacional ▬ rotinas recreativas embora, remansos de muito peixe. Desço a um
exemplo, acho que é o melhor de todos. Houve ali, certamente por mais de século,
uma família de expressão, Rochechouart-Mortemart, que, pela fulguração, a
partir do século XVII, educou, e, em algum sentido, formou gerações inteiras, atraindo
a atenção e entretendo. Seus membros de maior relevo eram, em certa proporção, “role
models”. Era habitual em seus membros traços de personalidade que encantavam,
seduziam, formavam. Nas palavras do historiador Ernest Lavisse “o espírito
celebrado dos Mortemart, natural, fino, que sabia encontrar o inesperado, um
espírito que tinha o dom de se comunicar aos outros”. Em resumo, uma forma de
alta cultura, comunicativa e difusiva, admirada, observada. Grandes escritores
como o duque de Saint-Simon, madame de Sévigné e Marcel Proust dele falaram.
Talleyrand, celebrado não só na diplomacia, mas ainda na arte de conversar,
notou nas memórias que parte de sua formação vinha da bisavó, uma Mortemart. De
outro modo, estava no sangue, aquele estilo vivia nos ares que respirou em
menino ▬ osmose. Hoje ainda, tantas vezes dispersas e despercebidas, temos entre
nós pessoas em muitos aspectos parecidas com membros da família Mortemart.
Merecem atenção. Cabe a nós notá-las, observá-las, admirá-las, mesmo que
silenciosamente. É tarefa que aprimora o espírito, prepara para as tarefas cansativas
do dia a dia.
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